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A música, a literatura, a portugalidade e a ruralidade são ingredientes principais no cinema de Rodrigo Areias
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A música, a literatura, a portugalidade e a ruralidade são ingredientes principais no cinema de Rodrigo Areias

Octavio Passos/Observador

A música, a literatura, a portugalidade e a ruralidade são ingredientes principais no cinema de Rodrigo Areias

Octavio Passos/Observador

Rodrigo Areias: "Enquanto houver liberdade criativa, Portugal continuará a ter cinema"

Prestes a estrear “Surdina”, o seu novo filme (escrito por Valter Hugo Mãe), o realizador Rodrigo Areias fala da liberdade criativa e da desunião no setor, defende a regionalização e ataca o Governo.

Descobriu o rock n’roll antes da câmara de filmar e talvez por isso diga que a sua vida, tal como os seu filmes, “tem música a mais”. No dia em que fez 18 anos assinou o seu primeiro contrato discográfico e era feliz em cima do palco a dar concertos. Foi precisamente a fazer som que deu os primeiros passos no cinema, começou a trabalhar quando o Porto era capital da cultura, em 2001, e quase tudo abundava, as oportunidades de trabalho e as noitadas no Meia Cave.

Natural de Guimarães, Rodrigo Areias percebeu cedo que era possível viver da arte, fez curtas, videoclips e documentários, mas é nas longas e na produção que se concretiza profissionalmente. “Corrente”, “Estrada de Palha”  ou “Hálito Azul” foram alguns dos seus filmes mais premiados além-fronteiras, distinções que fazem currículo, mas que prefere não dar demasiada importância.

O realizador diz que os resultados comerciais dos seus filmes “são sempre miseráveis”, confessa estar fora desse “campeonato” e admite não alterar a forma como faz cinema para chegar a mais público. “Não tenho interesse nenhum em fazer um filme mais fácil e menos exigente para conseguir chegar a mais público. Não é esse o meu objetivo.” Aos 42 anos, já não tem medo das palavras e das suas interpretações, fala sem rodeios do presente que o incomoda, do passado que desvaloriza e de um futuro que vê com otimismo, apesar de tudo.

[o trailer de “Surdina”:]

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Para Rodrigo Areias, é tudo uma questão de liberdade criativa, algo que parece estar assegurado pelo facto de o Instituto do Cinema e do Audiovisual ser financiado pelo ministério da Cultura e não da Economia. “Enquanto houver liberdade criativa, Portugal continuará a ter cinema.” Lamenta, porém, a falta de educação audiovisual, a desunião no setor e as políticas culturais de um ministério “incapaz”. É nesta insatisfação permanente que vive e faz questão de não ficar parado.

“Surdina” é o seu primeiro filme feito a partir de um argumento escrito por outra pessoa, neste caso Valter Hugo Mãe, sendo “uma homenagem” à sua terra natal e a pessoas reais com quem se cruzou. A ideia estava na gaveta há 10 anos e em março de 2018 saiu para as ruas de Guimarães para ser rodado e contar a história “de um amor que chega mais tarde na vida”.

Protagonizado por António Durães, Ângela Marques e Ana Bustorff, esta “tragicomédia minhota” tem estreia marcada para 9 de julho e a partir do dia 10 irá percorrer várias salas do país em formato de cine concerto, onde será possível ver o filme e ouvir ao vivo a banda sonora, assinada pelo músico Tó Trips.

Quis ser músico, estudou gestão, mas acabou por se formar em som e imagem. Onde se encontra no meio disto tudo?
Durante algum tempo a minha vida foi dedicada à música, aliás, fui músico profissional durante dois anos e isso teve uma influência grande naquilo que sou hoje. Percebi cedo que era possível viver de forma calma e sustentável a partir de algo que me dava imenso prazer, mas que era também uma grande maluqueira. Comecei muito cedo a tocar em bandas e a dar concertos, lembro-me que o primeiro contrato que assinei foi à meia noite quando fiz 18 anos, era um contrato discográfico. Teve piada porque estávamos todos à espera que eu fizesse 18 anos para o poder assinar e, claro, já estamos ligeiramente alcoolizados. No fundo, acho que é um processo que começa cedo e coincide com a altura em que começam os festivais de música nos anos 1990, o Sudoeste, o Paredes de Coura, a Expo 98. Tocava numa banda chamada Blue Orange Juice e nesses dois anos estudei gestão.

