Quando se fala do início da cena free jazz em Lisboa, galvanizada pelo aparecimento da editora Clean Feed, em 2001, Amado estava lá, a assumir projetos como os Lisbon Improvisation Players ou a tocar, juntamente com Paulo Curado, ao lado de Steve Swell, Ken Filiano e Lou Grassi. Daí saiu o disco The Implicate Order at Seixal (2001), uma reforçada admiração por Swell e a noção de que, apesar da sua experiência ser parca até então, comparativamente à dos músicos com quem partilhava esse exercício de composição em tempo real, a única coisa que interessava era a música e a entrega total em palco.
Duas décadas e várias parcerias volvidas, entre as quais se destaca o trio formado com o contrabaixista americano Kent Kessler e o baterista norueguês Paal Nilssen-Love, olhando para as principais distinções internacionais no campo da música de improvisação, Rodrigo Amado volta a picar o ponto. Foi considerado em 2015 e 2017, pela prestigiada plataforma “El Intruso”, o melhor saxofonista tenor em atividade, à frente de ídolos como Joe Lovano ou Evan Parker, e nas votações dos últimos anos o seu nome tem estado sempre lá batido (em 2020 ficou em sexto, numa votação liderada pelo americano James Brandon). “Isso para mim só me dá uma maior responsabilidade e mais vontade de trabalhar, porque eu tenho a noção de que, apesar do meu nome estar ali nos primeiros lugares, os outros saxofonistas são brutais.”
O aplauso internacional não lhe incha o ego nem lhe tira o sono. De voz serena, t-shirt posta do outro lado do ecrã, fazendo uma pausa nas suas férias para falar com o Observador, Amado confidencia que ainda tem muito que pedalar. “Eu gostaria de tocar até morrer”.
Do jazz às raízes da música improvisada, passando pelo hip-hop
O miúdo lisboeta que pegou pela primeira vez num saxofone aos 18 anos, escapulindo-se das aulas para passar horas a improvisar e a ouvir grandes clássicos do jazz em casa de um amigo, é o mesmo que hoje toca ao lado dos ídolos que então rodavam incessantemente naquela saudosa aparelhagem. Com o veteraníssimo Joe McPhee formou o quarteto This is Our Language, que agora tem disco novo cá fora; com Alexander von Schlippenbach, pioneiro do jazz de improvisação europeia, transmutou de tal forma o palco do Vilnius Jazz Festival – ao lado do seu Motion Trio (Gabriel Ferrandini e Miguel Mira) – que o momento virou “milagre” e um disco, saído também agora, de fresco. E pela frente, enquanto trabalha em mais de dez álbuns ao mesmo tempo, promete preciosidades como o projeto com Larry Ochs, saxofonistas dos Rova Saxophone Quartet, a estreia em álbum do quarteto Northen Liberties, formado com três músicos noruegueses (Thomas Johansson, Jon Rune Strom e Gard Nilssen) e aventuras a bordo dos Refraction Quartet, partilhadas com João Almeida (trompete), João Valinho (bateria) e Hernâni Faustino (contrabaixo).
Possível também seria editar um disco mais próximo do hip-hop, como o próprio desvela, “é outro género de música pelo qual tenho um fascínio grande e estou sempre a ouvir”, e, dúvidas houvesse, basta recordar o ano de 2013, quando subiu ao Musicbox com Allen Halloween ou quando mais tarde, em 2017, colaborou com o rapper na versão Unplugueto de “S.O.S Mundo”.
Podíamos continuar a somar nomes – e porque não uma possível gravação do projeto que partilha com o guitarrista Ricardo Martins, Hernâni Faustino e o parceiro dos tempos dos Pop Dell’art, João Peste? – que esta viagem multidisciplinar iria desembocar invariavelmente numa palavra: consistência. É essa a sua grande preocupação e é aquilo que lhe vai mantendo a personalidade musical intacta, independentemente do estilo. Se falarmos de raízes, contudo, a seta vai disparar diretamente ao coração do campo da música improvisada, ora de origem europeia, ora de origem norte-americana: “São áreas nucleares para mim”.
