O desconforto com a colagem às medidas do Governo dos Açores levou a Iniciativa Liberal a pôr um ponto final no acordo de incidência parlamentar. A meses do orçamento e a uma distância considerável das eleições, os liberais pretendem uma ficha limpa e querem descolar-se da ideia de que são uma peça fundamental da governação de Bolieiro, que acusam de não ter cumprido o entendimento. Rui Rocha deu o ok e, com autonomia, o núcleo local votou por unanimidade e apresentou a decisão.
Quando Nuno Barata subiu ao púlpito para uma declaração política ninguém esperava o veredicto: a IL rompeu o acordo de incidência que assinou com o Governo dos Açores aquando das eleições, o que possibilitou que o PSD chegasse ao Governo regional e que o PS saísse do poder na região ao fim de 24 anos. Era o fim do entendimento, mas nada mais do que isso, tendo em conta que Rui Rocha já assegurou que o partido vai continuar a votar “caso a caso” e nem sequer deu o voto no orçamento de outubro como fechado.
A notícia caiu como uma bomba nas bancadas dos partidos que estão à frente do Governo regional — PSD, CDS e PPM. O único resquício de que podia estar alguma coisa para acontecer foi quando no dia anterior Bolieiro disse, sem que ninguém percebesse o alcance: “Não vacilo na minha liderança da coligação.”
A narrativa social-democrata é, no entanto, “surpresa sem aviso prévio” que, aos olhos das fontes do partido ouvidas pelo Observador, não deve ser vista como um drama. Em primeiro lugar porque os Açores têm um orçamento aprovado há poucos meses, que permite governar pelo menos até outubro, e, depois, porque este não é o primeiro sobressalto do género (o Chega já o fez).
Apesar de este ser mais um fator de instabilidade, o PSD relativiza a questão e joga com as cartas que tem, desde logo ao não se atirar para uma moção de confiança — que podia levar à queda do Governo regional caso os parceiros não a aprovassem. Foi o próprio José Manuel Bolieiro quem o disse, prometendo ser um “factor e referencial de estabilidade” ao “continuar a cumprir o programa do governo”.
No Governo Regional, o posicionamento de Nuno Barata é visto como uma espécie de Chega 2.0 (no romper, mas continuar com um pé dentro) e, depois de vacinado, o PSD já não considera que haja falta de estabilidade ou que não existam condições para governar. “O Chega também rompeu o acordo e continuou a votar a favor”, recorda uma fonte ouvida pelo Observador, numa comparação entre as duas situações.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a situação política nos Açores.
https://observador.pt/programas/a-hist-ria-do-dia/o-governo-dos-acores-vai-cair/
Um copo liberal cheio das “trapalhadas” do Governo regional
Não há uma gota de água que explique tudo. O Observador sabe que o núcleo da IL nos Açores há muito que se sentia “desconfortável” com várias situações associadas ao Governo regional. O “mal-estar” foi crescendo ao longo dos últimos meses, sendo alimentado por aquilo que é descrito como “trapalhadas” dos partidos da coligação, mas também pela falta de respostas e nas “incongruências” que os liberais viam.
A necessidade de se afastar de decisões vinculadas ao Governo regional falou mais alto e a IL decidiu fazê-lo “muito antes do orçamento e das eleições” com o intuito de se descolar da coligação e de ter uma espécie de ficha limpa no momento de ir às urnas — quando ele acontecer.
Os testemunhos nas ruas, em que a IL se foi vendo colada às opções de Bolieiro pelo apoio à governação, pesaram na decisão, mas também os acontecimentos dos últimos dias, nomeadamente a demissão do secretário regional da saúde e o facto de a nova secretária regional da Saúde ainda não ter tomado posse e “já lhe [terem metido] um fiscal à perna, nomeado à pressa antes que se pudesse opor a tal nomeação”.
A visita de Rocha e a decisão por unanimidade
Rui Rocha chegou aos Açores num voo que se atrasou devido ao mau tempo, mas ao aterrar apercebeu-se que havia uma tempestade política pronta a acontecer no arquipélago e que os membros tinham atingido um limite. Os liberais açorianos pretendiam colocar um ponto final no acordo e Rui Rocha não se opôs.
