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O procurador do Ministério Público (MP) passou a primeira sessão do julgamento do caso do triatleta com ar de quem tinha uma carta na manga. Mas teve de esperar uma semana até a poder jogar: só na segunda sessão é que Rosa Grilo disse tudo o que tinha a dizer. Nesse dia, e depois de também ele fazer uma série de perguntas, o procurador — até então recostado na sua cadeira, que ia rodando de um lado para o outro —, endireitou-se e colocou os óculos. A carta na manga era mesmo uma carta.
Tinha sido enviada por Rosa Grilo ao homem com quem mantinha uma relação extraconjugal, António Joaquim, em abril do ano passado — numa altura em que ambos já se encontravam em prisão preventiva por suspeitas de serem os coautores da morte de Luís Grilo e estavam proibidos de contactar um com o outro. A carta tinha sido colocada pela viúva dentro de um envelope que outra detida da prisão de Tires utilizava para mandar uma carta ao namorado — também ele detido na mesma prisão em que António Joaquim se encontrava, antes de ter sido libertado. Assim, o documento chegaria ao arguido, alegado co-autor do homicídio de Luís Grilo, escondida dentro da correspondência de outra detida.
Caso Luís Grilo. António Joaquim foi libertado por decisão dos juízes e não pelo pedido da defesa
De óculos postos, o procurador começou a ler a carta, arrancando exclamações de espanto às pessoas que se encontravam na audiência. “Sei que não é fácil para ti tudo isto. Sei que era dos teus piores receios. Só te posso pedir desculpa. Tenho muitas merdas para o julgamento”, leu. Questionada sobre o significado das suas frases, Rosa Grilo explicaria depois que queria “tranquilizar” António Joaquim, porque sabia que “ele não tinha feito nada”.
Seja qual for o significado, certo é que a carta foi uma das revelações do julgamento. Mas não foi a única: outras envolvem telemóveis e uma ida à garagem de Rosa Grilo. Do julgamento — realizado por um tribunal de júri — sobram algumas certezas, mas também muitas dúvidas. São pontos de interrogação que irão ser transformados em pontos finais esta sexta-feira, com a leitura da sentença. Isso, claro, se nenhuma das partes recorrer da decisão que vier a ser tomada.
Ao fim de 12 sessões do julgamento, e a horas de se saber se Rosa Grilo e António Joaquim serão considerados culpados ou inocentes na morte do triatleta, o que ficou esclarecido e o que ficou por esclarecer?
Da “canseira” da “Sra. D. Rosa” às estrias na arma. A versão de bolso do julgamento de Rosa Grilo
A certeza de que Rosa Grilo sabia dos seguros
A tese da investigação é a de que Rosa Grilo matou o marido com a ajuda de António Joaquim para ambos beneficiarem de cerca de meio milhão de euros dos seguros de vida de Luís Grilo. Mas, em tribunal, a arguida sempre afirmou saber da existência de apenas dois dos cinco seguros — algo que viria a ser desmentido por várias testemunhas. Desde logo, amigos com quem Luís Grilo praticava triatlo.
Dois deles garantiram que a vítima lhes chegou a confidenciar que tinha sido a mulher a reforçar os seguros e que, aliás, já há algum tempo insistia para o fazer. “A Rosa acabou de reforçar o meu seguro de vida. Andamos aqui nestes treinos malucos. Se acontecer alguma coisa, é uma forma de compensar”, terá dito, brincando de seguida: “Se acontecer alguma coisa, aquela gaja fica rica”.
Outro amigo recordou que, antes de morrer, Luís Grilo “só falava em seguros” e chegou a comentar que a mulher o tinha alertado para a necessidade de o fazer face ao perigo que corriam em provas e treinos. Lembrou até que, meses antes do homicídio, um dos atletas do grupo de amigos foi atropelado. “A Rosa tinha razão em fazer os seguros”, terá concluído Luís Grilo.
A convicção de que a alegada homicida sabia da existência dos seguros viria a ser reforçada, algumas sessões depois, quando o agente da seguradora foi ouvido em tribunal. A testemunha garantiu que Rosa Grilo não só sabia da existência de todas as apólices, como estava presente quando foram assinados os contratos e foi ela quem fez a transferência para os seguros serem acionados: o que viria a acontecer nos meses de junho e julho — altura em que o homicídio terá sido cometido.
“Que canseira”. As quatro contradições de Rosa Grilo que cansaram a juíza
O agente disse que chegou mesmo a reunir-se com Rosa Grilo, em maio, a pedido do marido. Que, nessa reunião, explicou “tudo” sobre os seguros e as suas condições. Nomeadamente, quanto dinheiro receberia caso Luís Grilo morresse. A arguida ter-lhe-á respondido que a “despesa” com os seguros era “grande”, mas que a “salvaguarda” também era. Quanto? “Meio milhão de euros”, disse o agente ao tribunal, adiantando que os valores dos prémios variavam consoante a causa da morte: assalto, acidente, doença. Mas, especificou, morte em caso de assalto teria “a cobertura máxima”.
