Um exemplo de “fé, esperança e caridade” e um “pastor cordial e próximo”. É assim que aqueles que têm trabalhado de perto com Rui Valério descrevem o novo patriarca de Lisboa e atual bispo das Forças Armadas. Com 58 anos, o sacerdote tem desenvolvido a sua ação pastoral sobretudo em paróquias de Beja e Lisboa, tendo também trabalhado em várias ocasiões junto dos militares. Enquanto bispo das Forças Armadas e de Segurança — uma função que lhe foi confiada em outubro de 2018 pelo Papa Francisco —, conseguiu que as missões no estrangeiro passassem a ser acompanhadas por capelães militares para prestarem apoio espiritual.
Na primeira mensagem enviada após o anúncio de que vai substituir Manuel Clemente como patriarca, divulgada esta quinta-feira pelo Patriarcado de Lisboa, o bispo referiu-se ao tema dos abusos sexuais na Igreja, assumindo a luta contra estes crimes como a sua bandeira e garantindo “tolerância zero” contra os mesmos. “Vamos prosseguir, com esperança, no caminho da cura total do vosso e nosso sofrimento”, afirmou, dirigindo-se diretamente às vítimas.
O novo patriarca de Lisboa escolheu como lema episcopal a expressão “In manibus tuis’ (“Nas tuas mãos”), algumas da últimas palavras proferidas por Cristo, que evocam “o abandono nas mãos de Deus”. As armas de fé vão incluir referências a Nossa Senhora de Fátima e ao carisma da família religiosa monfortina, junto da qual Rui Valério fez a sua formação. Membro da comunidade missionária monfortina, Rui Valério foi o primeiro monfortino português a ser ordenado bispo.
O padre da Urqueira que se tornou bispo das Forças Armadas e de Segurança
Rui Manuel Sousa Valério nasceu a 24 de dezembro de 1964, em Urqueira, no conselho de Ourém. Depois de completar o primeiro ciclo de ensino numa escola local, entrou no Seminário de Monfortino, em Fátima, onde permaneceu até terminar o ensino secundário.
Fundada a 2 de fevereiro de 1703 por S. Luís de Montfort, um missionário francês que se destacou pela sua devoção à Virgem Maria, os Missionários Monfortinos propõem, com base na experiência do seu fundador, “a consagração a Jesus Cristo através de Maria como a forma mais segura de viver os compromissos do batismo”, refere o seu site. A congregação está presente nos cinco continentes, onde desenvolve a sua atividade missionária junto dos mais desfavorecidos.
O novo patriarca de Lisboa frequentou o noviciado em Santeramo in Colle, em Bari, e depois a Universidade Pontifícia Lateranense, em Roma, onde obteve o bacharelato em Filosofia. Continuou os estudos de Teologia na Universidade Pontifícia Gregoriana, na mesma cidade italiana, onde se licenciou em Teologia Dogmática. Fez depois uma pós-graduação em Espiritualidade Missionária no Centre International Montfortain, em Lovaina, na Bélgica.
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▲ Rui Valério no Bairro do Barruncho, em Odivelas, em 2015
TIAGO PETINGA/LUSA
Em 1996, regressou a Portugal, dando entrada na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa. “Por motivos pastorais”, não pôde concluir a tese de doutoramento, com o tema “Cristologia Sapiencial e Sabedoria Cristológica em S. Luís de Montfort”.
Rui Valério foi ordenado sacerdote a 23 de março de 1991, em Fátima, tendo nas décadas seguintes exercido funções em diferentes dioceses e junto das forças militares.
Logo após a sua ordenação, tornou-se capelão militar no Hospital da Marinha, onde permaneceu um ano. A partir de 1993, foi coadjutor e depois pároco no concelho de Castro Verde, “dedicando-se particularmente aos jovens e à lecionação da disciplina de Educação Moral e Religiosa nas Escolas do Primeiro Ciclo”, refere a biografia divulgada pela Conferência Episcopal Portuguesa, citada pela Agência Ecclesia.
De 2004 a 2007, foi responsável pelo conjunto de paróquias de Almodôvar e, entre 2008 e 2011, capelão militar na Escola Naval. De 2011 a 2018, foi pároco da Póvoa de Santo Adrião. Em 2016, durante o Jubileu da Misericórdia, foi um dos 1.071 sacerdotes enviados pelo Papa Francisco como “missionários da misericórdias” às comunidades de todo o mundo.
A 27 de outubro de 2018, foi nomeado bispo das Forças de Armadas e Forças de Segurança de Portugal pelo Papa Francisco, cargo que desempenha até hoje. Foi ordenado bispo cerca de um mês depois, numa cerimónia presidida pelo cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, no Mosteiro dos Jerónimos. Rui Valério foi o primeiro membro português dos Missionários Monfortinos a tornar-se bispo.
O novo patriarca de Lisboa é atualmente delegado da Conferência Episcopal Portuguesa para as Relações Bispos/Vida Consagrada e membro da Comissão Episcopal Missão e Nova Evangelização. Durante dois períodos, integrou o Conselho da Delegação Portuguesa de Missionários Monfortinos. Ainda trabalhou no âmbito da Formação, enquanto responsável do Postulantado Monfortino de Portugal.