O Observador sabe que a autonomia do núcleo falou mais alto, mas que houve a concordância do presidente da Iniciativa Liberal que pisava pela primeira vez aquelas ilhas desde que foi eleito. A preocupação do presidente era só uma: que sejam cumpridas os ideais da IL, nomeadamente as linhas vermelhas firmadas na moção que levou a votos (leia-se: nada de acordos com Chega nem com o PS).
A decisão final foi tomada quando Rui Rocha já não estava nos Açores, durante uma reunião do grupo de coordenação local na qual o rasgar do acordo foi votado por unanimidade. Tomada a opção, era preciso apresentá-la e os liberais optaram por fazê-lo na assembleia legislativa dos Açores.
O primeiro passo para descolar do PSD
Nuno Barata, deputado único da IL, pôs um ponto final no acordo através de uma declaração política no Parlamento dos Açores. Garantiu que o partido fez “todos os esforços” para cumprir os acordos e levar o entendimento “até ao fim”.
Um por um, passou em revista os dez pontos que PSD e IL negociaram para firmar um acordo e acusou o Governo regional de “hipotecar a própria autonomia” e de “constrangir os autonomistas convictos que dentro do PPD/PSD ainda existem”.
“No meio da turbulência que é este Governo regional do PSD, do CDS e do PPM, que não cumpre com os parceiros de incidência parlamentar, como também já não cumpre com este Parlamento, a Iniciativa Liberal não se contenta com isso e sabe que não pode carregar culpas desses incumprimentos da coligação para com os Açores e os açorianos”, acrescentou o representante da IL.
Nuno Barata está certo de que os liberais fizeram “parte desta solução”, mas sentiram que estava no momento de se libertarem “desta amarra“. E justificou: “Até porque não faz sentido a Iniciativa Liberal continuar a confiar num Governo, em cuja maioria dos sociais-democratas desta região deixaram de acreditar e em que parte significativa dos açorianos não conseguem vislumbrar soluções.”
Era preciso distanciamento e o deputado da IL deixou claro que o partido não está disponível para “continuar a ser conotado” com as “decisões erradas e comportamentos erráticos” do Governo regional.
Iniciativa Liberal e deputado independente rompem acordo com o Governo dos Açores
Pouco depois de Nuno Barata anunciar a decisão da IL, Carlos Furtado, deputado que se tornou independente após ser eleito pelo Chega, também revelou que não está disponível para manter o acordo de incidência parlamentar. “Há incumprimentos e falta de respeito institucional. Desde que deixei o Chega há incumprimentos, fui tratado como um parente menor”, afirmou Carlos Furtado, realçando que vai “votar favoravelmente o que entender e contra o que entender”.
Direção “solidária”, mas com “sentido de responsabilidade”
Em Lisboa e longe do centro da tempestade, Rui Rocha não demorou a reagir a partir da Assembleia da República. Primeiro, para dar uma garantia de que nada havia sido descoordenado (como em tempos aconteceu com o Chega, o outro parceiro do PSD): “A Comissão Executiva da IL está solidária com a decisão do deputado e coordenador e do núcleo da IL.”
E depois para assegurar que não há espaço para irresponsabilidades, até porque a IL nem sequer tem a possibilidade de apresentar uma moção de censura por ter apenas um deputado único. Portanto, Rocha sublinhou que os liberais vão manter o “sentido de responsabilidade” e passar a “avaliar cada uma das propostas legislativas que o Governo apresentar”.
“Temos em outubro um orçamento. Se o orçamento ou as medidas trouxerem vantagens para os açorianos a IL, com sentido de responsabilidade, cá estará para viabilizar as boas propostas que sejam apresentadas”, afirmou, deixando uma margem até para viabilizar o último orçamento do Governo de Bolieiro.
Um Chega em rota contrária?
