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Bryan Appleyard

Bryan Appleyard

Robert Macfarlane, o escritor que explorou o mundo subterrâneo: das catacumbas de Paris aos buracos das colinas da mort e italianas

Percorreu os corredores proibidos das catacumbas de Paris durante dois dias e meio, recusou-se a ver os buracos da morte em Triesta. Robert Macfarlane desenterrou o bom e o mau do submundo.

Robert Macfarlane nasceu e cresceu em Nottinghamshire, condado inglês cravado de minas de carvão onde o pai, médico, tratava dos problemas respiratórios dos trabalhadores. Lembra-se de o ver com radiografias nas mãos, de as levantar em direção à janela e olhar para os pulmões sobrecarregados dos mineiros da cidade. Era “o lado mau do mundo subterrâneo”.

Mas este submundo não é totalmente implacável: no condado vizinho, Derbyshire, que Robert visitava frequentemente, tinha sido escavado em arenito. Um café na cidade era também a entrada para uma galeria de grutas que o escritor britânico, agora com 44 anos, descreve como “um conto de fadas”.

“Mundo Subterrâneo: Uma Viagem pelas Profundezas do Tempo” é um regresso às suas origens, mas num sentido ainda mais ancestral que a infância de Robert Macfarlane pode sugerir. O livro, que acaba de ser traduzido para português pela Elsinore, é uma exploração do submundo pelas mãos do premiado escritor britânico, mas também pelos registos que a Terra guarda de coisas que aconteceram nas suas entranhas desde muito antes da existência humana até a um futuro mais distante, passando pelos tempos em que a invadimos com cadáveres e lixo nuclear..

A capa do livro foi desenhada por Stanley Donwood, criador de todos os álbuns dos Radiohead e autor das capas de todos os livros de Robert Macfarlane..

Elsinore

O seu livro é sobre quão difícil e medrosa pode ser a relação da humanidade com o mundo subterrâneo. Porque é que decidiu contrariar essa tendência e explorá-lo?
Uma das razões é que há 20 anos escrevi um livro sobre porque é que as pessoas escalam montanhas — foi o primeiro livro que escrevi — e este é um pouco como o gémeo obscuro desse. Com o livro das montanhas questionava-me sobre porque é que as pessoas as exploravam; e agora também me questionei sobre porque é que as pessoas descem para o submundo. Descobri rapidamente que a resposta é muito mais complicada e muito mais antiga. Mas diria que em geral sempre fui fascinado pela relação dos humanos com a paisagem, pela forma como sonhamos com ela, falamos com ela, constituímos a nossa vida em função dela.

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Que resposta complicada foi essa?
O impulso de escalar montanhas é uma coisa recente, na Europa particularmente, mas ir para a escuridão é um impulso ancestral: para enterrar os nossos mortos, para fazer arte (arte rupestre maravilhosa no ocidente de Espanha e nas grutas de calcário em França). E fomos em busca de horizontes, em busca de conhecimento. As histórias de exploração do mundo subterrâneo são as mais antigas do mundo. A Epopeia de Gilgamés, a história mais antiga da literatura, contém uma tábua sobre a descida para o submundo. Por isso, soube desde o início que só estava a escrever mais um capítulo muito pequeno de uma história muito longa.

Gostava de saber mais sobre a capa do livro porque é mais convencional ilustrar este tipo de conteúdos com imagens escuras. A sua capa é muito colorida. Qual é a história dela?
Trabalho há muitos anos com um artista chamado Stanley Donwood que foi quem criou esta capa. Ele é mais famoso por ser o artista dos Radiohead, fez todos os álbuns deles e também fez as capas de todos os meus livros. Esta é uma imagem chamada “Nether”, de 2013 — é uma palavra em inglês que significa o submundo. Mas o Stanley também me disse que representa uma explosão nuclear e dá esta grande rajada de cor e força que se atira sobre o leitor. Para mim, junta o belo e o terrível, o secreto e o profano. E também é uma espécie de capa luminosa e ardente para que queria chamar a atenção. O mundo subterrâneo não é só sobre escuridão.