Os dois álbuns que agora chegam ao mercado confirmam isso mesmo. São um movimento natural de uma carreira que teima em expandir sonoridades, como se a elasticidade técnica e a sensibilidade do músico fossem infinitas, universais. E será que não são mesmo?
The Field, o milagre da comunicação
Se em Let the free be men Amado dá continuidade ao trabalho desenvolvido em quarteto desde 2012 com Joe McPhee, Kent Kessler (contrabaixo) e Chris Corsano (baterista) – e dos quais há mais dois registos gravados: a declaração de princípios This is our language, em 2015, e o sucessor A History of Nothing (2018), onde o diálogo a quatro foi sublimado e ampliado – em The Field é bem claro o momento de celebração que aquele concerto de 2019 do festival lituano representou para os Motion Trio: “O facto de no momento em que aconteceu aquele concerto já não tocarmos há muito temo, deu uma dimensão de excitação e de prazer à música muito especial”.
Alexander von Schlippenbach terá percebido isso mesmo quando pousou os dedos no piano para guiar aquela sessão visceral que durou quase uma hora. Com os seus 81 anos de então, uma presença imponente e uma personalidade musical muito bem definida, foi ele que assumiu o comando da atuação, causando o desconforto com percussões rítmicas impositivas e dissonâncias que obrigaram Amado, Ferrandini e Mira a exercícios de contorcionismo técnico bem suados; mas também foi ele que suavemente se deixou fundir no fluxo musical do tiro, com a humildade que só os grandes génios sabem demonstrar, numa relação tão íntima e intensa que desencadeou uma autêntica batalha de ideias musicais em palco. “Aquilo foi quase um milagre em termos de comunicação, porque para um primeiro encontro termos chegado àquele nível de empatia musical é muito raro.”
Esse “campo de energia quase milagrosa”, como lhe chama Amado, inspirou o nome do álbum. Isso e uma foto que Rodrigo encontrou no seu arquivo fotográfico – ele que, nos raros momentos em que a música lhe dá tréguas, se dedica silenciosamente à fotografia, a sua outra grande paixão. A dita imagem, tirada em Los Angeles, mostrava um passeio rasurado com as palavras “The Field”, obra de um artista desconhecido que aproveitou o cimento de fresco para deixar ali a sua impressão. “Quando encontrei a fotografia, senti de imediato que aquilo podia ser aproveitado”. Fez uma maquete e assim ficou.
Uma noite especial
O instinto em Amado está muito bem apurado. Ele sabe – e sente na pele – quando uma gravação merece ser editada. No seu processo de reouvir coisas antigas, raramente muda de opinião sobre uma gravação arquivada na gaveta. A não ser aquela vez em que os Motion Trio tocaram com o pianista Matthew Shipp, em 2015, no Teatro Maria Matos. “Esse foi um dos raros casos em que isso aconteceu, mas a história é um bocado triste. Finalmente quando decidi que queria pegar nas gravações, elas tinham-se perdido, porque o técnico que gravou a sessão morreu e o arquivo dele perdeu-se”.
Porém, a história do concerto com McPhee, Kent Kessler e Chris Corsano na Jazzhouse, em Copenhaga, teve um final bem diferente. “Foi um dos concertos mais fortes da tour [da qual viria a sair também A History of Nothing, mas numa gravação de estúdio] e foi gravado numas condições absolutamente excecionais. Foi uma daquelas noites mesmo especiais e fiquei logo com a sensação de que tinha que utilizar aquela gravação no futuro”. O sentimento não mudou, mesmo quando o editor da austríaca Trost Records, que já tinha editado os dois últimos álbuns do quarteto, lhe perguntou se não seria melhor pegar numa gravação mais recente da última tour que tinham feito – e que inclusivamente passou pela Culturgest, em Lisboa, e pela Casa da Música, no Porto, em outubro de 2019. “Eu disse-lhe, sem hesitar, que não. Para mim não me interessa muito se é uma gravação que já tem sete, dez ou mais anos. Quando a música é especial e vale a pena ser editada, eu opto por fazê-lo, independentemente do tempo”.