Porquê gestão?
No meu tempo não existiam grandes hipóteses, era medicina, direito, gestão ou artes. Só me fez bem escolher gestão, hoje em dia produzo tantos filmes e fez-me jeito, até porque optei por várias cadeiras de direito também. Não cheguei a terminar o curso, fui para Nova Iorque uns tempos e quando regresso descubro som e imagem, achei que havia uma panóplia de possibilidade que podia explorar, entre a filosofia, a literatura, o cinema e as artes plásticas.

O cinema já o interessava de alguma forma?
O cinema interessava-me de forma particular, mas não sei se alguma vez antes de ter 17 ou 18 anos pensei que um dia viria a ser realizador de cinema, acho que não previ isto. Até aí só pensava em tocar rock n’roll, não imaginava o que viria depois disso. Foi tudo muito natural, mas sobretudo era muito motivado pela ideia de que era possível fazer alguma coisa que gostava verdadeiramente e transformar isso na minha profissão. No curso existia uma lista com 50 filmes essenciais e eu já conhecia 49 deles, aí percebi que já tinha visto muito cinema. É curioso, pois só tive essa perceção sobre mim próprio nessa altura. Depois comecei por fazer mais coisas de videoarte e outras mais ligadas a outro tipo de expressão não tão narrativa como o cinema.

"Por vezes o sotaque vimaranense pode soar agressivo mas não é, os palavrões são mera pontuação, e isso deixa as pessoas meias desconcertadas. A forma de estar mais bruta que um gajo tem cá em cima, sem grandes problemas ou complexos em relação a isso, não sei se me ajuda ou prejudica. Não perco muito tempo a pensar nisso."

Entra no cinema a fazer som, depois é assistente de realização e mais tarde produtor. Por que razão a produção é uma fatia importante no seu trabalho?
É importante ter a noção de como se produz porque lidamos fundamentalmente com dificuldades. Quando fazemos um filme, é necessário ter consciência das limitações com as quais nos vamos deparar e ter noções de produção é fundamental. O tipo de cinema que fazemos não é o cinema em que o produtor encontra os meios que sonha para um projeto, é exatamente o contrário. É uma forma de adequar aquilo que é possível aquilo que é desejável, é para um realizador gostar daquilo que tem e não querer aquilo que não tem. Começo a fazer som para o Edgar Pêra e com o Paulo Rocha, a criar relações e a aprender. De repente era um miúdo e estava a dirigir o som em longas metragens.

Começa a trabalhar em plena Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura. Como foi essa época?
Vivia e estudava no Porto e a cidade era uma loucura que não voltou ser em termos de produção cultural. Havia uma energia que finalmente ia explodir, todos os dias existiam coisas. De madrugada estava num filme, tarde e noite noutro, o meu grau de insanidade era este. Com aquela idade não se diz que não a nada, eu nem queria saber se me pagavam ou não, queria era trabalhar. Era tudo muito vibrante, depois ainda se saía à noite, íamos para o Meia Cave estragarmo-nos até entrar noutro filme de manhã. Foi uma sorte.

Disse numa entrevista que o só se faz currículo a fazer filmes, mas há a ideia instalada de que é difícil fazer cinema em Portugal.
Fazer cinema é difícil em qualquer parte do mundo, depois há a ilusão de que há sítios em que é mais fácil e eu acho que não. Acho que vivemos de uma liberdade criativa sem comparação com qualquer país do mundo. É mais fácil fazer cinema em Portugal do que em qualquer parte do mundo, obviamente com menos dinheiro, mas com outro grau de liberdade e outro grau de respostas. A liberdade criativa é a nossa grande arma, até em termos de marca internacional, o que faz com que o cinema português seja considerado tão pujante. Obviamente que Espanha não produz 15 a 20 filmes por ano, faz 120, mas dos 15 ou 20 filmes portugueses por ano, 10 têm uma repercussão mundial e em Espanha não há 60 filmes que façam isso. Portugal tem uma taxa de sucesso daquilo que é a internacionalização do seu cinema muito acima de média e isso deve-se à liberdade.