Então porque é que o projetamos quase sempre dessa maneira?
É compreensível. O mundo subterrâneo pode ser perigoso, brutal, aprisionante, abusivo. E nós somos espécies óticas, gostamos de ver bem e à distância. O submundo não nos dá essas coisas. A claustrofobia é um medo muito antigo. Tem sido fascinante escrever este livro e perceber que possuo como se fossem poderes mágicos. Tenho leitores que me têm escrito a dizer que se sentem claustrofóbicos, o corpo altera-se e têm de ir apanhar ar. Ou seja, a claustrofobia está profundamente enraizada nesse medo. Mas é precisamente esse tipo de ódio e distanciamento, por oposição à longa história da nossa relação com o mundo subterrâneo, que tento explorar.

Uma das coisas mais bonitas e estranhas que fiz foi entrar num glaciar na Gronelândia (...). Quanto mais fundo se chega, mais antigo é o gelo e torna-se cada vez mais azul, quase até certo ponto preto — porque o peso pressiona o ar para fora dele, o oxigénio sai. Quando se desce num glaciar gronelandês, ficamos azuis. Tudo se transforma em azul: tu, as coisas à nossa volta ficam ensopadas em azul. Parece que se está a viajar no tempo à medida que se desce. E isso é encantador, lindo e assustador ao mesmo tempo.

Esse preconceito sempre existiu ou houve certos momentos da História que o produziram?
É a primeira pessoa que me pergunta isso e eu não sei. Sabemos tão pouco. Os Homo naledi terão sido a primeira espécie hominídea a enterrar os seus mortos no subsolo. Essa é provavelmente a mais antiga evidência paleoarqueológica [dos enterros]. E achamos agora que as marcas nas grutas no ocidente de Espanha foram feitas por neandertais. Ou seja, nesta altura pensamos que passámos a ir para o subsolo para fazer enterros há centenas de milhares de anos. Mas não temos esse tipo de evidência quanto ao medo. A primeira prova de medo que temos vem nas Epopeias de Gilgamés na Babilónia, há uns quatro mil anos. Há uma personagem, o Enquidu, que desce ao submundo e fica aprisionada lá. Deve ser a primeira vez que se fala do subsolo como um lugar de riscos.

Essa perceção muda de acordo com a cultura e com a religião?
Foi uma questão que me intrigou muito. Ainda não encontrei. Tenho a certeza que um antropólogo me vai dizer que estou errado, mas não encontrei uma cultura sem esta noção de submundo. Parece um conceito partilhado muito vastamente: está nos mitos iorubas do centro e sul de África e está na tradição europeia clássica com os mitos greco-romanos — imagino que em Portugal também seja assim.

E o Robert, como é que se sentiu a explorar as grutas por onde andou?
Tem-se uma sensação de se estar dentro da geologia. Como espécie, nós existimos nesta camada limite muito fina. Ficamos em cima da crosta, por baixo da atmosfera, e só há uma camada com uns 50 metros onde florescemos como espécie e como civilização. Por isso, quando se desce, sentimo-nos mesmo como se estivéssemos a deixar essa camada, a deixar o mundo à superfície. Quando estava nas catacumbas de Paris ou quando estavas a explorar grutas, senti-me muito engolido pela Terra. Às vezes é reconfortante, outras vezes consegue ser ameaçador.

Acho que a resposta é que não estamos a ser bons ancestrais. E que a Covid-19 tornou os nossos horizontes mais curtos. Nós estávamos a começar a ser melhores ancestrais, a pensar nas alterações climáticas, na perda de biodiversidade e no lixo que produzimos. Mas depois meteu-se a Covid-19 e, de repente, a questão passou a ser o que temos de fazer para o próximo mês ou nos próximos seis meses, em vez de pensarmos numa escala temporal de 30 anos, 100 anos, 1.000 anos.