A certeza de que foi encontrado sangue no quarto e que a mobília foi mudada
Um coordenador da PJ responsável pela investigação veio dizer em tribunal aquilo que a acusação já tinha revelado: que havia sangue no quarto onde Luís Grilo dormia, nomeadamente na cabeceira da cama. O quarto é, de acordo com a investigação, o local do crime e onde o triatleta terá sido morto com um tiro. Adiantou ainda que a casa tinha sido cuidadosamente lavada para eliminar qualquer vestígio.
Numa tentativa de justificar os vestígios de sangue, Rosa Grilo explicou que o marido muitas vezes se magoava nos treinos e que acabava por sujar a roupa de sangue — que despia e deixava naquele quarto, acabando por deixar marcas. Era, segundo explicou, naquela divisão que Luís Grilo deixava o seu equipamento de triatlo. Ainda assim, a juíza não ficou convencida e lembrou a arguida que o padrão das manchas de sangue detetadas sugeria que alguém tinha sido agredido violentamente na cama ou até mesmo alvejado.
A empregada de limpeza da família veio a tribunal dizer que detetou mudanças no quarto do casal, depois do desaparecimento do triatleta. A cama de casal tinha sido substituída por duas mais pequenas a faltavam objetos como tapetes, o colchão e uma colcha — o que, para a acusação, foi uma tentativa de eliminar eventuais provas. A viúva confirmou as mudanças no quarto, mas justificou-as: a sua mãe ia ser operada à anca e depois ia mudar-se para lá, com o pai. O objetivo de substituir a cama de casal por duas mais pequenas, disse, era que os pais dormissem separados, uma vez que, com a operação, a mãe teria dificuldades em mexer-se na cama.
A dúvida sobre a existência dos angolanos
Desde que foi ouvida em tribunal pela primeira vez, Rosa Grilo manteve sempre uma versão: a de que o marido foi morto por angolanos que lhe invadiram a casa em buscas de diamantes. O Ministério Público não a considerou credível, quando deduziu a acusação. Ainda assim, dois testemunhos prestados em tribunal vão na direção desta tese.
Na terceira sessão, Américo Pina, pai de Rosa Grilo, contou uma história que nunca tinha contado e que deixou o tribunal de boca aberta. Disse que também ele tinha sido atacado por angolanos quando estava numa zona de mato à procura do genro, alegadamente desaparecido. Segundo contou, alguém lhe tapou os olhos com as mãos e terá dito: “Tens a mania que sabes muito de Angola”. O homem terá sido depois atirado para um “buraco” junto à berma da estrada e ameaçado: “Se saíres daí e disseres alguma coisa, tu e a tua família vão todos”.
Duas sessões depois, foi uma amiga de faculdade de Luís Grilo a levar novamente o tema à sala de audiências. Num discurso confuso e entre lágrimas, a testemunha garantiu à juíza que o triatleta ter-lhe-ia confidenciado que estava a ser “ameaçado” por um “parceiro angolano”. Teria acontecido duas semanas antes do homicídio. E “nem a Rosa” sabia. A testemunha garantiu que contou tudo à PJ ainda durante a fase do desaparecimento. Porém, não quis assinar as folhas onde as suas declarações estavam transcritas, por medo. “Não assinei, mas passei a informação. Não me diga que só se investiga coisas que se assina?“, questionou, lamentando que a PJ não tenha investigado “o parceiro de Angola”.
Esta tese da defesa tem, ainda assim, algumas falhas. A começar pelo facto de ninguém ter visto os angolanos a entrar ou a sair da casa.
A dúvida acerca da arma do crime e o sangue lá encontrado (ou não)
Para a investigação, a arma de António Joaquim — uma pistola da marca CZ, de calibre 7,65 mm Browning — foi usada para matar Luís Grilo. Um dos argumentos era o facto de terem sido encontrados vestígios de sangue da vítima no cano dessa pistola. Mas a viúva tem uma justificação. Na sua tese, foi ela que, nos finais de junho, resolveu deslocar-se a casa de António Joaquim sem que este soubesse, para ir buscar a arma. Isto porque o marido lhe confidenciara que andava a receber ameaças. Com receio, explicou, ficou com a arma para defesa pessoal. Assim, quando os angolanos lhe invadiram a casa em busca de diamantes, apoderaram-se da arma. Rosa diz não saber se foi aquela a usada para matar o triatleta — mas, se foi, isso explicaria os vestígios de sangue.
Numa das sessões, a juíza pediu que fossem trazidas à sala de audiências as três armas apreendidas na casa de António Joaquim. “Recorda-se desta arma?”, perguntou-lhe. A resposta da arguida, no entanto, foi inesperada: “Não. Não foi essa a arma que levei. A que levei era mais clara”.