“Surdina” é o primeiro filme de Rodrigo Areias com um argumento que não é seu, neste caso é de Valter Hugo Mãe e é “uma homenagem” à terra natal do realizador e a pessoas reais com quem se cruzou

Como assim?
O nosso modelo de financiamento está alicerçado no Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), que por sua vez está dentro do Ministério da Cultura e não há qualquer dúvida em relação a isso. Não é o Ministério de Economia, não é o estímulo à criação de empresas, é à criação artística. Isso dá-nos uma liberdade espetacular e os resultados estão à vista. Obviamente que oscilamos, basta um ano em que cancelam os financiamentos para estarmos a retroceder cinco ou seis anos e depois precisamos de outros tantos para chegar aquele ponto, mas tirando esses percalços, funciona. Se nos compararmos a nós mesmos, nunca estivemos tão bem. Nunca houve tanto cinema, nunca houve tão bom cinema, nunca existiram tantas oportunidades para jovens realizadores e novas empresas. Se não nos compararmos com aquilo que sonhamos ser, é diferente, mas se pensarmos num processo evolutivo vivemos naquilo que é uma curva ascendente em termos quantitativos, qualitativos e democráticos.

Isso não é uma versão demasiado otimista? Ter meios financeiros permite errar mais, ou não?
Temos mais possibilidade de errar do que um inglês porque o dinheiro dele é privado. O controlo do BFI [British Film Institute] é sobre o argumento e a montagem, no ICA ninguém nos vem dizer “desculpe, mas essa frase não entra no seu argumento”. O BFI risca mesmo a folha, não estão a brincar. Não é censura, é controlo. Eles dão o dinheiro, mas querem que seja à maneira deles. Aqui ninguém te diz nada, somos livres de fazer o que nos apetecer. Concorremos com um projeto e tem de seguir mais ou menos aquelas linhas, mas não ficamos obrigado a nada. Há uma liberdade artística que nos é dada e isso não tem preço, não há dinheiro nenhum que compre isso.

Então o que explica a crise no cinema português nas últimas décadas?
O grave problema aqui é de ordem cultural, em que somos invadidos por uma imagem de um cinema. As pessoas gostavam de ter nascido no Califórnia ou em Nova Iorque, mas efetivamente nasceram em Rio Tinto ou na linha de Sintra e se não gostarem de olhar para si, de olhar ao espelho, então não conseguem gostar de cinema português. Esta é a questão. A incapacidade de haver uma relação do público com aquilo que se passa na tela tem que ver com a incapacidade de gostarem de si mesmos. Os portugueses foram educados, através da avalanche do cinema americano nos últimos 100 anos, que gostavam de ser outra coisa e não para conseguir ver a representação daquilo que são na tela. Isso é um drama, um drama cultural. Termos nos últimos 50 anos o prime time televisivo dominado por telenovelas faz uma coisa muito mais grave do que a destruição de uma cultura ou da capacidade de produção cultural. Faz aquilo que é controlo de comportamentos sociais, ou seja, as pessoas comportam-se como veem uma telenovela a comportar-se, porque não conseguem compreender que a vida não é bem aquilo.

Ainda este ano, o realizador quer terminar um documentário tem ainda mais três filmes a caminho, um deles é uma compilação de todas as suas curtas

Octavio Passos/Observador

Nos seus filmes há sempre necessidade em espelhar a realidade?
Entendo que, por falta de financiamento e até por contexto sociocultural, tenha havido durante quase 20 anos uma primazia sobre o cinema urbano depressivo lisboeta. Isso é o reflexo daqueles que faziam cinema, porque só se fazia cinema ali, por isso é natural que isso reflita a realidade daquelas pessoas. É normal que eu não queira fazer cinema lisboeta, não me identifico com aquilo. Vindo eu de Covas, Guimarães, faz sentido que a minha relação seja com a natureza, com a arquitetura, com a literatura, com a indústria, com a música. É normal que os meus filmes tenham música a mais, a minha vida também tem música a mais e literatura a mais. Aliás, a única coisa que eu faço na vida, além de fazer filmes, é gastar dinheiro em livros. Tenho uma biblioteca em casa, que é uma coisa antiquíssima para alguém da minha idade, é quase bizarro, mas para mim é fundamental.

