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A Salvador Malheiro, Rui Rio deve a eleição; a Elina Fraga não lhe deve nada. Mas escolheu-os para a nova direção do PSD. Os dois novos vice-presidentes têm em comum ter chegado tarde à política, serem figuras polémicas e de verbo fácil, mas também o facto de terem inquéritos a correr no Ministério Público por suspeitas de irregularidades em entidades que dirigem (ou dirigiram, no caso de Elina Fraga). O presidente da câmara de Ovar e a antiga bastonária da Ordem dos Advogados são possíveis ativos tóxicos para quem quer trazer para a política um banho de ética. Afinal, o que levou Rio a colocar Salvador Malheiro e Elina Fraga na cúpula do partido?
Os esqueletos no armário da ética da “Marinho e Pinto de saias”
Das dezenas de nomes apontados nos jornais ao longo de várias semanas, o de Elina Fraga nunca tinha surgido como hipótese para a direção de Rui Rio. O antigo autarca do Porto promete transparência, boas práticas, mas o currículo da militante que o líder do PSD escolheu para vice-presidente pode suscitar polémicas. Foram vários os problemas apontados à sua gestão à frente da Ordem dos Advogados numa auditoria financeira conhecida recentemente. Violações dos estatutos e do Código de Contratação Pública, descontrolo orçamental e contratação de serviços a amigos foram algumas das conclusões de uma auditoria. As conclusões foram mesmo enviadas — em novembro de 2017 e por decisão do Conselho Geral da Ordem dos Advogados — para a Procuradoria-Geral da República e para o Tribunal de Contas.
A auditoria feita pela consultora PKF & Associados, encomendada pelo atual bastonário e sucessor de Fraga, Guilherme Figueiredo, detetou várias irregularidades de gestão. Um dos problemas, segundo o documento — noticiado pelo Público em novembro de 2017 — era precisamente o facto de 98% dos montantes pagos por serviços jurídicos entre 2014 e 2016 terem sido adjudicados a apenas cinco sociedades de advogados e ascenderem aos 525 mil euros. Fechando ainda mais o ângulo, 84% deste valor, em contas feitas pelo Eco também em novembro, foi pago a apenas três advogados. Pior: um deles era o antigo patrono de Elina Fraga, Adérito Ferro Pires, e dois membros do Conselho Geral da Ordem.
Só o patrono de Elina, Ferro Pires, ganhou em contratos com a Ordem dos Advogados, segundo a mesma auditoria, 187 mil euros. A escolha podia, no entanto, não depender de Elina Fraga. Mas dependeu e, também nisso, a auditoria é clara: “A seleção do advogado ou da sociedade de advogados e a negociação dos honorários era realizada diretamente pelo bastonário”.
Numa investigação às contas da própria bastonária, também foi encontrada “alguma inconsistência” em despesas de deslocações apresentadas por Elina Fraga. Essa inconsistência, diz a consultora, está relacionada com os “locais de partida” dados na justificação das despesas. A maioria das deslocações da bastonária eram entre Lisboa e Mirandela e Mirandela e Lisboa. Elina Fraga é de Valpaços, mas tem escritório em Mirandela. Foi ao município de Mirandela que foi, aliás, candidata pelo PSD na lista de vereação nas autárquicas de 2005.
Outra das críticas a Elina Fraga foi precisamente quanto ao salário auferido. Marinho e Pinto, o seu antecessor e “mentor” na OA recebia 7.780 euros mensais, o salário de Elina Fraga passou a ser de 8.730 euros por mês. O Observador não conseguiu contactar Elina Fraga.
[“Onde é que elas estão?”, perguntou-se no Congresso. Veja no vídeo]
Punida por Conselho Superior da Ordem
Outra das polémicas que persegue a reputação de Elina Fraga, é o facto de ter sido condenada a uma pena de censura por parte do Conselho Superior da Ordem dos Advogados. O processo ocorreu em 2007, quando Elina Fraga cobrou mil euros a uma cliente mas não lhe resolveu o caso. A cliente fez queixa para o Conselho Superior, que concluiu que a “advogada arguida” violou vários artigos do Estatuto do Advogado, pois “podia e devia ter agido de outro modo, e só não o fez porque não quis”, lê-se no acórdão, noticiado na altura pelo Correio da Manhã. Elina Fraga recorreu da decisão para o Tribunal Administrativo.