O regresso aos clássicos
Amado sabe que aquilo que está a construir não é para o agora, mas para um futuro mais alargado. “Daqui a cinquenta anos vai ser completamente irrelevante se a gravação era de 2017 ou de 2019. Isso não interessa.” Sabe-o porque ele próprio continua a mergulhar nos clássicos, num exercício que tem tanto de urgência da primeira audição como de devoção atenta aos pormenores que estão nas entrelinhas e que só um estudo metódico consegue apanhar.
Rodrigo chama-lhe autoconhecimento e não se cansa de o aprofundar. A pandemia ajudou a cimentar o processo, dando-lhe o tempo e a calma para se fechar três a quatro horas no estúdio a estudar intensamente o saxofone. “Optei por fazer um regresso às minhas origens e aos clássicos que eu ouvia quando comecei a tocar saxofone. A minha ideia foi pegar numa série de composições – de Sonny Rollins a Don Cherry, passando por Joe Lovano – e tocá-las exaustivamente, conhecê-las de trás para a frente para começar a desconstruí-las, integrá-las no meu discurso improvisado e ver de que forma isso afetava a minha linguagem”.
O resultado principal, diz, foi um salto enorme em termos de técnica do instrumento que o levaram a mudar pequenos fraseados e abordagens. “Deu-me uma componente de sensibilidade um pouco mais apurada que eu não tinha. Os concertos que tenho feito baseados nesse processo de autodescoberta, tanto os a solo [Refraction Solo] como com o Refraction Quartet, têm sido reveladores nesse aspeto. Ou seja, é uma música com muita intensidade, com uma carga de energia muito grande, mas ao mesmo tempo muito contida. Estou mais longe da estética do grito e mais próximo de um free jazz de câmara”.
Reinventar-se para se libertar
Porém, rebobinando um pouco a cassete para trás, em Let the free be men, o que se sente é uma explosão de energia. “Embora tenha momentos muito calmos e contidos, o fio condutor da gravação é um fio de explosão emocional”, refere. Essa explosão está plasmada nos nomes dos temas e do próprio álbum: Resist!, Let the free be men, Men is woman is man e Never Surrender. A opção em dar ao disco uma componente de luta é abertamente assumida por Amado: “Em termos de retrocesso da liberdade do ser humano, eu acho que estão a acontecer coisas muito graves e, no fundo, o nome das músicas e do disco reflete isso mesmo.”
Em palco e em estúdio, num registo absolutamente livre de improvisação, Amado faz do seu free jazz um ato de resistência coletiva. Constrói e destrói ao sabor do seu saxofone, enclausurado apenas nas limitações da personalidade musical de cada músico com quem partilha o espaço – e olhando para este quarteto, mesmo com um Joe McPhee de 81 anos, as limitações são facilmente diluídas num curso musical catatónico, que vai de um pântano existencialista, de um sadismo carnal, até a uma ascensão interestelar e a uma celebração pagã, como se através da música se libertassem do peso terreno.
“Isso dá-me uma certa leveza e uma capacidade muito grande de aceitar as coisas tal e qual como elas são”, desabafaria já com a barreira entre a forma de encarar a música e a vida quase diluída. Para Rodrigo Amado, o mais importante é saber-se reinventar a cada dia que passa. “Não adianta preocuparmo-nos em demasia com as coisas, porque as coisas são o que são. O que adianta é lutar contra isso. As nossas ações individuais são muito importantes no todo e todos nós temos que fazer a nossa parte.” A dele está a ser feita de improviso. And all that jazz.