O seu processo criativo pode vir dos livros?
Depende muito de filme para filme. Neste momento, estou numa fase da minha vida em que os filmes têm uma narrativa, têm uma história. A maior parte dos filmes que fiz passavam por conceitos, alguns deles por conceitos visuais, geralmente é um processo mais livre, em que a linha narrativa é muito ténue. A ideia é sempre fazer de conta que estamos a contar uma história, para quem vier cinema e quer ver uma história não se sentir defraudado, depois vamos curtir e fazer outra coisa. Na maioria das vezes, nem sabemos o que vai acontecer, nem mesmo os atores, é um processo construtivo.

Os prémios motivam ou condicionam?
Motivam sempre, é bom vermos o nosso trabalho reconhecido. Os festivais numa primeira fase são um objetivo, mas eles em si não são objetivo nenhum. São o início de um circuito comercial, o grande intuito é comprarem o filme e que ele seja distribuído nesse país, o que é cada vez mais difícil de conseguir pois os mercados estão a reduzir. As coisas são acumulativas de alguma forma, não acho que os filmes mais premiados sejam necessariamente os melhores, mesmo nas curtas. A avaliação do meu trabalho é sempre subjetiva, seja nos financiamentos ou nos festivais. Depende se nesse dia dormiram bem, se estão bem dispostos, se não têm problemas em casa. Efetivamente há um lado que é sempre subjetivo, vivemos sob critérios de avaliação relativos a vida toda. Não se pode levar isso muito a sério, não me posso agarrar muito a isso. Claro que os prémios são importantes no curriculum quando é para ser financiado pelo ICA, tal como as seleções, os festivais e as estreias comerciais. Os resultados comerciais dos meus filmes são sempre miseráveis, comparativamente com os filmes comerciais portugueses. Nem sequer é o meu campeonato.

Gostava que isso fosse diferente?
Sim, faço filmes para que sejam vistos, mas aquilo em que acredito, quer como produtor, quer como realizador, é que não devo alterar a forma como quero fazer filmes para chegar a mais público. Devo alterar a forma de chegar ao público para chegar a mais público, mas com o mesmo filme. Não tenho interesse nenhum em fazer um filme mais fácil e menos exigente para conseguir chegar a mais público. Não é esse o meu objetivo. As receitas para o sucesso de um filme comercial são mais ou menos fáceis, agora isso não me interessa propriamente. Quero fazer um filme que consiga chegar a mais gente não facilitando no resto. Nunca fiz um filme tão acessível como o “Surdina”. É feito com o objetivo de chegar a mais gente? Não. É o que me apetece fazer, até porque demorei muito tempo para chegar a este filme.

"António Costa, que sempre foi um tipo altamente sensível à cultura e ao cinema como presidente da câmara de Lisboa, só nomeia ministros da Cultura cada um mais incapaz que o outro. A atual revela não ter noção nenhuma dos problemas, o que ela demonstra não é apenas insensibilidade para os problemas, é mesmo desconhecimento."

Já disse que este é um filme diferente de todos os outros. Porquê?
É a primeira vez que escrevo um filme a partir de um argumento, de algo escrito por outra pessoa, neste caso o Valter Hugo Mãe.

Estava mesmo há 10 anos na gaveta?
Sim. Em 2008, quando estreei o “Corrente” em Vila do Conde, e acabo por ganhar dois prémios, o Valter estava nessa sessão. Não o conhecia. Depois li o primeiro romance dele, O Remorso de Baltazar Serapião, gostei muito e fui falar com ele. Conversámos a partir daí, ele fez uma primeira versão do argumento em 2009. Foi ter comigo a Guimarães e eu mostrei-lhe os cenários onde queria filmar, a zona histórica e a zona mais rural. Rodámos o filme em março 2018, choveu esse mês inteiro, temos planos de sol em que 30 segundos antes estávamos a levar com granizo na cabeça. O “Surdina” tem uma nuance muito particular, até pela questão geracional, relacionada com um amor que vem mais tarde na vida e é sobre essa esperança de ainda se poder amar.

Neste filme houve interesse em retratar um território, neste caso a sua terra natal, que até agora não foi muito explorado no cinema?
Sim, tem que ver com a minha relação com aquele lugar. As fábricas abandonadas em territórios rurais, mas que são abruptamente cortados por mostrengos arquitetónicos industriais, eu descendo efetivamente disso, das famílias que fizeram vida em fábricas no meio do campo. Nesse sentido, é algo que está ligado à minha realidade.