Elina criticou e processou Passos e restantes ministros com queixa-crime
Elina Fraga passou pelo CDS, mas tornou-se militante do PSD e, em 2005, chegou mesmo a ser candidata a vereadora à Câmara Municipal de Mirandela. Mas isso não a impediu de, enquanto bastonária, desferir violentos ataques ao Governo de Passos Coelho. O auge dessa confrontação foi quando o Governo aprovou um novo mapa judiciário, avançando com a extinção de 20 tribunais e a passagem de outros 27 a balcões de atendimento.
No dia 1 de setembro de 2014, quando entrou em vigor a lei que estabelecia essa extinção, a então bastonária do Ordem dos Advogados apresentou uma queixa-crime junto da Procuradoria-Geral da República por atentado ao Estado de Direito contra todos os membros do Governo PSD/CDS que estiveram presentes na reunião do Conselho de Ministros de 6 de fevereiro desse ano, quando foi aprovado o novo mapa judiciário.
[Veja no vídeo o momento em que o congresso apupou Elina Fraga]
As críticas foram duras. Quer antes, quer depois desta queixa-crime. Em 2010, Elina Fraga apoiou Paulo Rangel nas diretas do PSD, que levaram à eleição de Pedro Passos Coelho, e chegou a promover a ida do então adversário de Passos ao Auditório Municipal de Mirandela durante essa campanha interna. Num tweet, acusou o entronizado líder de ser “ideologicamente vazio” e “cheio de cosmética”.
Na verdade, fiquei muito decepcionada com a prestação de Passos Coelho no Congresso. Ideologicamente vazio, cheio de cosmética e m.ta areia.
— Elina Fraga (@ElinaFraga) March 21, 2010
Anos depois, em entrevista ao jornal Público, a 7 de dezembro de 2013, Elina Fraga, afirmou que “não teria votado no PSD se soubesse das reformas na justiça.” Sobre as críticas a Passos Coelho, disse na mesma entrevista que “o tempo encarregou-se de demonstrar que este primeiro-ministro [Passos], ao consentir as reformas em curso na justiça, veio dar razão às minhas premonições. Nessa altura apoiei Paulo Rangel”.
As críticas foram maioritariamente sobre opções na área da justiça, mas chegaram a extravasar essa área. Em 2014, enquanto criticava as reformas que o Governo propunha para o Código do Processo Civil e o Código do Processo Penal no salão nobre do Supremo Tribunal de Justiça, Fraga atirou ao Governo duras críticas no plano social: “Hoje há fome e existe miséria em Portugal”.
Nessa mesma linha, a bastonária considerou as custas judiciais um “obstáculo intransponível ao acesso à justiça” e “desproporcionais aos rendimentos das famílias”. Na abertura do ano judicial em 2016, denunciou a existência de uma “classe média esmagada por impostos, violentada por cortes e reduções de salários e pensões” e alertou que não era “possível continuar indiferente ao empobrecimento desses cidadãos, exigindo o pagamento de taxas e de custas manifestamente insuportáveis para os seus orçamentos”.
Na abertura do ano judicial anterior, em 2015, Elina Fraga também tinha sido especialmente dura, criticando o Governo por permitir a “escandalosa privatização da justiça” e a ter colocado “nas mãos de agentes privados”. Em críticas diretas à ministra da Justiça, Fraga sublinhou ainda a “produção esquizofrénica de legislação” e o “mundo virtual do sucesso das reformas propagandeadas”. Visando, uma vez mais, o mapa judiciário, Elina Fraga denunciou as medidas “impostas de forma autocrática, por quem não conhece as assimetrias do País.”
Deu-se melhor com ministra socialista
Elina Fraga até ensaiou uma aproximação ao PSD no segundo Governo de Passos Coelho, que durou apenas um mês. Aí, a ministra da Justiça já não era Paula Teixeira da Cruz, mas Fernando Negrão, que convidou Fraga para um almoço informal que foi na altura relatado numa reportagem pelo Observador. Curiosamente, Fernando Negrão será agora o líder parlamentar de Rui Rio e participará nas reuniões da Comissão Permanente do PSD com Elina Fraga.
