A auditoria forense às operações internacionais da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) encontrou indícios de crimes económicos e de práticas ilícitas na gestão de empresas que foram criadas para os negócios no Brasil. Estes indícios estão concentrados, sobretudo, na forma como foram geridas as participadas e as transferências financeiras enviadas para a exploração de jogos no Rio de Janeiro desde 2020.
A investigação e eventual responsabilização dos envolvidos passa por um inquérito criminal que já foi aberto pelo Ministério Público em Portugal, por iniciativa da atual administração da SCML, mas que precisará também da colaboração com as autoridades judiciais brasileiras. Há suspeitas de ligações a uma fação de crime organizado e a redes ilegais de bicheiros (operadores do jogo do bicho), sabe o Observador, mas a auditoria não encontrou nenhuma evidência escrita, pelo que uma eventual conexão terá de ser investigada pelas autoridades judiciais.
De acordo com informação recolhida pelo Observador, a auditoria forense pedida pela mesa da SCML à BDO, no ano passado, ainda não está concluída porque falta identificar, na medida do possível, o circuito do dinheiro que foi autorizado a partir de Lisboa para estas operações. A Santa Casa criou em 2020 a Santa Casa Global para o mercado internacional que, por sua vez, criou a Santa Casa Global Brasil. É nesta empresa que está a participação de 55% adquirida numa empresa brasileira que tem um contrato para a distribuição da lotaria do Rio de Janeiro. Mas há toda uma rede de empresas participadas com sócios brasileiros cujas decisões e contas bancárias estão a ser mais difíceis de escrutinar por parte da auditora escolhida pela Santa Casa, nomeadamente por falta de colaboração de quem está à frente dessas sociedades. Questionada pelo Observador, fonte oficial da Santa Casa não teceu comentários.
A atual gestão da Santa Casa, presidida por Ana Jorge, suspendeu os administradores nomeados pela anterior mesa liderada por Edmundo Martinho, o provedor que desenvolveu a estratégia de internacionalização da instituição. Esta suspensão aconteceu em outubro, mas só no final de janeiro é que o novo representante da SCML conseguiu obter as validações para poder ter acesso às decisões, atas e contas bancárias das sociedades ligadas à MCE — Intermediação e Negócios. É esta MCE que tem um contrato de 5 anos para a distribuição dos produtos da empresa pública que explora as lotarias no Estado do Rio de Janeiro, a Loterj.
Santa Casa corre risco de sofrer perdas de 50 milhões no Brasil que vão ter impacto nas contas
A expetativa da mesa (administração) liderada por Ana Jorge é a de que seja possível apurar qual a exposição financeira efetiva da Santa Casa até final de março. O envolvimento financeiro da Santa Casa no Brasil entre 2020 e 2023 foi quantificado em 50 milhões de euros, o que inclui dotações financeiras diretas, como aumentos de capital, no valor de 27 milhões de euros, e compromissos bancários associados a empréstimos, garantias e cartas conforto emitidas em nome da Santa Casa Brasil. Algumas destas garantias já começaram a ser executadas, o que terá resultado numa obrigação de pagar por parte da avalista — a Santa Casa da Misericórdia Lisboa, até porque a instituição quer manter a reputação de cumprimento junto da banca.
Participada da Santa Casa suspendeu pagamentos devidos à lotaria do Rio de Janeiro
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Uma das dívidas que pode comprometer mais a Santa Casa é relativa à interrupção do pagamento por parte da MCE que estava contratualizado com a Loterj, entidade pública brasileira que explora os jogos no Rio de Janeiro. A MCE tem de entregar a receita da venda da lotarias vendidas à Loterj, mas, segundo a imprensa brasileira, suspendeu o pagamento em junho de 2023. A dívida já ultrapassa os 30 milhões de reais (5,6 milhões de euros). Esta suspensão parece coincidir com a mudança em Portugal que levou à travagem das operações (e transferências) no Brasil. De acordo com o jornal Globo, a MCE também terá interrompido a venda da principal lotaria da Loterj, o Rio de Prémios, tendo lançado um outro produto concorrente e privado, cuja receita não vai para projetos sociais. Não é claro se esta suspensão foi do conhecimento ou autorizada pelos gestores nomeados pela Santa Casa que ainda estavam em funções.
Para além de eventuais responsabilidades financeiras, e não é certo que a Santa Casa Lisboa seja responsável pelos encargos financeiros contraídos pela participada no Brasil, há ainda preocupação com a questão reputacional. Outro dos temas abrangidos pela auditoria são as despesas com uma casa no Brasil, usada pela empresa e pelos administradores, bem como gastos com viagens e alojamento que podem não ser justificados por atividades profissionais.
