Chamam-lhes “os coordenadores”. Os rostos oficiais das negociações bem que podem ser Michel Barnier (pela União Europeia) e Dominic Raab (pelo Reino Unido), mas são “os coordenadores” que se reúnem frequentemente, que trocam mensagens todos os dias e que partem pedra para chegar a acordo sobre cada palavra utilizada. Os dois são descritos por aqueles que os conhecem como muito inteligentes e respeitados — e são eles quem segura de facto as rédeas deste mustang chamado Brexit. Só que, apesar disso, gozam da vantagem de serem considerados “apenas” funcionários e não atores políticos. E, se alguma coisa correr mal, não serão responsabilizados em praça pública como Barnier ou Raab.
Chamam-se Sabine Weyand e Olly Robbins e são os dois rostos das negociações técnicas — ela pela UE e ele pelo Reino Unido — que tiveram como resultado este documento para a saída do Reino Unido da UE. O seu conteúdo é controverso e nada garante que o Conselho Europeu e a Câmara dos Comuns o aprove, sobretudo tendo em conta como muitos dos deputados mais eurocéticos o consideram uma capitulação à soberania de Bruxelas. O parto do texto, contudo, foi o mais bem sucedido desde o início das negociações, já que nunca antes o Reino Unido e a Comissão Europeia tinham estado tão perto de negociar um Brexit. E, só por isso, vale a pena perceber quem são as duas figuras responsáveis por esse entendimento — mesmo que ele tenha vida curta.
Sabine Weyand, a alemã bem disposta — e implacável
“O meu trabalho é este: o Reino Unido está a sair da UE e temos de organizar isto de forma a causar o menor dano possível.” A frase foi dita ao Politico pela própria negociadora, uma responsável de carreira dos círculos de Bruxelas que, aos 53 anos, enfrenta a maior negociação da sua vida. Há 23 anos na Comissão, Sabine já negociou matérias como acordos comerciais e políticas ambientais, por vezes em matérias que interessavam aos próprios britânicos, como realça o Euroactiv, referindo-se a um acordo comercial com os Estados Unidos.
[Veja no vídeo, em 2:08 minutos, a síntese do acordo inicial defendido por May]
Alemã nascida na cidade ocidental de Saarland, doutorada em Ciência Política pela Universidade de Tuebingen, Sabine teve contacto com a cultura britânica em 1986, quando passou um ano em Cambridge, dedicada a estudar Shakespeare. Diz que prefere as comédias do autor às tragédias — “os alemães TÊM sentido de humor”, garantiu uma vez no Twitter — e não se coíbe de usar as mais variadas expressões em inglês durante as negociações, como conta o Financial Times: já falou em magical thinking (pensamento mágico), unicorns (unicórnios), acordos à Canada Dry (uma bebida doce e gaseificada) e bollocks (uma expressão muito british que quer dizer qualquer coisa como “tretas” mas que literalmente significa “testículos”).
Check out these Diaries – Germans DO have a sense of humour. https://t.co/Al20Khacop
— Sabine Weyand (@WeyandSabine) January 18, 2018
Para além da descontração, humor e franqueza, não parece haver dúvidas também sobre uma coisa: Sabine é uma feroz europeísta, que monopoliza qualquer negociação e não quer ceder. “Ela é como uma kamikaze pela causa. É capaz de morrer por ela”, descreveu um colega ao Politico. Quando os negociadores britânicos, sentados à mesa, falaram pela primeira vez do Brexit como uma negociação em que ambas as partes podiam sair a ganhar, a alemã ter-se-á virado para um colega e comentado: “Quem é que eles querem enganar?”
Sabine pode ter um instinto assassino na negociação, mas é também graças a ela que esta negociação — da qual os britânicos dependem muito mais do que os europeus — ainda está de pé. De acordo com o Guardian, foi numa reunião europeia a 5 de outubro que Sabine fez uma proposta para ajudar a resolver o diferendo final sobre a fronteira na Irlanda: levar as negociações para “um túnel”, ou seja, fechar as conversações ao máximo, restritas a um grupo pequeno, sem intervenções externas nem fugas para a imprensa. “Temos de tentar”, declarou aos diplomatas europeus, que aceitaram a proposta. E, um mês depois, surgiu finalmente luz ao fundo do túnel.