O almoço reconciliador realizou-se a 17 de novembro, a meio do mandato do Governo-relâmpago PSD/CDS, e foi Fernando Negrão a convidar Elina Fraga e a escolher o local: o restaurante do Chapitô, na colina do Castelo de S. Jorge.
Fernando Negrão chegou atrasado ao almoço, mas a tempo de ouvir as reivindicações: necessidade de reatar relações com o Ministério da Justiça e melhoria do mapa judiciário. O momento foi registado pelo Observador.
Mas a relação de Elina Fraga foi assumidamente melhor com a ministra socialista Francisca Van Dunem do que com Paula Teixeira da Cruz. A zanga era tanta que — numa entrevista ao Expresso em agosto de 2016 –, quando questionada pelo facto de também ser advogada e militante do PSD como Teixeira da Cruz, Elina Fraga respondeu quase renegando essa militância social-democrata: “O único partido de que sou militante neste momento é o da cidadania ativa e daquilo que eu considero serem princípios e valores inalienáveis do Estado de direito“.
Elina Fraga chegou à Ordem como “delfim” de Marinho e Pinto, de quem era vice-presidente e cujo apoio foi fundamental para que fosse eleita em novembro de 2013, aos 43 anos. Desde então, sempre foi vista como alguém que deu continuidade a uma liderança de uma lista mais “populista” do agora eurodeputado. Foi herdeira do estilo e também dos anticorpos de Marinho e Pinto: os grandes escritórios de advogados do país. Após um mandato à frente da organização, acabou por perder as eleições para a Ordem dos Advogados em dezembro de 2016. Por 700 votos, num universo que teve quase 20 mil votantes. Voltou à advocacia.
Rio deixou “tudo doido” com a escolha
Rui Rio disse logo ao que vinha no primeiro discurso como líder do PSD: quer reformar a justiça. Rio exige que a justiça tenha “mais celeridade, mais meios e melhor gestão, melhor qualidade legislativa, melhores conhecimentos técnicos, mais recato no seu funcionamento, melhor cumprimento do segredo de justiça, melhor escrutínio democrático e mais transparência”. O novo líder do PSD defendeu ainda que é necessário “combater a politização da Justiça, assim como temos de evitar a judicialização da Justiça.”
Elina Fraga não tinha, porém, uma ligação próxima a Rui Rio. Pelo menos que fosse pública. Ao que o Observador apurou junto de uma fonte do núcleo duro de Rio, terá sido Maló de Abreu — homem próximo de Rio e que será vogal da Comissão Política Nacional — a sugerir ao novo presidente do PSD o nome de Elina Fraga para a vice-presidência do PSD. No último dia do Congresso, em declarações à revista Sábado, Maló negou ter sido ele a sugerir o nome: “Nem conhecia Fraga”. O vogal da CPN explicou ainda que Rio e Elina são “conhecidos de longa data”, uma vez que se terão conhecido em 2013, quando Rio se tornou vice-presidente da Ordem dos Economistas.
A ideia de Rio foi ter alguém com estatuto para o ajudar a esboçar a reforma que quer fazer na justiça e, de alguma forma, romper com Passos Coelho.
A escolha caiu que nem uma bomba no Congresso. A antiga ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, classificou, em declarações ao Observador, de “traição” a escolha de Elina Fraga como vice-presidente do PSD. Paula Teixeira da Cruz lamentou que “todos aqueles que criticaram e atacaram Pedro Passos Coelho e o seu Governo nas horas mais difíceis estão agora a ser premiados”. E acrescentou, com violência: “Esse prémio tem nome: chama-se traição”.
Paula Teixeira da Cruz. Antiga ministra da Justiça acusa Rio de “traição” por escolha de Elina Fraga
A escolha caiu mal noutros sociais-democratas, caso de Hugo Soares, que, citado pelo Público, diz respeitar as escolhas do líder, para logo a seguir acrescentar que “é evidente que me custa saber que contamos com alguém que fez uma queixa-crime contra uma ministra muito corajosa”.