Quando é que sentiu uma coisa e outra?
Uma das coisas mais bonitas e estranhas que fiz foi entrar num glaciar na Gronelândia, nos últimos capítulos do livro. Escrevo como o gelo tem uma memória e a cor dessa memória é azul. Quanto mais fundo se chega, mais antigo é o gelo e torna-se cada vez mais azul, quase até certo ponto preto — porque o peso pressiona o ar para fora dele, o oxigénio sai. Quando se desce num glaciar gronelandês, ficamos azuis. Tudo se transforma em azul: tu, as coisas à nossa volta ficam ensopadas em azul. Parece que se está a viajar no tempo à medida que se desce. E isso é encantador, lindo e assustador ao mesmo tempo. As catacumbas são outro exemplo porque as nossas cidades estão a tornar-se cada vez mais verticais, agora vão desde os satélites até aos cabos subterrâneos. Muitos verticais. Por isso, entrar no subsolo de Paris é como ver uma imagem revertida. Na minha visão, é como encontrar um gémeo nas sombras.

Greenland - Environment - A Journey with the French High Risk Mountain Military Squad

Os glaciares na Gronelândia são azuis porque o gelo absorve as outras cores da luz branca. Quanto maior a distancia que a luz percorre no gelo, mais azul ele se torna

Corbis via Getty Images

Parece ser uma coisa muito visceral porque no livro descreve a chegada à superfície como se fosse um novo nascimento.
Encontra-se a luz. Acabei de fazer um álbum com um amigo meu, o músico Johnny Flynn, sobre o que se passou no último ano. E tem um pouco do mundo subterrâneo nele. Chama-se “Lost in the Cedarwood” [em português, “Perdido na Madeira de Cedro”] e há uma música chamada “Nether” [em português, “Profundezas”] sobre voltar à superfície, realmente. É um milagre. Veem-se cores outra vez, lembramo-nos do que é o verde, dos tons do azul. E penso que, de forma bizarra. Quero dizer, escrevi o livro antes da pandemia de Covid-19, claro. Mas no início do livro discuto a ideia de nós termos desconsertado o planeta, de termos como que perturbado o planeta, e isso está a levar ao ressurgimento de coisas inesperadas. O pergissolo está a derreter, as florestas estão a arder e há coisas a serem libertadas à superfície. E a Covid-19, de certa forma, é uma dessas coisas. Obrigou-nos a todos a estar em grutas, certo? Todos ficamos claustrofóbicos e confinados.

A investigação para este livro começou há cerca de sete anos. Qual foi a ideia mais importante que lhe ocorreu nesse período de tempo?
Esta questão que o virologista Jonas Salk coloca: “Estamos a ser bons ancestrais?”. Quando encontrei essa questão, que é uma pergunta difícil de responder, de repente compreendi que o livro inteiro era uma averiguação à ideia do que estamos a deixar. Daquilo que herdámos e do que vamos deixar. Ser um bom ancestral não é a mesma coisa que ser um bom pai ou avô, significa ser responsável por gerações que nunca vamos conhecer. Tenho muito interesse nisso, pelo que podemos chamar uma ética do tempo profundo. Ou política do tempo profundo.

E a que conclusão chegou?
Acho que a resposta é que não estamos a ser bons ancestrais. E que a Covid-19 tornou os nossos horizontes mais curtos. Estávamos a começar a ser melhores ancestrais, a pensar nas alterações climáticas, na perda de biodiversidade e no lixo que produzimos. Mas depois meteu-se a Covid-19 e, de repente, a questão passou a ser o que temos de fazer para o próximo mês ou nos próximos seis meses, em vez de pensarmos numa escala temporal de 30 anos, 100 anos, 1.000 anos.

Robert Macfarlane no Glaciar Knud Rasmussen, Gronelândia.