A César o que é de César e, portanto, há que reconhecer o papel de Sabine Weyand em tentar levar as negociações a bom porto. Mas não se iludam: esta alemã não pretendia ceder uma vírgula em determinados pontos e assim o fez. No início do mês, o vice-primeiro-ministro irlandês tweetou que a Irlanda e a UE não poderiam aceitar uma estratégia de backstop para o problema da fronteira que pudesse ser cancelada unilateralmente pelo Reino Unido. Sabine retweetou a mensagem e acrescentou “parece que ainda é necessário repetir isto”. Menos de 10 dias depois, conhecemos o texto final acordado e o resultado é claro: qualquer saída da ‘rede de segurança’ que funciona como uma união aduaneira com a UE só pode acontecer se os dois estiverem de acordo sobre isso. Como Sabine defendia.
Oliver Robbins, o funcionário público em quem May mais confia
“É o ator mais importante do Brexit de que provavelmente nunca ouviu falar.” Foi assim que o Politico definiu Oliver Robbins (conhecido por Olly Robbins) ainda em 2016, num artigo intitulado “O verdadeiro senhor Brexit”. Dois anos depois, nada parece ter mudado substancialmente: os hardliners David Davis (ministro para o Brexit) bateu com a porta, Boris Johnson (ministro dos Negócios Estrangeiros) também, mas Olly mantém-se firme. Tão firme que foi graças à sua liderança nas negociações que May conseguiu apresentar um acordo ao seu Conselho de Ministros a tempo de poder ser discutido numa cimeira europeia ainda em novembro (se será aprovado ou não daí para a frente, é outra história).
Com apenas 43 anos, Oliver já trabalhou para quatro primeiros-ministros: Tony Blair, Gordon Brown, David Cameron e agora Theresa May. A todos parece ter agradado muito, o que explica a ascensão e manutenção tão perto das esferas do poder para um funcionário público, sem ligações partidárias. Com May, foi colocado diretamente a negociar as questões práticas do Brexit, tentando chegar a acordo com a UE para o Reino Unido não sair “a mal” — e teve até direito a um cargo criado de raiz, o de “conselheiro da primeira-ministra para a Europa”.
Se Sabine é descontraída, Olly é mais contido. Confia apenas em algumas pessoas mais próximas e olha com desconfiança para as fugas de informação. Aquando do caso Edward Snowden, teve um papel fulcral ao tentar levar o The Guardian a não publicar algumas das informações, como conta o próprio jornal. “É um segurocrata”, definiu um antigo governante ao diário.
Nascido em Londres, filho de uma funcionária pública, Olly seguiu as pisadas da mãe no serviço ao Estado, não sem antes passar pela Universidade de Oxford. Foi nessa instituição que ganhou a alcunha de Sir Humphrey (em homenagem à personagem da série “Sim, Senhor Ministro”) e foi presidente do Oxford Reform Club, algo que pesa sobre si hoje em dia. Porquê? Porque o Oxford Reform Club defende uma União Europeia mais federal — algo que é abominado por muitos dos ministros e deputados mais eurocéticos atualmente no poder no Reino Unido. É por essas e por outras que vários Brexiteers têm criticado repetidamente Olly, como o deputado Nigel Evans que o classificou como alguém “que tem a Europa a correr-lhe nas veias”.
O facto de um homem que pode ter uma visão pró-Europa a liderar as negociações incomoda — e muito — o círculo político eurocético. O próprio ex-ministro David Davis deixou claro ao Financial Times que Theresa May escuta com atenção todas as palavras do conselheiro: “A pessoa que ela ouvia mais sobre a Europa não era eu. Era o Olly”, disse, taxativamente.
As críticas, por isso, não tardaram. De tal forma que o responsável máximo pelo funcionalismo público, Mark Sedwill, reagiu numa carta enviada ao Times (jornal que chegou a apelidar o negociador de “Rasputine” pela sua influência discreta, mas eficaz, sobre a primeira-ministra). Sedwill acusou alguns eurocéticos de fazerem “ataques maliciosos” a um dos mais brilhantes funcionários do Estado britânico e fez a defesa da honra de Oliver.
Demasiado pró-europeu ou não, com tendências para o secretismo e de funcionamento em clique ou não, certo é que Olly conseguiu garantir um acordo para que o Reino Unido não saia à força e sem amparo da União a que pertence há mais de 40 anos. Em Downing Street reforça-se que a equipa negocial foi “o mais longe possível” que podia ir sem o outro lado ceder e May reforça que o documento “protege o interesse nacional”. Muitos dos deputados parecem discordar. O acordo para o Brexit nasceu esta semana, num parto difícil assegurado pelas mãos de Sabine e Olly. Mas, a confirmarem-se os rumores de descontentamento que correm nos Comuns, pode bem já estar morto à nascença.