É uma homenagem?
Não sei, é uma necessidade de falar sobre algo que me toca especialmente. A minha realidade é aquilo, há, sim, uma homenagem a uma série de pessoas que também entram no filme, mas que não são atores e para mim era importante que estivessem no filme. Depois há atores a fazerem de pessoas que conheci naquele centro histórico, são réplicas totais da minha descrição sobre elas, do guarda roupa à maquilhagem.

Que circuito fará o filme?
Este caos apanha o filme na sua curva ascendente, no mês de março tinha quatro apresentações, ia a Paris e à Rússia, agora estamos a retomar calmamente. Já recebeu um prémio em Austin, no Texas, e dia 9 de julho irá para as salas. Dia 10 arrancamos com os cine concertos de norte a sul do país, primeiro em Guimarães e depois aqui no Cinema Trindade, no Porto. A ideia é passar o filme sem música e o Tó Trips tocar a banda sonora ao vivo. Já fiz isso com o Tigerman (Paulo Furtado) no “Estrada de Palha”.

Ana Bustorff e António Durães são os protagonistas de "Surdina"

Tem sido muito crítico relativamente à disponibilização gratuita da cultura online, dizendo mesmo que os downloads deixam artistas a morrer à fome. Acha que isto se resolve?
Não há salvação, não há uma educação audiovisual. Tenho filhos que acedem à internet e a impreparação das crianças é gigantesca face à avalanche de informação audiovisual com que são todos os dias agredidos. Ninguém está preparado para mudar o sistema de ensino, aliás, o sistema de ensino está muito mais próximo do século XIX do que século XXI, isto é um grande drama. Efetivamente as pessoas não conseguem decifrar aquilo com o qual são bombardeadas de manhã à noite, não conseguem identificar a intenção da pessoa que está do outro lado. Não há o desmontar tão básico como o princípio da propaganda, da publicidade e o que é que isso quer dizer.

Somos vítimas desse processo?
Consciente ou inconscientemente, transformarmo-nos em vítimas de um processo que conseguimos reconhecer que está montado e isso é um problema. Se não o soubermos combater, não seremos nunca mais do que vítimas. Significa que há aqui alguma inconsciência. Não acredito em teorias da conspiração, porque quanto mais lido com políticos mais entendo é que não há uma onda de corrupção instalada, há, sim, uma incapacidade, ineficiência e impreparação de quem nos gere. Sei perfeitamente que os filmes que faço são fósseis e eu já sou um dinossauro. Tenho 40 anos e sou um dinossauro porque aquilo que quero fazer já não se coaduna com os tempos de hoje. A questão é: chegada a esta idade apetece-me lutar contra ou ir na onda? A mim, hoje, apetece-me continuar a lutar contra, a fazer aquilo que tenho que fazer e acreditar nisso até ao fim, mas sei que serei acometido para salas de museu e isso leva a um problema em termos financeiros.

Como se lida com essa consequência financeira?
Existe um problema quando partimos de um pressuposto que aquilo que consideramos cultura é diferente daquilo que consideramos arte. O Ministério da Cultura talvez seja o reflexo disso mesmo, da incapacidade de perceber a diferença entre cultura e arte. Não é que todos tenhamos que fazer objetos herméticos, que não comuniquem e que só cheguem a três pessoas, não é esse o meu objetivo, mas enquanto produtor quando produzo os filmes do Edgar Pêra há 20 anos, penso: que filmes é que queremos fazer? Queremos mudar a forma? O que quero mesmo é que ele tenha a liberdade criativa para fazer o que lhe apetecer. Enquanto produtor, jamais o tentarei convencer a ser mais amigo do espectador porque acho que isso é desonesto. Como lido com a consequência financeira? Precisamente com a liberdade que temos, porque o financiamento é gerido por um instituto que por sua vez pertence ao Ministério da Cultura e não ao da Economia. Enquanto houver liberdade criativa, Portugal continuará a ter cinema.

