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Mikko Paasi regressou a Tham Luang há um par de semanas. A gruta onde passou tanto tempo a bombear água e a atravessar as passagens apertadas entre as rochas submersas, com a água barrenta a dificultar a visão, continua no mesmo sítio. Só que agora, seis meses depois, está encerrada ao público. O mergulhador finlandês — um dos 13 que participaram mais de perto no resgate e que transportaram, junto ao seu corpo, os 12 rapazes e o treinador — não pode voltar a entrar ao local de onde, a 10 julho de 2018, saiu pela última vez. Como uma pessoa diferente, diz.
Em dezembro, enquanto recordava aos repórteres da televisão do seu país que o acompanhavam como foram aquelas duas semanas intensas, Mikko teve uma surpresa. Defronte da estátua de bronze ali erigida em homenagem a Saman Gunan, o fuzileiro tailandês que morreu durante as operações de resgate, estavam 12 rapazes, com idades entre os 11 e os 16 anos. Eram nada menos que os próprios Moo Pa (Javalis Selvagens), o nome da equipa de futebol a que os 12 rapazes pertenciam, a acenar-lhe enquanto sorriam.
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“Pela primeira vez, estive com eles com poucas pessoas à volta e pudemos conversar com mais calma. Aqueceu-me o coração”, recordou o mergulhador ao Observador, em conversa telefónica. “Eu vi-os magros, sedados, quando os tirámos daquele sítio. Ver como voltaram a ganhar peso, como estão de regresso à escola, como voltaram a jogar futebol… Não tenho palavras.”
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O momento leva-o de volta ao resgate de julho e a recordar como tudo aconteceu. Mikko, que vive há 20 anos em Ko Tao (sul da Tailândia), estava em Malta, local onde abriu uma subsidiária da sua escola de mergulho na Tailândia, quando ouviu pela primeira vez que 13 pessoas estariam presas dentro das grutas de Tham Luang, no norte do país. Foi então que começou a receber algumas mensagens e e-mails: primeiro de outros mergulhadores, depois das próprias autoridades tailandesas. “Foi aí que o telefone começou a tocar sem parar”, recorda. E Mikko tomou uma decisão: adiar a celebração do seu oitavo aniversário de casamento com um jantar à luz das velas e pôr-se num avião, acompanhado de equipamento de mergulho sofisticado que era necessário em Mae Sai, local onde se situa a gruta. A aventura tinha começado.
Foram 18 dias em que os 12 rapazes e o treinador Ekkapol Chantawong (conhecido por Ek) estiveram presos dentro dos intricados túneis de Tham Luang e em que, cá fora, o mundo aguardou, de respiração suspensa, que fossem encontrados e, por fim, retirados com vida. Parecia uma missão impossível. Os especialistas de mergulho mundiais repetiam todos a mesma ideia: retirá-los a todos com vida seria “um milagre”.
Na pequena cidade de Mae Sai, encaixada junto à fronteira com o Myanmar, vivem pouco mais de 20 mil habitantes. Em apenas poucos dias, essa população mais do que duplicou. Só em jornalistas, foram mais de mil tailandeses e profissionais de outros países tão longínquos como os EUA, a Índia ou Portugal que chegaram e trouxeram consigo as câmaras de televisão, os blocos de notas, as máquinas fotográficas — e as perguntas. Mas a eles somam-se outros números de pessoas bem mais relevantes para o sucesso do resgate: mais de 10 mil pessoas ajudaram na operação, entre mergulhadores (200), soldados (dois mil), representantes estatais (100) e voluntários civis que cozinharam, limparam e transportaram tudo o que ia sendo necessário.
As alegrias foram chegando a conta-gotas. Primeiro, dois dos mergulhadores encontraram o grupo — e todos estavam aparentemente bem. Depois, os rapazes começaram a ser retirados, em pequenos grupos. A cada chegada, em Mae Sai celebrava-se, mas de forma contida. Enquanto os restantes lá continuavam, ninguém ousava comemorar em pleno. Finalmente, a 10 de julho, o último rapaz e o treinador Ek chegavam à superfície, sãos e salvos. Entre os voluntários e os oficiais responsáveis pelas operações, sentia-se uma explosão de alegria, que os media — incluindo o Observador — relataram.
A história teve um final feliz e, por isso, ficou mesmo por ali. A cobertura mediática foi-se reduzindo lentamente, ao longo dos dias seguintes, à medida que os voluntários tailandeses limpavam a zona em redor de Tham Luang, eliminando os vestígios da presença de milhares de pessoas. Mae Sai regressou, também lentamente, à normalidade, enquanto os Moo Pa continuavam no hospital, mas eram avaliados como estando clinicamente bem.