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▲ Rui Valério com o Papa Francisco no Vaticano
Divisione Produzione Fotografica; Francesco Sforza
Um homem “simples, direto”, de “superior inteligência”, que tem sido uma “grande fonte de inspiração”
Em dezembro de 2021, foi condecorado pelo chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, o general José Nunes da Fonseca, com a Medalha Cruz de São Jorge, de 1.ª classe. Na altura, foi destacada a “grandeza do seu caráter” e a “elevada estatura espiritual, que se têm constituído grande fonte de inspiração, nomeadamente no que respeita à motivação de bem servir”, citou a Ecclesia.
Numa mensagem publicada esta quinta-feira no site da Presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa agradeceu a Rui Valério “a dedicação constante e qualificada com que exerceu as suas funções nos últimos cinco anos” junto das Forças Armadas e de Segurança.
Mais tarde no mesmo dia, em declarações aos jornalistas no Algarve, o Presidente descreveu o bispo como “uma “pessoa muito dedicada”. “É muito simples, direto, frontal, muito terra a terra”, disse Marcelo, desejando “todas as felicidades possíveis numa missão que é muito difícil, que é ser patriarca de Lisboa”.
Em declarações ao Observador, o chefe de gabinete do chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, o major-general Rui Ferreira, descreveu o novo patriarca como uma pessoa jovial, cheia de energia e de “superior inteligência”, afirmando que “a ideia que os militares guardam de D. Rui Valério pode ser sintetizada em três palavras: espiritualidade, humanidade e proatividade”.
“A espiritualidade tem muito a ver com o conferir um sentido humano às missões”, explicou o major-general, recordando uma visita realizada pelo novo patriarca de Lisboa às tropas portuguesas na República Centro-Africana. “Além do profissionalismo, sentiu que era necessário cultivar e manter vivo o lado humano. É algo importante, de tal forma que pediu ao almirante que aquelas missões passassem a ser acompanhadas por capelães. E passámos a integrar capelães militares naquelas forças”, afirmou, destacando a importância de manter “o lado ético e moral” num cenário hostil.
Relativamente à humanidade, trata-se de “um homem que sente a humanidade num sentido de solidariedade com o próximo”, tendo procurado realizar atos de solidariedade usando para isso os meios das Forças Armadas. Proativo por natureza, Rui Valério “está em todo o lado”.
Isto tudo “acompanhado de um carisma (…) marcado por uma simplicidade como pessoa, nos atos”, à qual se associa o dom da palavra. O bispo prepara todas as suas intervenções com especial cuidado, “mas ao mesmo tempo com uma simplicidade desarmante”, constatou o major-general Rui Ferreira, que destacou ainda “o espírito solidário” do bispo e a disponibilidade para ouvir os outros.
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▲ Rui Valério com o ministro da Defesa Nacional, João Gomes Cravinho, na tomada de posse como bispo das Forças Armadas e de Segurança, em 2018
Manuel Almeida/LUSA
“Partilho da vossa dor e, juntos, vamos prosseguir, com esperança, no caminho da cura”
Na nota publicada no site do Patriarcado de Lisboa, Rui Valério, referindo-se a si próprio como um “pobre e humilde servo do Senhor”, confessou aceitar “o chamamento” para patriarca com “temor e tremor” e ciente da sua fragilidade e da “pequenez” dos seus “remos”, com que terá de guiar a “Barca imensa repleta de vida, de serviço, de santidade e de história missionária”.
Mostrando-se disposto a “escutar”, com “alegria no serviço”, o bispo saudou, numa mensagem tornada pública pela Conferência Episcopal Portuguesa, “os irmãos e irmãs vítimas de abusos por membros da Igreja”. “Partilho da vossa dor e, juntos, vamos prosseguir, com esperança, no caminho da cura total do vosso e nosso sofrimento, da tolerância zero.”
Nuno Caiado, subscritor da carta que impulsionou a criação da comissão para estudar os abusos na Igreja, considerou à Lusa que a mensagem do novo patriarca é “muito positiva” e que o tema “não é o único desafio que [Rui Valério] tem pela frente: há longos anos que a diocese permanece perdida, sem liderança e sem estratégia, pelo que a tarefa que tem pela frente é enorme”.
“Os católicos precisam de se repensar como Igreja e refletir seriamente sobre qual o seu papel na sociedade, e espera-se muito que se mobilizem nesse sentido”, afirmou. “O novo patriarca terá aqui um papel relevante, ou não, dependerá dele mesmo e de quem ele convocar como colaboradores e conselheiros: gente nova e fresca que pensa para além da sacristia e dos rituais, ou a própria sacristia. No fundo, tudo depende disto”, acrescentou Nuno Caiado.
Já quanto ao bispo escolhido para suceder a Manuel Clemente, o subscritor considerou que “parece obedecer a um critério relevante: não ter anticorpos na comunidade eclesial, ao invés do que sucedia com outros nomes; por outro lado, trata-se de alguém pouco conhecido na diocese. Esta conjugação pode favorecê-lo na sua ação pastoral, dar-lhe espaço de manobra, em especial no rescaldo da Jornada Mundial da Juventude”, que decorreu na semana passada, em Lisboa.
“Diria também que a sua mensagem inicial é de esperança, parece abrir caminho para o diálogo.”