Helen Spenceley

Espera que este livro recupere essa mensagem ecológica?
Espero que sim, mas que não pregue. Quero mostrar mais do que dizer. Quase todas as pessoas que conheço e sobre as quais escrevo estão esperançosas — pessoas nascidas na Noruega a combater os planos para perfurações petrolíferas ou Merlin Sheldrake, o biólogo que descobriu e está a tentar revelar mais sobre o “Wood World Web”, o mutualismo entre árvores e fungos. Por isso, espero que este seja um livro esperançoso, mas também um livro de alerta.

Robert Macfarlane deixa a superfície e entra dos glaciares azuis na Gronelândia.

Helen Spenceley

O que aconteceu há quase uma década que o motivou a escrever este livro?
Foi o ano de 2010. Houve aquele terramoto no Haiti, a plataforma Deepwater Horizon explodiu, os vulcões islandeses entraram em erupção. Isso parou tudo. E depois, no verão, os mineiros chilenos ficaram presos debaixo do deserto do Atacama — eram 33. Foi um ano em que o submundo veio à superfície de uma forma muito consecutiva. Lembro-me de estar agarrado aos dois fenómenos naturais e aos eventos humanos. A certa altura havia milhões de pessoas a seguir o caso dos mineiros chilenos, foi uma coisa que sugou a nossa imaginação.

O abismo olha de volta para nós e eu certamente senti isso muitas vezes. Acho que a ideia de conhecimento total é uma complacência, uma odisseia de tolice a que os humanos têm tendência. Saber que há um quarto da massa do universo que não conseguimos encontrar. Há um abismo no coração do nosso conhecimento material mais básico do universo. E isso deve estender-se a nós também porque somos profundamente misteriosos para nós mesmos.

Isso aconteceu novamente quando a equipa de futebol de rapazes ficou presa numa gruta na Tailândia, em 2018.
Curiosamente tinha acabado o livro nesse mês ou estava a escrever as últimas linhas dele e, quando isso aconteceu e percebi que estavam a salvo, voltei atrás e acrescentei esse episódio ao livro porque era outro mito em construção.

Nessa altura, após o resgate, as crianças descreveram como o tempo parecia passar de forma diferente dentro da gruta. Teve a mesma sensação nas suas aventuras?
Ah, sim! Senti. Às vezes, quando voltava à superfície, parecia que o tempo era como num livro de contos de fada, porque parecia que tinha estado ali dentro durante dias a fio ou mesmo semanas, quando tinham sido apenas algumas horas. É, aliás, por isso que o livro está dividido em câmaras e cada capítulo é uma câmara onde se vai lendo o capítulo e o tempo se vai comportando de forma estranha. Andamos de cena em cena, muitas vezes atravessando dezenas ou centenas de anos. Isso foi exatamente uma tentativa de deixar que o leitor sinta isso: de o tempo estar distorcido e a correr de forma diferente do que no solo.

Falávamos há pouco sobre como a exploração do mundo subterrâneo causa tantas vezes uma sensação de claustrofobia. Também teve esse problema ou melhora à medida que nos habituamos a estar lá em baixo?
Houve alguns momentos de claustrofobia, incluindo um em Paris em que estava bastante fundo e o corpo estava… parecia comprimido. Depois passou um comboio por cima de nós e isso foi bastante… Ainda sinto aquelas vibrações no meu corpo, ficou como uma memória corporal. Mas a escuridão no subsolo é uma coisa lindíssima porque é táctil. É uma coisa muito boa de se experienciar.

Há aquela frase muito famosa do Friedrich Nietzsche: “Se fixarmos o olhar durante muito tempo no abismo, ele olha de volta para nós”. Concorda? E será isso necessariamente mau?
Concordo. O abismo olha de volta para nós e eu certamente senti isso muitas vezes. A ideia de conhecimento total é uma complacência, uma odisseia de tolice de que os humanos têm tendência. Saber que há um quarto da massa do universo que não conseguimos encontrar. Há um abismo no coração do nosso conhecimento material mais básico do universo. E isso deve estender-se a nós também porque somos profundamente misteriosos para nós mesmos. Isso fascina-me, é uma coisa boa olhar para o abismo de vez em quando e que ele olhe para nós.