Os estrangeiros apanharam aviões para regressar a casa e, em frente às televisões do outro lado do mundo, as pessoas iam fazendo o balanço de uma operação que parecia ter corrido quase sem mácula. Elogiava-se o caráter dos tailandeses e apontava-se também pontualmente o controlo férreo do regime militar tailandês. Mas tudo está bem quando acaba bem. E o que vem depois? Seis meses passados do resgate, o que aconteceu aos Moo Pa, ao treinador Ek, aos mergulhadores e aos habitantes de Mae Sai? Que impacto teve a história do salvamento bem sucedido nestas vidas? E nas nossas?
O que é feito dos rapazes? De volta à vida normal, mas com milhares de seguidores no Instagram
Os 12 Moo Pa e o treinador Ek permaneceram no hospital em Chiang Rai alguns dias, mas, ainda antes de o mês terminar, já tinham tido alta. Os holofotes, contudo, permaneceram sobre eles. Numa conferência de imprensa, quando tiveram autorização médica para voltar a casa, responderam às várias perguntas (pré-aprovadas pelas autoridades tailandesas e pelo serviço psiquiátrico do hospital) dos jornalistas. Aproveitaram para colocar os pontos nos is e corrigir as informações pouco precisas que circulavam.
Não tinham entrado na gruta para celebrar o aniversário de um deles, embora fosse o seu aniversário, mas sim por pura curiosidade, explicaram. “Eu estava entusiasmado porque íamos à gruta e ia ser uma aventura”, disse Pong, de 13 anos. “Foi entusiasmante. E um bocadinho assustador”, completou Titan, o mais novo do grupo, com 11 anos. O passeio devia ter durado apenas uma hora, mas foram apanhados de surpresa pela chuva. Foi um acidente, reforçaram. E lembraram que, ao contrário do que foi dito, todos sabem nadar. Pediram desculpa aos pais, agradeceram a atenção e o salvamento. E retiraram-se para o recolhimento das suas casas, em Mae Sai, e para o conforto da realidade que conhecem.
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Dom, o capitão de equipa dos Moo Pa, de 13 anos, acabaria por contar à Reuters como foi a noite em que regressou a casa. “A minha cama parecia tão quente”, confessou. Foi recebido por um grupo de familiares, alguns vindos da China, e amigos. Comeu um pouco de joelho de porco estufado com arroz, o prato com que andava a sonhar há dias. Soprou as velas pelo seu aniversário, assinalado muitos dias atrás (a 3 de julho), quando ainda estava dentro da caverna. Para trás tinha ficado o frio da gruta e a fome, que teimava em não desaparecer. Para trás tinha ficado o silêncio e a escuridão daquele buraco e a meditação que o treinador e ex-monge budista Ek os convenceu a praticar, para ajudar a evitar o pânico, e que muitos creem ter sido decisiva.
Tailândia. O budismo ajudou os rapazes a sobreviver na gruta?
A 24 de julho, o grupo reapareceu em público. No templo budista Wat Pha That Doi Wao, cumpriram a promessa que já tinha sido determinada pela maioria das suas famílias, como homenagem ao fuzileiro Gunnan: participaram numa cerimónia para se iniciarem como samaneras, ou seja, como noviços budistas naquele templo. Descalços, vestidos com robes laranja, aguardaram serenamente enquanto os seus cabelos iam sendo rapados. De seguida, entraram no templo durante algumas semanas para meditar.
A exceção foi Adul, o único dos rapazes que falava inglês — e que respondeu aos mergulhadores britânicos quando estes os encontraram e perguntaram se estava tudo bem. Como cristão, optou antes por participar numa cerimónia na sua igreja local. “Aprendemos coisas sobre o amor, porque recebemos amor de todos”, diria mais tarde, numa entrevista à cadeia de televisão ABC. “Sinto que todas as pessoas no mundo são como meus pais.”
https://www.youtube.com/watch?v=Fd7c8ZTm09I
De volta ao “mundo real”, os rapazes deram algumas entrevistas como essa à ABC, onde confessaram os seus desejos para o futuro: Mark gostaria de ser mecânico, Tle arquiteto. Bew preferia ser fuzileiro como o homem que morreu durante o seu resgate. E Adul gostaria de jogar futebol profissionalmente: “Quero ser como o Ronaldo e o Messi”, disse.