O vice-presidente de Rui Rio, David Justino, desvalorizou a questão em declarações à Lusa, discordando da opinião de Paula Teixeira da Cruz. O candidato a vice-presidente do PSD diz, em defesa de Elina Fraga, que “qualquer cidadão tem o direito de recorrer aos instrumentos de justiça ao seu dispor para contrariar uma decisão”. O próprio Santana Lopes tentou pôr água na fervura: “Votem na lista da comissão política, mesmo que não gostem da pessoa A, da pessoa B ou da pessoa C”. Ao Observador, Justino recomendou “tolerância” a Paula Teixeira da Cruz para com a antiga bastonária.
No entanto, um apoiante de Rio e membro da sua entourage confessou ao Observador que, mesmo entre os apoiantes de Rio, “ficou tudo doido com a escolha da Elina”. E lembrou que “começaram logo a circular nos grupos de WhatsApp dos delegados e em SMS as afirmações dela a defender o Sócrates”.
Rui Rio tem sido muito crítico da violação do segredo de justiça. E Elina Fraga também. Fê-lo defendendo José Sócrates, o que é quase um crime capital entre as hostes sociais-democratas. Em julho de 2015, disse que o que a preocupava era “sobretudo que não sejam violadas as garantias de defesa do arguido, seja José Sócrates ou um anónimo”. E acrescentou: “A violação do segredo de justiça é um flagelo e evidenciou-se nestes como noutros casos mediáticos. Há um apelo muito grande da comunicação social para falar de alguém que foi primeiro-ministro. Em todo o caso – mesmo com a possibilidade de me ser aberto novo processo-crime – a investigação criminal, à qual cabe proteger o segredo de justiça”. É, por isso, que Elina via então “com profunda indignação” a forma como estava tratado o caso de José Sócrates.
Salvador, o “Relvas de Rio” que tem problemas com relvas (sintéticas)
Rui Rui deve-lhe a eleição. Talvez seja um exagero. Mas Salvador Malheiro teve um papel essencial na cativação de estruturas e dirigentes para que o novo líder do PSD pudesse fazer o caminho que o levou à entronização em Lisboa. Dirigiu a campanha. Fez contactos. Mobilizou gente. Contou com os votos que os outros caciques lhe garantiam. Andou com o candidato meses a fazer quilómetros pelo país. “Rio tem muita gente à volta dele a pensar, mas tem poucos para agir e trabalhar, como o Salvador”, diz um amigo de Malheiro. Rui Rio é de lealdades políticas. Não são amigos íntimos. Os íntimos de Rio são poucos. Mas o ex-presidente da câmara do Porto não o ia deixar cair. Nem por causa das carrinhas de militantes para votar. Nem por causa das adjudicações de relvados a um dirigente do PSD e futuro vereador.
“Precisava de pessoas com experiência de terreno”, diz ao Observador António Topa, dirigente de Santa Maria da Feira, amigo de Rui Rio e de Salvador Malheiro. Segundo este rioísta que também entrou para vogal da Comissão Política Nacional, o autarca de Ovar e presidente da Distrital de Aveiro tinha influência nos outros presidentes de distritais, mais uma ajuda para Rio, a par de outros operacionais como Feliciano Barreiras Duarte (de Leiria) ou Bruno Coimbra (de Coimbra).
Foi como presidente da Câmara de Ovar que Malheiro se cruzou com Rui Rio. “Começámos gradualmente a trocar algumas impressões. A minha concentração era a câmara municipal, mas fomos estreitando ligações e criámos uma empatia grande e sentimos que o ciclo de Pedro Passos Coelho estaria para terminar”, chegou Salvador Malheiro a comentar com o Observador.
Malheiro foi dos primeiros a dar o sinal de que o ciclo se preparava para mudar. Na noite de 1 de outubro, apressou-se a dizer publicamente que Passos não tinha “as mesmas condições” para se manter na liderança do PSD. “Fui daqueles que olharam para Rui Rio como uma alternativa para o período pós-Pedro Passos Coelho”, disse ao Observador. Durante o congresso, teve um papel fundamental nas negociações para as listas do líder, sobretudo para o Conselho Nacional. Num camarim ou espécie de gabinete improvisado, com um papel colado a dizer “Salvador Malheiro”, foi tecendo os acordos que chegaram a estar tremidos com a ala de Pedro Santana Lopes. No final, com o fumo branco, foi mais uma vez um dos king makers da atual liderança.
