A nossa relação inquieta com a retórica é visível nos adjetivos com que mais frequentemente a qualificamos. Tal como a ironia é quase sempre “fina”, a retórica arrisca-se a ser quase sempre “vazia”, “oca”, ou, na melhor das hipóteses, “mera”. Criada como um instrumento de persuasão, é muitas vezes encarada como uma forma de nos persuadir a concordar com algo que vai contra os nossos interesses, ou a aceitar uma verdade no mínimo incompleta.
Esta ansiedade não é um fenómeno recente. É uma aposta segura que no primeiro momento histórico em que alguém discursou para apelar ao voto, alguém na plateia torceu o nariz. (Outra aposta segura: no segundo momento histórico em que alguém discursou para apelar ao voto, alguém na plateia terá balbuciado “estes tipos são todos iguais”). Recordo uma aula de Filosofia do 10.º ano quando, depois de ler a longa diatribe contra os Sofistas no Górgias na qual Sócrates diz que a retórica está para a política como a pastelaria está para a medicina, o professor perguntou a uma turma confusa e alarmada: “Perceberam, espero, que ele está a falar daqueles pasteleiros todos que ouviram recentemente na televisão?”. A campanha para as legislativas de 1995 encerrara poucos dias antes.
Lendo as biografias recentemente publicadas de António Sampaio da Nóvoa (O Candidato Improvável, por Filipe S. Fernandes e Evidentemente a Liberdade, por Fernando Madaíl, além do relato na 1ª pessoa que concluí Política de Vida) é difícil imaginar que, ao longo de uma longa e prestigiada carreira docente, alguma vez tenha dito algo tão cínico aos seus alunos. Não necessariamente por especial reverência pela classe política, ou pela classe pasteleira, mas pelo respeito que afirma ter pelas palavras enquanto instrumento de mudança. Num discurso de 25 de Maio, no Teatro Rivoli, comentou assim a habitual subalternização da retórica: “São só palavras?! Que desdém pela língua, pela cultura, pelas histórias! (…) Comigo a palavra conta, e muito”.
É um alívio sabê-lo: assumir que as palavras contam, e que podem e devem ter consequências, é um excelente ponto de partida. Um parágrafo de O Candidato Improvável começa com as seguintes palavras: “Há um episódio que mostra que a sua luta contra a austeridade não era apenas retórica”. O episódio em questão é o célebre despacho emitido por Vítor Gaspar em Abril de 2013, na sequência da decisão do Tribunal Constitucional impedindo todo os serviços do sector público e da administração central de contrair nova despesa sem autorização prévia. Sampaio da Nóvoa, ainda reitor da Universidade de Lisboa, reagiu no dia seguinte com um comunicado que criticava o “gesto insensato e inaceitável”. O amigo, e atual diretor da FPCEUP, José Alberto Correia “também não queria cumprir” e pergunta-lhe, “e o que vais fazer?”. A resposta de Nóvoa é transcrita assim: “Isso não sei…”. O parágrafo – e o assunto – terminam pouco depois.
Como exemplo ilustrativo de algo que transcende a “mera retórica”, o relato é manifestamente insatisfatório. Não será justo, no entanto, culpar o biografado pelas ciladas involuntárias do seu biógrafo, e talvez um cenário de impotência administrativa não seja o melhor para adjetivar retóricas, ou avaliar a ligação de causalidade entre princípios e ação política.