Na escola, os 12 receberam novos uniformes e livros, bem como equipamentos do Bayern de Munique. Os diretores cumpriram a promessa e prepararam para os rapazes um currículo escolar especial, adaptado. Os treinos de futebol dos Moo Pa também continuaram e os rapazes começaram a tentar recuperar alguma da massa muscular que perderam. Fora de Mae Sai, o mundo continuava interessado: Dom não conseguia deixar de se espantar com as centenas de milhares de seguidores que ia acumulando no Instagram e os rapazes surpreendiam-se quando recebiam visitas de equipas técnicas de clubes profissionais, como o Manchester City.
Meses mais tarde, as autoridades cumpriam nova promessa: a de atribuir cidadania tailandesa aos rapazes que não a tinham, embora tenham nascido e crescido na Tailândia, e ao treinador Ek. Os quatro fazem parte do grupo de mais de 480 mil pessoas “sem Estado” que vivem no país, segundo dados da ONU. São, na maioria, originárias de tribos nómadas ou de pequenos grupos étnicos que vivem entre a Tailândia, Myanmar, o Laos e a China. Muitos vivem ali em Mae Sai, cidade fronteiriça a dois passos de Myanmar e a três horas de distância do Laos. Em setembro, numa cerimónia oficial, os quatro receberam os valiosos documentos.
Embora tenha também recebido a cidadania tailandesa, do destino do treinador Ek, de 25 anos, pouco se sabe. Se, inicialmente, houve críticas de irresponsabilidade por ter entrado com os rapazes na gruta, os relatos de como o treinador manteve a calma e ajudou os rapazes a lidarem com a situação elevaram-no a um estatuto de herói altruísta — reforçado pela sua decisão de ser o último a ser resgatado. “Tentei não lembrar aos rapazes que estávamos presos numa gruta”, confessou durante uma das primeiras entrevistas que o grupo deu. “Só lhes disse coisas positivas. Dizia-lhes que tínhamos de esperar mais um bocadinho, que depois a água ia descer e íamos poder sair. Tentei que não entrassem em pânico; se eu lhes dissesse que estávamos presos, iam entrar em pânico.” E foi assim, com uma calma estóica, que Ek também conquistou os corações dos que acompanharam as notícias do resgate.
Os corações dos Moo Pa, contudo, continuam por desvendar, como admitiu um responsável do ministério da Justiça tailandês, dizendo que não são conhecidas as “feridas” que transportam depois deste evento. É por essa razão, explicou, que devem ser resguardados, restringindo o número de entrevistas que dão. Para que nem tudo tenha de ser vivido, a par e passo, com o resto do mundo. Apenas a alegria.
Romarias de turistas à cidade de Mae Sai. Homenagem a um evento que devolveu a fé na humanidade
Mas o efeito mediático deste resgate é, até certo ponto, incontrolável. Em Banguecoque, fez-se uma exposição intitulada “A Missão Incrível de Tham Luang: a Agenda Global”. Às autoridades tailandesas foram feitos, pelo menos, seis pedidos para produzir filmes que contem a história — um deles, “A Gruta”, estará numa fase mais avançada de produção e concentrar-se-á mais nas operações de resgate, nos mergulhadores e nas autoridades do que nos 13. E já são vários os livros escritos sobre o acontecimento, incluindo um escrito com a ajuda do próprio Mikko Paasi — Sukellus Valoon (título finlandês que pode ser traduzido para “Mergulhando em direção à Luz”).
Os mergulhadores, esses, foram nomeados como “Heróis do ano” pela revista Time em 2018. E os Moo Pa aproveitaram as férias escolares em outubro para responder a alguns dos convites mais mediáticos que lhes foram feitos: ir aos Jogos Olímpicos da Juventude em Buenos Aires, conhecer Zlatan Ibrahimovic no programa norte-americano da Ellen e passar algum tempo com toda a equipa do Manchester United.
A maior transformação provocada pela visibilidade desta história é, contudo, a de um lugar. Mae Sai nunca mais foi a mesma desde que os 13 foram retirados daquela caverna. Os campos agrícolas em torno do complexo de grutas de Tham Luang foram inundados por mais de 130 milhões de litros de água, bombeada para ali, a fim de esvaziar a gruta para ser mais fácil retirar os rapazes. Os estragos económicos para os produtores locais de arroz foram muitos; e, no entanto, só quatro de 19 agricultores afetados pediram uma compensação económica ao Governo. Alguns, como Archawin Mopoaku, reiventaram-se: em vez do cultivo de ananases, que foi afetado pela inundação, vende agora laranjas do seu pomar aos turistas, como contou a BBC.