[Veja no vídeo o camarim de Malheiro onde se decidiu o congresso]
O caciquismo do PSD na terra de Malheiro
Salvador Malheiro garante que o convite de Rio para ser seu diretor de campanha só surgiu depois de ser conhecido o resultado das eleições autárquicas, a 1 de outubro do ano passado. Mas há longos meses que o presidente da Câmara Municipal de Ovar e o ex-autarca se reuniam para almoços e jantares, de norte a sul do país, para marcar o passo à liderança de Pedro Passos Coelho. Malheiro prometeu-lhe votos, Rio deu-lhe agora a vice-presidência do partido, arriscando, com esse voto de confiança, fragilizar a sua máxima – o “banho de ética” que quer trazer para a política.
O autarca de Ovar já estava envolvido em alguma polémica com a suspeita de que teria arrebanhado votos na sua eleição para a distrital de Aveiro do PSD, mas esse caciquismo só ficou claro quando o Observador acompanhou de perto as eleições diretas no partido.
À porta da sede da distrital, em janeiro, Salvador Malheiro recebia os militantes que chegavam em grupos, sempre à boleia da mesma carrinha cinzenta, uma Renault Trafic que repetia a mesma viagem uma e outra vez. Beijos, abraços de cumplicidade entre os militantes e o diretor de campanha de Rui Rio. E, minutos depois, a cena repetia-se.
Dias antes, o semanário Expresso já tinha dado conta da existência de uma “secção fantasma” de militantes sociais-democratas em Ovar. Militantes que declaram moradas onde não existe qualquer casa, dezenas de pessoas com o mesmo número de telemóvel atribuído nas fichas de inscrição no partido e uma queixa antiga apresentada no Conselho de Jurisdição que não permitiu apurar quaisquer irregularidades. A denúncia foi feita em 2016 pelo candidato derrotado à distrital, Ulisses Pereira. O dirigente social-democrata saiu ilibado.
Fast forward para janeiro deste ano, em Ovar. Rui Rio esmagou Santana Lopes: Votaram 60% dos 792 inscritos e, desses, 409 colocaram o seu voto no candidato apoiado por Salvador Malheiro, na tal votação em que a carrinha andou para trás e para a frente para levar os militantes a colocar o voto na urna. Uma carrinha que, soube-se depois, pertence a uma associação recreativa do concelho que depende dos apoios da Câmara Municipal de Ovar. Mas a proximidade entre o autarca e as associações não se esgota nas eleições.
Contratos de 2,2 milhões de euros para líder da concelhia
Quando recebeu o Observador no seu gabinete, na Câmara de Ovar, Salvador Malheiro ainda acusava as consequências mediáticas da reportagem da carrinha publicada menos de um mês antes. Mas, ali, num espaço com vista para a Praça da República da cidade, o autarca seria confrontado com outra polémica que o implicava diretamente: a adjudicação, pela autarquia, de obras no valor de 2,2 milhões de euros para a instalação de relvados sintéticos em clubes e associações do concelho. Os contratos beneficiaram a Safina, uma empresa detida pelo presidente da concelhia do PSD, Pedro Coelho, que viria a ser o seu vereador para as Obras Municipais.
Diretor de campanha de Rio promoveu obras de 2,2 milhões que beneficiaram dirigente do PSD
A história começou em 2013, quando Salvador Malheiro se lançou no seu maior combate político até esse momento: foi candidato à Câmara de Ovar. No seu programa incluiu a proposta de reequipar todos os clubes do concelho com um relvado sintético. O social-democrata venceu as eleições e pôs o seu programa em ação. Problema: a forma como o diálogo entre a autarquia e os clubes decorreu levantou suspeitas de que a Safina estivesse a ser beneficiada para ficar com os contratos e que, além disso, tivesse sido o próprio presidente da empresa – e presidente da concelhia do PSD em Ovar – a colocar na mão dos clubes o seu orçamentos e os de outros dois supostos concorrentes.