Abstracções e soundbites
E no entanto é duvidoso que uma corrida à Presidência da República seja mais propícia para o efeito. Se uma campanha para legislativas ou autárquicas pode admitir, em teoria, discussões pormenorizadas sobre quem privilegiar ou punir na angariação de dinheiro para alcatroar aquele itinerário complementar, numa campanha presidencial a redução das complexidades práticas da governação a abstrações e soundbites é um expediente inevitável. O nosso semi-presidencialismo, por desígnio constitucional e prática política, foi consolidando um curioso estatuto para a figura do Presidente, cujo sufrágio tem sido uma espécie de atribuição de prémio de carreira, e cujas funções se podem resumir mais ou menos assim: 1) não deve ser doido; 2) deve certificar-se que o executivo não é doido; 3) deve fiscalizar a possibilidade de ser aprovada legislação doida; 4) deve falar ocasionalmente à nação, sobre matérias avulsas, de forma o menos doida possível. Dentro destes tolerantes e elásticos limites, a coisa tem-se cumprido. Por mais trágica, penosa ou abjeta que muitos considerem a atual, a última, ou a penúltima presidência, creio ser mais ou menos consensual que ainda não elegemos um presidente clinicamente louco. Estamos, nesse aspeto, todos de parabéns.
Mas quer se candidate a contra-poder, a árbitro crítico, ou a sonolento parceiro institucional, quem concorre à presidência é tacitamente encorajado, pelo sistema e por nós, a empregar a retórica mais vaga possível. Especificar com precisão aquilo que se tenciona permitir ou impedir implica especificar com igual precisão todos aqueles que não vão concordar. A ortodoxia verbal é a forma mais segura de não provocar o pânico. E ninguém sofre, a não ser a linguagem.
Simon Hoggart, o falecido correspondente parlamentar do Guardian, cunhou a sua “Law of Absurd Opposites” para aferir a vacuidade do discurso político: quanto mais próxima do “0” é a probabilidade de algum eleitor concordar com o sentimento expresso caso os termos fossem rigorosamente invertidos, mais desnecessário é expressar o sentimento. Um exemplo: se nunca na história da humanidade um candidato a um cargo público nos informou que pretendia “lutar por um país pior”, será escusado garantir-nos o contrário – e todavia quase quase todos fazem.
Não é tarefa fácil comunicar uma retórica de substância dentro deste aflitivo conjunto de restrições.
Política de Vida, publicado pela Tinta-da-China em Dezembro, colige a “Carta de Princípios” de Sampaio da Nóvoa, as transcrições de três discursos, incluindo o de apresentação da candidatura, e um breve texto autobiográfico. São 142 páginas ao longo das quais se esperaria que uma candidatura que procurou desde a origem diferenciar-se dos hábitos e práticas de sempre comunicasse retoricamente essa diferença. Eis o resultado.
Para começar, alguns auxiliares de orientação cronológica: “A esperança é hoje”; “Este é o tempo do futuro”; “Chegou o nosso tempo, o tempo de acordar, o tempo de despertar”.
Depois, aquilo que é preciso: “É preciso trazer a vida para dentro da política, com humanidade. É preciso unir uma sociedade rasgada, juntando os portugueses e as portuguesas numa luta comum, sem medo de existir” (há outras coisas que são precisas, nomeadamente “construir pontes”).
De seguida, o tipo de Presidente que será: “Serei Presidente com todos os portugueses, cuidando de maneira especial dos mais frágeis, dos mais sacrificados pela crise, dos mais desprotegidos”; “comprometo-me a ser um Presidente presente, próximo das pessoas, capaz de ouvir, de cuidar, de proteger”.
Promessas (poucas, mas boas): “Prometo agir com integridade e honradez”; “Há muitas promessas que não posso, nem devo fazer, mas o compromisso de estar sempre ao lado dos portugueses, sobretudo dos mais desprotegidos, é um compromisso solene, absoluto, que quero assumir por inteiro”.
Por fim, alguns “compromissos” e “propostas concretas”, para lidar com problemas concretos: “Temos de encontrar soluções” (para a dívida); “devemos associar-nos a uma reflexão” (sobre o futuro das políticas económicas na União Europeia); “estarei especialmente atento” (a situações que reduzam a soberania nacional); “não me resignarei” (perante a pobreza); “não serei insensível” (ao sofrimento); “dedicarei uma especial atenção” (à transparência e responsabilidade na vida pública); “estarei particularmente atento” (à igualdade); “serei um Presidente empenhado” (na dignificação das Forças Armadas); “procurarei promover” (uma ligação entre o país e as Forças Armadas); “não serei um espectador impávido” (perante a degradação da vida pública); “não me resignarei” (perante a destruição do Estado Social).