O turismo revelou ser uma tábua de salvação para muitos destes habitantes da pequena cidade. Até então, as autoridades locais tinham tentado promover visitas às grutas de Tham Luang, destacando a beleza do altar a Jao Mae Nang Non, a deusa encarada como “espírito da gruta”. Reza a lenda que seria uma princesa que se apaixonou por um rapaz que trabalhava nos estábulos do palácio e que este acabaria morto pelos soldados do pai da princesa. Esta, com o desgosto, suicidou-se dentro da gruta de Tham Luang.
Mas nem o marketing que diz que aquela é “a gruta da senhora que jaz aqui à espera” tinha chegado até então para atrair muita gente; agora, após o resgate dos Moo Pa, tudo mudou. Segundo dados de um responsável local ao jornal Chiang Rai Times, a cidade recebe atualmente quase mil pessoas por dia durante a semana e quase o dobro aos fins-de-semana.
O mergulhador Mikko deparou-se com esse aparato quando regressou a Mae Sai, em dezembro, e encontrou as pessoas a tirar fotografias à entrada da gruta — embora ela permaneça fechada porque, como explica o finlandês, a maior parte do material utilizado no resgate ainda está lá dentro. Está feliz com esse desenvolvimento: “Eles são uma cidade muito pobre e esta é uma boa visibilidade para eles. As pessoas perderam os seus campos de arroz, o seu sustento, e portanto precisam disto”, explica. “Espero que as pessoas visitem apenas o lugar, como uma espécie de templo, mas não assediem os miúdos. Aquele deve ser um sítio onde regressamos para recordar o que conseguimos fazer quando nos unimos, não para os ver como se fossem animais num jardim zoológico.”
Também Mikko tenta regressar à sua vida normal. Continua a gerir as suas escolas de mergulho, a mergulhar e a passar tempo com a mulher. Nos dias imediatamente a seguir ao resgate, viajou para a Finlândia para estar com a família. “Nos primeiros tempos, rejeitei muitos emails da imprensa. Queria só voltar ao normal”, confessa. Mas a normalidade é relativa quando se ajuda a escrever um livro e sabemos que está a ser preparado um ou mais filmes sobre nós. Quando se recebe a Grã-Cruz de um país estrangeiro, tudo assume outra cor. “É claro que me senti muito bem, mas… Ao mesmo tempo, houve tanta gente a fazer aquilo e sinto que aquele tipo de medalhas têm de ser dadas a todos nós”, afirma.
Os tailandeses, diz Mikko, demonstraram-lhe sempre imenso respeito. E, portanto, para o mergulhador só há um caminho a fazer: tentar corresponder a isso dando o seu contributo através de um programa educacional para as escolas da Tailândia, que aproxime os mais novos da natureza e das grutas, mas com segurança. Ao mesmo tempo, o seu livro será, em breve, traduzido para língua inglesa.
Do ponto de visto pessoal, o finlandês tem a certeza que participar no resgate de Tham Luang lhe mudou a vida: “Saí daquela gruta com muito mais confiança na espécie humana e naquilo que eu próprio consigo fazer. Não tivemos tempo para preparar aquilo ao pormenor, cada um estava a fazer uma coisa e é muito bom saber que se pode confiar que o tipo que não conhecemos de lado nenhum e que está ali ao lado é capaz de fazer a parte dele sem falhas.”
Quando questionado sobre o porquê deste resgate ter mexido tanto com as emoções de tantas pessoas, não tem dúvidas na resposta: “É incrível o que conseguimos fazer juntos quando pomos os nossos egos de lado e nos unimos. Nos tempos em que vivemos, essa é uma mensagem muito valiosa”, afirma. “Tantas coisas podiam ter falhado e isso não aconteceu. Foi quase um milagre. Não havia exemplos anteriores e nós fomos além da nossa zona de conforto e conseguimos um resultado maravilhoso. Essa é uma mensagem incrível para o mundo.”
Um mundo, crê o mergulhador, que está sedento de histórias inspiradoras. E a de Adul, Pong, Night, Bew, Nick, Note, Mick, Tee, Dom, Titan, Tle, Mark e, claro, do treinador Ek não podia sê-lo mais. “Eles passaram nove dias sem comer e sem saber o que o mundo estava a fazer para os retirar”, lembra Mikko. “Seis meses depois, ainda não consigo entender como é que conseguiram passar duas semanas ali. Eles sim, são os heróis desta história.”