A mesa (administração) da Santa Casa aprovava as verbas a transferir para a Santa Casa Global para desenvolver os projetos e, a partir daí, deixava de ter controlo sobre o fluxo e aplicação final do dinheiro. Apesar de não ter ainda reconstituído o trajeto desses fluxos financeiros, a SCML suspendeu de funções os dois administradores da Santa Casa Global — Ricardo Gonçalves e Francisco Costa — mas estes são quadros da Santa Casa e continuam a trabalhar na instituição em outras áreas. No entanto, podem vir a ser alvos de processo disciplinar, na sequência desta investigação à operação. Já o ex-provedor, Edmundo Martinho, e que foi o presidente da Santa Casa Global, não é quadro da instituição.
Ministra teria que aprovar cada operação, o que não terá acontecido
Segundo a informação obtida pelo Observador, a auditoria aponta ainda no sentido de que Ana Mendes Godinho teria de aprovar previamente cada operação/investimento realizado na frente internacional, o que segundo a ministra não aconteceu. A atuação do antigo provedor também é visada pela auditoria por causa da contradição de versões entre a ministra do Trabalho e Segurança Social e o ex-provedor, a propósito da realização prévia de uma due diligence antes do negócio no Rio de Janeiro.
Quanto à compra de 55% da MCE, a auditoria da BDO detetou a existência de apenas uma due diligence, feita pela Deloitte Brasil, mas com caráter provisório e que não era favorável à compra da participação pela Santa Casa. No Parlamento, a ministra da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, que tem a tutela da Santa Casa, já tinha levantado dúvidas sobre a realização dessa avaliação prévia. Segundo Ana Mendes Godinho, esse procedimento foi prometido pela gestão de Edmundo Martinho em junho de 2021, mas três meses depois a compra ficou concluída sem que lhe tivessem sido enviados os resultados da avaliação prévia.
Contactado, na altura, pelo Observador, Edmundo Martinho garantiu que foram feitas due diligences (no plural) de natureza técnica, contabilística, fiscal e jurídica, concluídas no final de julho e na primeira semana de agosto de 2021 e, segundo assegurou, “não apontaram impedimentos à concretização do negócio”, que veio a concretizar-se. Não terá sido essa a conclusão a que chegou a BDO.
Edmundo Martinho e Ana Mendes Godinho estão ainda em choque sobre as responsabilidades de cada um no projeto de internacionalização da Santa Casa que a ministra aprovou, em nome da necessidade de diversificar receitas, mas para o qual estabeleceu condições. Depois de dar a luz verde a uma dotação inicial de cinco milhões de euros, a ministra definiu em despacho que “os posteriores investimentos devem ser sujeitos a autorização da tutela”.
Ana Mendes Godinho tem garantido que não teve conhecimento nem aprovou operações concretas da Santa Casa Global, embora entenda que o despacho seu de 2020 a isso obrigava a anterior gestão. O entendimento de Edmundo Martinho é que Ana Mendes Godinho sabia dos investimentos quando validou os planos de atividades e orçamentos da Santa Casa para os anos entre 2020 e 2023. Especificamente sobre a compra da MCE, entende que um email já tornado público, de junho de 2021, fazia um ponto de situação dos investimentos no Brasil e, especificamente, quantificava o investimento necessário na empresa.
A Santa Casa está a concluir o trabalho de reavaliação das contas que a ministra Ana Mendes Godinho se recusou a homologar, o que passará por reconhecer o impacto das operações no Brasil, mas esta revisão aguarda ainda os números finais que venham a ser apurados pela BDO e que podem ter impacto no fecho de contas de 2023. A administração da SCML gostaria de ver as contas homologadas ainda por este Governo, mas a tutela hesita em fazê-lo por causa da situação de gestão corrente do Executivo.
As contas do ano de 2022 serão as mais afetadas pelo impacto destas transferências, mas o reconhecimento de perdas pode também penalizar as contas de 2023. A Santa Casa admite recuperar uma parte do dinheiro canalizado através da venda de participações, mas esta possibilidade não estará muito avançada.
Auditoria às relações familiares não detetou irregularidades
A auditoria interna ordenada pela provedora da Santa à Casa não concluiu que a existência de relações familiares dentro da instituição tenha influenciado as decisões.
A provedora da Santa Casa anunciou, em setembro, no Parlamento, que fora aberta uma auditoria interna para apurar se a existência de relações familiares dentro da instituição teve influência nas decisões ou pôs em causa a transparência dos processos. A decisão aconteceu depois de várias notícias que apontavam para relações familiares dentro dos serviços jurídicos da SCML e que envolviam, também, a administradora que os tutelava.
Na altura, no Parlamento, Ana Jorge já defendia que numa instituição com seis mil trabalhadores não seria de estranhar que haja laços familiares (aliás, a instituição emprega várias famílias) — o que não pode haver é influência dos laços familiares “sobre as decisões, que têm de ser justas e transparentes”, frisou. Mas a auditoria não tirou conclusões sobre essa ligação entre familiares e decisões.