E como bónus para todos os que se sentem alarmados com excessos de especificidade e originalidade: “Empenhar-me-ei na resolução das questões nacionais mais graves. Tentarei antecipar os problemas, propor, agir para que se alcancem soluções sólidas e duradouras”. “Apoiarei todas as mudanças que façam de nós um país mais moderno e mais justo, mais competitivo e mais capaz”.
E agora um quiz rápido:
Quem apresentou a candidatura reforçando a sua “independência e liberdade” e frisando “a necessidade de construir pontes”? (Sampaio da Nóvoa e Marcelo Rebelo de Sousa, 2015).
Quem prometeu “tudo fazer para reforçar a qualidade da nossa democracia”? (Sampaio da Nóvoa, 2015 e Cavaco Silva, 2005).
Quem garantiu nunca se resignar “perante o aumento do desemprego e o empobrecimento? (Sampaio da Nóvoa, 2015 e Cavaco Silva, 2005).
Quem defendeu que o Presidente deve “mobilizar as energias do país” e da “cidadania”? (Sampaio da Nóvoa, 2015 e Manuel Alegre, 2005).
Quem abriu na sua candidatura um espaço para as vozes dos que “não têm voz”? (Sampaio da Nóvoa, 2015 e Fernando Nobre, 2011)
Quem disse lutar por “uma sociedade mais justa”? (Sampaio da Nóvoa, 2015, Cavaco Silva, 2005, Maria de Belém, 2015, Marcelo Rebelo de Sousa, 2015)
Quem afirmou que “esta candidatura incomoda muita gente”? (Sampaio da Nóvoa, 2015, Manuel Alegre, 2006, Fernando Nobre, 2011, José Manuel Coelho, 2011)
Um pastiche compenetrado
Apesar de “a língua portuguesa constituir um dos nossos principais patrimónios” (Sampaio da Nóvoa, 2015 e, assumo, todos os outros) a questão aqui não é sequer de méritos literários, mas do género a que tão assumidamente tudo isto pertence: o género das coisas que um candidato, qualquer candidato, diz.
Para alguém empenhado em “regenerar” a prática política, havia forma mais óbvia e eloquente de o fazer que começar por reabilitar a linguagem, por importar para o fatigado discurso das “políticas velhas” uma nova forma de afirmar (nem que fossem) as mesmas verdades incontestáveis, por fazer circular nos contextos de sempre uma retórica original? É difícil levar a sério a retórica de uma candidatura “diferente” e regeneradora quando a vemos esbanjar assim a oportunidade de purificar o dialeto da tribo e, ao invés, naturalizar-se com tamanha facilidade.
Uma das acusações mais frequentes a Sampaio da Nóvoa é a do “discurso vazio”. Mais do que injusta, a acusação é irrelevante. Não é mais nem menos vazio do que outros candidatos presidenciais, do presente e do passado. O que a “Carta de Princípios” e os discursos centrais têm demonstrado é uma total e competentíssima absorção da mais pura ortodoxia das campanhas eleitorais portuguesas: os gestos e os maneirismos, a linguagem e as regras do jogo. O pastiche é tão compenetrado que só pode ser homenagem voluntária – e sincera. Nesse aspeto, pelo menos, os receios que Sampaio da Nóvoa afirma distinguir nos seus adversários são infundados. Se existe realmente entre as “elites” e as “coutadas” o medo de uma “pessoa de fora” trazendo consigo uma “nova forma de fazer política”, podem ficar todos descansados: aqui está um candidato que soa exatamente igual a eles.