A juíza não teve então alternativa senão confrontar também António Joaquim com as três armas. Dali, ao contrário da dúvida suscitada por Rosa Grilo, houve uma resposta concreta: “É a minha CZ”. António Joaquim afirmou depois desconhecer que a co-arguida tenha levado a arma da sua casa, mas explicou que não tinha mais nenhuma em sua posse. “Só pode ser uma destas três”, garantiu, contrariando assim o que Rosa Grilo tinha dito minutos antes. Afinal, a CZ é ou não a arma do crime?
Ainda em relação à arma, outra dúvida que surgiu está relacionada com os vestígios de sangue encontrados (ou não) na pistola. A dúvida prende-se com o facto de, no relatório pericial realizado à pistola, estar escrito que existiam vestígios de sangue cujo perfil de ADN correspondia ao da vítima, no interior do cano.
Caso Luís Grilo. Arma do crime confunde o julgamento. “Não aponte para mim, meritíssima juíza!”
No entanto, um elemento do Setor de Local de Crime da PJ foi chamado a tribunal para esclarecer dúvidas dos jurados e explicar como foram encontrados esses vestígios. O perito detalhou, exemplificando com a sua arma, que a recolha não foi feita no interior do cano, mas na zona inicial do cano, que “só fica exposta no momento do disparo”. Explicou ainda que no relatório da perícia optou por se escrever apenas “interior do cano”, para simplificar.
A dúvida acerca de onde estava António Joaquim na noite do crime
Na tese da acusação, a hora da morte de Luís Grilo situa-se algures “no período compreendido entre as 19h42 do dia 15 de julho de 2018 e as 9h00 do dia seguinte”. Isto porque, segundo a investigação, António Joaquim desligou o telemóvel às 19h39 desse domingo e a última localização foi registada na sua casa, em Alverca do Ribatejo. Rosa Grilo desligou o seu às 19h42 desse mesmo dia, sendo a última localização na sua própria casa, em Cachoeiras. Só os voltariam a ligar na manhã seguinte, com pouco mais de uma hora de diferença temporal entre um e outro — uma sintonia que, para a PJ, é um indício de que os dois, àquela hora, estariam a cometer o crime.
Em julgamento, o arguido disse que não desligou o telemóvel: apenas deixou de fazer contactos com ele, uma vez que estava a dar atenção aos filhos, que, nesse dia, estavam com ele. A ex-mulher de António Joaquim garantiu também em tribunal que, na noite em que o homicídio terá acontecido, o ex-marido estava com os filhos — e que terá ido buscá-los na noite de domingo.
Os dois números de Rosa Grilo, o telemóvel do triatleta num prédio do Carregado e uma ida à sua garagem
Entre dúvidas e certezas, este julgamento trouxe também revelações, além da carta de Rosa Grilo para António Joaquim. Um militar da GNR, que realizou as primeiras diligências para encontrar o triatleta, por exemplo, foi inquirido e revelou que o telemóvel de Luís Grilo acionou uma antena num prédio no Carregado, pouco depois de a sua mulher ter participado o desaparecimento. Essa diligência não é referida na acusação, nem há qualquer referência na investigação ao tal prédio onde o militar da GNR diz ter estado.
Mais: Júlia Grilo, a irmã da vítima, adiantou ainda que Rosa Grilo tinha dois números de telemóvel — o que causou alguma surpresa ao tribunal. Que segundo telemóvel é este? E terá ele alguma informação que possa desvendar este mistério?
Outra revelação foi feita por uma amiga de treino de Luís Grilo e mulher do seu treinador, que recordou uma conversa que considerou estranha em tribunal. A testemunha explicou que, no sábado após o alegado desaparecimento, Rosa Grilo ter-lhe-á pedido para ir até à garagem. Lá, perguntou: “Achas aqui alguma coisa suspeita?”.
Sem perceber a que Rosa se referia, a testemunha reparou no carro que se encontrava ali estacionado, com as “janelas todas abertas e com a porta do porta-bagagem para cima”. Apesar de não ter comentado nada, acredita que a sua expressão facial quando olhou para o carro levou a arguida a justificar-se. Rosa Grilo terá então dito que tinha estado a lavar o carro porque tinha levado a cadela para as buscas e que esta se tinha sentido mal, acabando por vomitar — o que a testemunha, confessa, achou estranho, uma vez que já era hábito a cadela andar no carro.
A amiga de Luís Grilo descreveu a conversa que se seguiu — confusa e que não conseguiu reproduzir bem —, em que Rosa Grilo lhe falou de “uma zona escondida onde podia ter acontecido alguma coisa”. A testemunha disse ao tribunal que não percebeu aquela conversa, que achou “estranha”. O mesmo considerou a juíza. O que quereria Rosa Grilo saber e qual seria a sua intenção?