Rodrigo Areias já viveu no Porto, em Lisboa e Nova Iorque, sendo agora em Guimarães, a sua terra natal, onde tem a sua base

Octavio Passos/Observador

Isso nunca esteve ameaçado?
Sim, várias vezes, há sempre ondas, mas também é preciso fazer aqui alguma justiça. Contra todas as expectativas, um governo PSD/CDS-PP é que aprova a nova lei do financiamento, estivemos 16 anos à espera. Passaram mais de quatro governos, dois de cada cor, e ainda assim, é um dos executivos considerados mais radicais dos últimos 40 anos, que aboliu o Ministério da Cultura, que consegue aprovar a lei do financiamento e salva o futuro do cinema português. As pessoas esquecem-se que não foi com um governo óbvio. Ainda agora, um homem como o António Costa, que sempre foi altamente sensível à cultura e ao cinema como presidente da câmara de Lisboa, só nomeia ministros da Cultura… cada um mais incapaz que o outro. A atual revela não ter noção nenhuma dos problemas, o que ela demonstra não é apenas insensibilidade para os problemas, é mesmo desconhecimento. É tudo muito fácil quando não há problemas, mas tem que haver um embate de frente para se perceber quem está preparado para assumir pastas. Esta ineficácia preocupa-me mais como cidadão do que como realizador, devo confessar.

Porquê?
Preocupa-me menos como realizador porque todo o processo do ICA está salvaguardado, ou seja, detém uma independência do próprio Ministério que provem das suas fontes de financiamento. É o único instituto nos 44 anos de democracia que não recebeu nada do Orçamento do Estado, isso pode parecer contraproducente, mas traz uma liberdade de decisão espetacular. Não estou preocupado se a minha empresa [a produtora Bando à Parte] vai à falência, honestamente, estou é preocupado se as pessoas com quem trabalho comem ou não comem no fim do mês. A precariedade no setor não é gigantesca, é total. Não há um mapeamento, não sabemos quantos somos e os sindicatos são residuais.

Não acha que deveria haver mais união no setor?
O segredo é sempre dividir para reinar, se cada um tiver que andar a apanhar migalhas para chegar ao fim do mês e sobreviver, estamos todos excessivamente preocupados a olhar para o chão e isso é um drama. É óbvio que há mais tensão entre as pessoas quando há menos financiamento e dificuldades. Todas as decisões deste Ministério são fraturantes, quando decidem fazer um concurso e não uma atribuição de financiamento, sabem exatamente o que isso quer dizer, vão colocar as pessoas umas contra as outras, vão combater para sobreviver. Isto não é sobre fazer uma peça com 30 atores ou com cinco, é sobre se como no fim do mês. O assunto é sério, a minha esperança é que as pessoas se consigam sindicalizar e organizar, cada um na sua devida categoria, até porque existe a possibilidade do mapeamento político do setor.

"Faço filmes para que sejam o mais vistos possível, mas aquilo que eu acredito, quer como produtor como realizador, é que não devo alterar a forma como quero fazer filmes para chegar a mais público. Devo alterar a forma de chegar ao público para chegar a mais público, mas com o mesmo filme."

O Rodrigo trabalha essencialmente a norte, tem receio que esta crise aumente o fosso entre o Porto e Lisboa?
O fosso já é tão grande, não sei se tem para onde aumentar. Temos um problema gravíssimo, que é comum nos países de terceiro mundo, que é a macrocefalia de só haver uma cidade. Esse problema só poderá ser combatido com a regionalização, sem ela o país não tem como avançar. Podemos estar aqui 100 anos a discutir o mesmo, o país é de tal forma centralizado que isto nem é uma questão, por vezes parece, mas realmente nunca foi. Porquê? Porque não interessa que assim seja.

Mas o seu trabalho seria mais fácil em Lisboa?
Sinceramente não sei responder, mas posso dizer que muitas mais pessoas poderiam fazer cinema no Porto se houvesse descentralização, embora também tenha um lado positivo, acho que também me beneficio muito por não estar em Lisboa.

Porquê?
Por um lado estou à margem de algumas questões, sou aquele que às vezes tem que fazer a viagem de Guimarães para Lisboa para produtores se sentarem à mesma mesa, ao mesmo tempo sou sempre visto como o outsider e isso tem muito a ver com a minha forma de estar e de ser, de dizer as coisas com frontalidade. Por vezes o sotaque vimaranense pode soar agressivo mas não é, os palavrões são mera pontuação e isso deixa as pessoas meias desconcertadas. A forma de estar mais bruta que um gajo tem cá em cima, sem grandes problemas ou complexos em relação a isso, não sei se me ajuda ou prejudica. Não perco muito tempo a pensar nisso.

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