Odessa tem umas catacumbas labirínticas que são ainda maiores que as de Paris, muito maiores. Mas tem má reputação, já muita gente morreu lá dentro perdida ou abandonada. É um pouco perigoso e aí não queria ir. Preferia ter ido a Lascaux e Chauvet para ver a arte rupestre, mas não estão abertos a visitantes e fazem bem. Mas, quer dizer, o livro teoricamente é infinito. Podia ter escrito outro.

Houve lugares que explorou ilegalmente.
Acho que só um: precisamente as catacumbas de Paris.

Mas elas são visitáveis. Porque é que teve de as explorar assim?
Porque há 321 quilómetros de catacumbas e só meio quilómetro é que é acessível para o público que paga bilhete. Há toda uma subcultura, uma grande subcultura que está ali debaixo e que está lá há centenas de anos. Os espeleólogos com que fui levaram-me por um buraco que abriram quando a polícia fechou o que já lá existia. Fui dar a um corredor de calcário com graffitis com mensagens anti-fascistas e caveiras. Mas senti-me muito tranquilo porque nenhum dano foi provocado. Não causámos riscos. Não tenho qualquer problema em ter acesso a esse espaço e a essa parte da história de Paris.

FRANCE-ARCHITECTURE-HISTORY-CATACOMBS

Paredes grafitadas na parte interdita das catacumbas de Paris.

GEOFFROY VAN DER HASSELT/AFP via Getty Images

Considera esse um lugar inesquecível, seja no bom ou no mau sentido?
Sim, mas há outros. Um sítio que me assombrou foram os campos de assassínio em massa em Itália, as colinas chamadas “foibe”, onde as pessoas eram empurradas para uns buracos fundos no calcário, algumas mortas, outras ainda vivas. Ver estas paisagens que eram usadas para matar desta forma é… O submundo estão tão cheio de fealdade — ainda há as fendas nos Estados Unidos onde se depositou lixo nuclear que vai continuar radioativo por milhões de anos, mas aí não entrei, claro — como de maravilhas. Fiquei também estupefacto com os laboratórios de matéria negra, onde os astrofísicos estão a estudar o pedaço perdido do universo e têm de descer cerca de uma milha [1,6 quilómetros] para ouvir os sons mais silenciosos que o universo faz.

Proposed Radioactive Waste Site in Nevada STORY MATCHER-This undated image obtaine

A Montanha Yucca tem áreas de armazenamento de lixo nuclear depositado em camadas geológicas profundas.

Getty Images

No livro admite que sentiu vontade de entrar na fenda cheia de lixo nuclear. Houve sítios onde se recusou mesmo a ir?
Odessa tem umas catacumbas labirínticas que são ainda maiores que as de Paris, muito maiores. Mas tem má reputação, já muita gente morreu lá dentro perdida ou abandonada. É um pouco perigoso e aí não queria ir. Preferia ter ido a Lascaux e Chauvet para ver a arte rupestre, mas não estão abertos a visitantes e fazem bem. Mas o livro teoricamente é infinito. Podia ter escrito outro.

O ponto mais baixo que atingi sem ajuda foi um quilómetro de profundidade e foi no rio Timavo, em Trieste, onde se desce por um buraco que a água escavou no calcário. Em Paris fiquei nas catacumbas durante dois dias e meio, foi a estadia mais longa. Não é sítio para se morar em Paris. Mas fez-me pensar que as coisas que nós mais amamos damo-las ao submundo. Damos-lhe os nossos falecidos, as coisas que achamos mais preciosas, porque sabemos que ele vai cuidar deles.