O presidente do Centro Cultural e Recreativo de Válega admitiu, em declarações ao Observador, que tinha recebido três propostas diferentes. Com uma particularidade: “Foram-me entregues os três orçamentos e eu fi-los chegar à câmara, como a câmara me exigia”, disse Pedro Nunes, o dirigente do clube, sem revelar de onde lhe tinham chegado as propostas. Revelou, no entanto, outro dado: “Quem mos deu foi a mesma pessoa”. O Observador apurou que os orçamentos foram enviados a Pedro Nunes pelo próprio Pedro Coelho, e que a Safina acabou por ser a empresa escolhida para o negócio.
A questão não ficava por aí. Ao Observador, o mesmo dirigente do Válega admitiu que tinha estado sentado à mesa com Pedro Coelho, dono da Safina e dirigente local do PSD, ainda antes de a empresa ser escolhida para uma obra que, naquele caso concreto, chegou perto dos 400 mil euros.
Ao todo, em cerca de dois anos foram gastos mais de 2,2 milhões de euros em oito clubes e associações. Grande parte dos contratos foi entregue diretamente à Safina. Quando assim não foi, a empresa de Pedro Coelho foi chamada para instalar o novo relvado sintético do clube.
Já depois de o Observador publicar estes dados, a Procuradoria-geral da República confirmava ter instaurado um inquérito para apurar eventuais irregularidades na adjudicação daquelas obras.
O engenheiro que roubou a câmara ao PS
Até este fim-de-semana, Salvador Malheiro era apenas o diretor de campanha de Rui Rio, um homem que se candidatou à presidência do PSD com a promessa de um “banho de ética” para a política. As suspeitas que recaíram sobre Malheiro não dissuadiram Rio de lhe dar uma responsabilidade maior do partido: foi escolhido para seu vice-presidente, ou seja, passa a ter assento na Comissão Permanente do partido — o núcleo duro do líder.
Salvador, o nadador: do bar da praia a presidente da câmara (até ser braço direito de Rio)
Com esse voto de confiança, estava alcançado um objetivo que Malheiro já tinha confessado no seu círculo mais restrito: chegar aos lugares de destaque do PSD, eventualmente a secretário-geral. Não foi essa a opção de Rio, que preferiu entregar a organização interna do partido a Feliciano Barreiras Duarte, mas o convite para Malheiro integrar a direção do partido é, ainda assim, um salto gigante para alguém que se juntou ao PSD em 2004 e que há dez anos chegou a dirigente local em Ovar.
A inscrição como militante foi feita “sem padrinhos”. Malheiro, um engenheiro no ativo, contratado como consultor numa série de empresas nacionais e estrangeiras, estava a percorrer o site do PSD quando se deparou com a ficha. “São aqueles chamamentos que existem”, conta. “Decidi espontaneamente inscrever-me. Saquei a ficha, preenchi-a e chegou-me o cartão a casa”, recordou ao Observador.
Escapou, por isso, a um percurso típico que começa nas juventudes partidárias e que leva alguns dos militantes a lugares de maior relevo nos partidos. Malheiro já tinha 30 anos quando se inscreveu no partido. Nessa altura, já tinha concluído o doutoramento, já tinha dado aulas na Universidade de Trás-os-Montes e já tinha estado por duas vezes em França a estudar e a trabalhar.
Em 2009, integrado na rede política de Ovar, Salvador Malheiro agarrou uma concelhia desfeita, fruto dos mais de 15 anos em que o PSD esteve afastado do poder local. Nesse ano, foi ainda convidado por Álvaro Santos (PSD) para ser o seu número dois à Câmara Municipal, acabando por saltar para o primeiro plano quando o vereador integrou o gabinete do então secretário de Estado Adjunto da Economia e Desenvolvimento Regional.
Quatro anos mais tarde, era a sua vez de travar um combate nas urnas: foi cabeça de lista do PSD à Câmara de Ovar e não se limitou a recuperar a autarquia ao PS – conseguiu, nessas eleições, a votação mais forte que o PSD alguma vez tinha arrancado no concelho.
[“Vocês ainda me excitam”. Veja as 15 cenas mais caricatas do congresso neste vídeo de 110 segundos]