André Ventura acusa a Iniciativa Liberal de estar a fazer uma “jogada” juntamente com o PSD para “afastar a presença do Chega da governação dos Açores” e, aos olhos do líder do Chega, a IL está “pôr em risco um governo que conseguiu virar a página do socialismo”.
A garantia de “estabilidade” é dada pelo Chega, que promete não contribuir para o fim do governo, mas a postura do Chega é idêntica à que os liberais vão adotar: o deputado regional José Pacheco tem estado exatamente a votar peça a peça, depois de confirmar que tinha rompido o acordo. Na última Convenção do Chega, José Pacheco esclareceu, em entrevista ao Observador, que “o acordo acabou” e que o partido tem “andado passo a passo” e a trabalhar “por pacotes de iniciativas”.
Antes disso, muita tinta correu sobre o acordo nos Açores. Houve uma altura em que André Ventura anunciou que o Chega ia romper o acordo; depois o deputado José Pacheco veio desmentir e acabaram por assumir que havia “sintonia” e que o acordo era para manter. Pelo caminho, o Chega perdeu um deputado quando Carlos Furtado passou a independente.
PS à espera e pouco inclinado a liderar uma moção de censura
Com os acordos de incidência rasgados, abre-se a porta sobre uma possível queda do Governo. Sem a possibilidade de os deputados únicos apresentarem moções de censura e com o PSD a recusar a ideia de moção de confiança, sobram os outros grupos parlamentares, nomeadamente o partido que mais pode ganhar com a situação: o PS.
E os socialistas vão decidir nos próximos dias como responderão a esta crise política nos Açores, estando marcada para esta quinta-feira à noite uma reunião do secretariado regional do partido. A direção nacional seguirá o que for decidido ao nível regional, segundo apurou o Observador junto do partido.
A posição que os socialistas assumirão ainda não está fechada, embora as fontes contactadas pelo Observador não mostrem inclinação para ser o PS a liderar o avanço de uma moção de censura ao Governo regional. No partido olha-se para essa possibilidade com cautela, com receio do que possa significar eleitoralmente ser o PS a desencadear as eleições antecipadas.
Em declarações ao jornalistas na Assembleia da República, o líder parlamentar socialista Eurico Brilhante Dias considerou esta quarta-feira “evidente que a base parlamentar do governo em questão parece ter acabado e por isso não fará sentido que ele persista sem base parlamentar”. Mas os socialistas prefeririam que esse tiro de partida fosse dado por outra bancada parlamentar da Assembleia Legislativa — e nesse caso votariam favoravelmente o texto que fosse apresentado.
A decisão do Presidente da República
Pedro Catarino, representante da República nos Açores, vai deixar a Assembleia Legislativa Regional “seguir com os seus trabalhos e resolver o problema”. Em declarações à Lusa, o responsável que representa o Presidente da República no arquipélago, perante os últimos acontecimentos, optou por “não tomar nenhuma posição quanto a esta matéria” e “não fazer nenhum tipo de ingerência nos assuntos da Assembleia Legislativa Regional”, deixando as coisas “seguirem o seu rumo normal”.
No momento em que deu posse ao Governo, Pedro Catarino revelava que os três partidos políticos que integram a coligação “mostraram-se igualmente confiantes na solidez do acordo que firmaram” e que os acordos com Chega e IL permitiriam “o compromisso escrito de um apoio parlamentar estável”.
Ainda assim, segundo o estatuto político-administrativo da região autónoma dos Açores, a última palavra é de Marcelo Rebelo de Sousa, sendo que a “Assembleia Legislativa pode ser dissolvida pelo Presidente da República, ouvidos o Conselho de Estado e os partidos nela representados”.
As eleições nos Açores estão marcadas para 2024 e até lá o Governo regional tem apenas um orçamento para aprovar, em outubro. Na última votação, o Executivo de Bolieiro não só conseguiu os votos de todos os parceiros como ainda juntou o voto favorável do PAN — o que pode ajudar nas contas que é preciso fazer em outubro.
Rui Rocha: “Não teria feito acordo dos Açores. E não o farei no futuro”