Há aquela pergunta muito comum sobre que objetos essenciais levaríamos para uma ilha deserta. O Robert menciona dois objetos que levou para estas grutas: um cofre de cobre e uma coruja talhada em barba de baleia. Porquê?
Esses objetos foram-me dados por um amigo meu que estava muito doente. A coruja era como uma Minerva — eles veem no escuro, certo? Ele sabia que eu ia estar muito tempo lá em baixo e levei-a para quase todo o lado como um amuleto, até porque era muito pequena. Ainda a tenho. O cofre também era um objeto muito simbólico, muito ritualista. Ele queria que lá dentro estivesse toda a doença dele, suponho eu, e todas as coisas que o atormentavam, e pediu-me que despachasse essas coisas. Realmente foram os dois lados no submundo: o sítio onde se vai para descobrir e o sítio onde se vai para nos livrarmos de algo.

Onde é que deixou o cofre?
Ele pediu-me que me livrasse dele no sítio mais profundo a que fosse. Não vou dizer qual foi, isso é para o leitor descobrir.

O seu amigo recuperou?
Recuperou!

Diria que o mundo subterrâneo foi hospitaleiro para si?
Bem, nunca fiquei lá em baixo muito tempo. O ponto mais baixo que atingi sem ajuda foi um quilómetro de profundidade e foi no rio Timavo, em Trieste, onde se desce por um buraco que a água escavou no calcário. Em Paris fiquei nas catacumbas durante dois dias e meio, foi a estadia mais longa. Não é sítio para se morar em Paris. Mas fez-me pensar que as coisas que nós mais amamos damo-las ao submundo. Damos-lhe os nossos falecidos, as coisas que achamos mais preciosas, porque sabemos que ele vai cuidar deles. E nem falo só de mortes: o Silo de Sementes em Svalbard é onde depositamos a agricultura mundial na esperança que ele a mantenha segura para o futuro. Esse dialeto entre a segurança e perigo é fascinante para mim.

International gene bank secures plant seeds

A entrada para o silo que mantém a informação genética das sementes para garantir a agricultura em caso de desastre.

picture alliance via Getty Image

O mundo subterrâneo é tanto sobre a morte como sobre a vida, é isso?
Sim. Isto tudo foi uma revelação para mim. Por exemplo, o “Wood World Web” descreve como o solo está cheio de sistemas e ecologias complexos. Quando estava a acabar o livro, os cientistas concluíram um estudo de cinco anos sobre a vida na crosta profunda e tornou-se claro que a vida microbiana sobrevive provavelmente a uma profundidade de 16 quilómetros. A biomassa da vida microbiana dentro da crosta é enorme, muito maior que a biomassa humana à superfície. É extraordinariamente diversa, de um ponto de vista genético, e nós não sabemos quase nada sobre ela. Então sim, tem tanta vida como morte. É uma boa forma de por as coisas.

Nenhuma paisagem fala com uma só voz. Se escrevesse só com as técnicas de não-ficção era como se estivesse só eu a falar, a dizer ao leitor o que deve pensar da paisagem. Isso seria problemático porque quero é contribuir com muitas vozes, muitos estilos, porque a paisagem também é complexa, um fenómeno com múltiplas leituras. Falar das histórias desses lugares tem de ser algo polifónico.

Escreveu no livro que julgou que esta seria a obra menos humana que criaria e que ficou surpreendido quando percebeu que era o contrário disso. Porque é que pensava assim e o que o fez mudar de ideias?
Pensava isso porque não vivemos no mundo subterrâneo por inteiro, por isso assumi que, quando deixasse a superfície, também deixaria o lado humano. Mas, na verdade, percebi cedo que era um sítio onde nos passamos a compreende, a ler os nossos passados e os nossos futuros. Estava a meio disto quando percebi que o “Mundo Subterrâneo” não ia ser um livro só sobre o passado, mas realmente ia ser um livro sobre o que estamos a fazer de nós, o nosso legado. E não podia ser de outra maneira porque gosto é de escrever sobre pessoas. Elas pessoas costumam referir-se a mim como um “escritor de natureza” e digo sempre que é tranquilo, desde que a natureza inclua tanto os passarinhos como o lixo nuclear e os glaciares. Mas ao falar com pessoas de outros países europeus estou sempre a ouvir que essa é uma categoria que não é muito comum fora do Reino Unido.

Porque é que acha que é assim?
Não tenho a certeza. Sei que na Alemanha, por exemplo, há uma longa tradição de escrever sobre a natureza a partir desta perspetiva tão poética como científica. Mas lá, os nazis usaram a natureza quase como uma forma de álibi ou máscara para muito do que estavam a fazer e tornou difícil para as pessoas escrever sobre natureza no período pós-Guerra. Nos últimos 10 anos, mais ou menos, é que está a surgir esta nova literatura natural na Alemanha. Enquanto isso, no Reino Unido, escrever sobre natureza já se faz há uns 1.500 anos.

Já estou um pouco velho para me tornar astronauta. Com o espaço nós podemos olhar para cima numa noite estrelada e podemos ver a luz a viajar por triliões de milhas até aos nossos olhos. Quando se olha para baixo não se vê um metro do mundo subterrâneo. Portanto acho que há coisas suficientes para me manter ocupado na Terra.

Quem é que o inspira na forma lírica com que escreve sobre natureza?
Um homem chamado Barry Lopez, um escritor americano que morreu no Natal do ano passado, foi uma grande inspiração para mim. O livro dele “Arctic Dreams” [em português, “Sonhos do Ártico”], que publicou em 1986, foi o que me levou a pensar na não-ficção como uma forma de câmara mágica, que se pode fazer qualquer coisa com a não-ficção, pode-se contar qualquer história e trazer tanto conhecimento usando técnicas da ficção. Pode-se usar poesia, lirismo, arqueologia, antropologia, física da matéria negra. O Barry fez-me pensar sempre nessas experiências. É que, ainda por cima, nenhuma paisagem fala com uma só voz. Se escrevesse só com as técnicas de não-ficção era como se estivesse só eu a falar, a dizer ao leitor o que deve pensar da paisagem. Isso seria problemático porque quero é contribuir com muitas vozes, muitos estilos, porque a paisagem também é complexa, um fenómeno com múltiplas leituras. Falar das histórias desses lugares tem de ser algo polifónico.

Robert Macfarlane na Gronelândia, um dos locais mais inesquecíveis que percorreu na investigação para este livro.

Helen Mort

Então como é que escolhe as palavras certas?
Ao longo de muito tempo, essa é a resposta. Reescrevo cada frase talvez umas 10 a 20 vezes — reescrevo-a e viro-a ao contrário e reorganizo páginas inteiras. Porque também sou muito interessado no ritmo das frases, por isso é que também trabalho tão de perto com os meus tradutores, para mim é uma coisa tão importante como é para a poesia. Particularmente nas páginas iniciais deste livro, investi muitas pessoas porque as tratei basicamente como um poema muito longo.

Já escreveu sobre montanhas e sobre grutas. Qual vai ser o próximo passo?
Preciso de estar no ar um bocado, por isso estou a fazer um livro grande sobre pássaros com o meu amigo, o artista Jackie Morris. Vamos partir para os céus com penas como asas. Depois disso acho que quero escrever algo grande sobre a vivacidade. A vivacidade dos rios e das montanhas e sobre como pensamos sobre a senciência e sobre “ser” na paisagem.

Como explorador por natureza, posso assumir que não vai haver um livro sobre espaço porque não há forma de apanhar um foguetão e simplesmente ir lá à descoberta?
Exato! Não, já estou um pouco velho para me tornar astronauta. Com o espaço nós podemos olhar para cima numa noite estrelada e podemos ver a luz a viajar por triliões de milhas até aos nossos olhos. Quando se olha para baixo não se vê um metro do mundo subterrâneo. Portanto acho que há coisas suficientes para me manter ocupado na Terra.

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