O ex-provedor da Santa Casa, Edmundo Martinho, que iniciou o processo de internacionalização da instituição, garante que foram feitas “due diligences” ao negócio de compra de 55% da MCE, a empresa que venceu o concurso para explorar a lotaria no Estado do Rio de Janeiro, que não apontaram impedimentos. No Parlamento, a ministra da Segurança Social disse que essa due diligence tinha sido prometida pela gestão de Edmundo Martinho mas que, três meses depois, a compra foi concluída sem que lhe tivessem sido enviados os resultados da avaliação prévia, o que critica.

Contactado pelo Observador, Edmundo Martinho garante que “o processo de aquisição da MCE teve due diligences de natureza técnica, contabilística, fiscal e jurídica, concluídas no final de julho e primeira semana de agosto de 2021″, da autoria da Deloitte Brasil e da SFBG-Sociedade de Advogados. O ex-provedor que abandonou o cargo em abril de 2023 argumenta que já não tem acesso a essa documentação, mas assegura que os resultados “não apontaram impedimentos à concretização do negócio, pelo que o mesmo se veio a concretizar”. Além disso, mantém o entendimento de que Ana Mendes Godinho não tinha de autorizar aquela operação em específico, mas que ainda assim foi informada da intenção da compra e não levantou objeções.

Num email a 14 de junho de 2021, noticiado pelo Público e consultado pelo Observador, Edmundo Martinho detalha várias intenções da Santa Casa em relação a investimentos concretos. Sobre a operação no Brasil, onde se enquadra a compra da MCE, diz que a entrada naquele país “implica a concretização de parceria com uma empresa local que, cumprindo os requisitos anteriormente definidos, possua igualmente experiência comprovada no mercado da atividade do jogo”. É aí que entra a MCE. Já nesse email, o ex-provedor mostrava intenção de avançar com a compra de 55% do capital social da empresa se os resultados da due diligence não colocassem em causa “a prova de idoneidade em relação à empresa e aos seus sócios“. O negócio, já aí referia, teria o valor de 14,56 milhões de euros que seriam liquidados ao longo dos três anos seguintes.

As operações no Rio de Janeiro da Santa Casa Global são as que geraram mais prejuízo para a SCML, segundo dados preliminares de uma auditoria que apontam para perdas da ordem dos 50 milhões de euros. O negócio no Brasil é, precisamente, o que mais dúvidas tem levantado, estando a ser analisado na auditoria externa, feita pela BDO, ao negócio de internacionalização. A auditora pediu um novo adiamento das conclusões que terão agora de ser apresentadas até ao final deste mês.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Santa Casa corre risco de sofrer perdas de 50 milhões no Brasil que vão ter impacto nas contas

No Parlamento,  Ana Mendes Godinho confirmou que recebeu o referido email, mas alegou que depois disso não recebeu “mais informação alguma” e que só mais tarde soube que a Santa Casa Global adquiriu, em setembro de 2021, 55% da empresa brasileira MCE “sem que me tivesse sido enviada qualquer informação adicional ou resultado da due diligence“.  “Não tive conhecimento concreto das operações realizadas nem dos montantes aplicados“, reiterou.

Ministra garante que não teve “conhecimento concreto das operações realizadas nem dos montantes aplicados” pela Santa Casa Global

Questionado pelo Observador, Edmundo Martinho confirma que o Ministério da Segurança Social não deu autorização concreta àquela operação mas defende: “Nem tinha de dar”. O entendimento do ex-provedor é que essa autorização já tinha sido dada de forma mais geral quando Ana Mendes Godinho validou os planos de atividades e orçamentos da Santa Casa para os anos de 2020, 2021, 2022 e 2023. E também diz que no email de 14 de junho de 2021, com o ponto de situação dos investimentos do Brasil, “o investimento na MCE é descrito e quantificado, a par do ponto de situação da restante estratégia e operacionalização da mesma”. “E é dito que estão em curso as due diligences necessárias, conforme o seu despacho”, acrescenta.

O despacho em causa de Ana Mendes Godinho é de junho de 2020 e, além de dar autorização à constituição da Santa Casa Global, estabelecia as condições para o processo de internacionalização: as receitas deveriam ser “integralmente afetas aos fins e âmbito estatutários”, a sociedade deve ter sede na União Europeia, devendo a atividade internacional iniciar-se pela CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), e os “posteriores investimentos devem ser sujeitos a autorização da tutela”.

“Ora, sendo o investimento enquadrado em país da CPLP, estando os montantes necessários inscritos no Plano de Atividades e Orçamento aprovado pela Senhora Ministra, estando o investimento enquadrado na estratégia de internacionalização aprovada, desde que das due diligences não resultasse impedimento, o investimento era concretizado sem necessidade de voltar à Senhora Ministra. Ia aprovar o que já aprovara? Não faz sentido”, argumenta, em respostas enviadas por escrito ao Observador.

Edmundo Martinho acusa Ana Mendes Godinho de querer dar um novo significado ao despacho que assinou em junho de 2020 e diz que a ministra da Segurança Social não levantou restrições à compra da MCE nem após receber o tal email de junho de 2021, nem numa reunião em agosto desse ano.

Segundo o ex-provedor, em agosto de 2021, reuniu-se com Ana Mendes Godinho e falou-lhe sobre o “processo em curso — não tendo levantado qualquer questão” e em setembro informou sobre a concretização da compra, mas também sem tal ter sido contestado. Por isso, defende que o argumento de que a SCML ultrapassou o montante autorizado, de cinco milhões de euros para a constituição da sociedade, “era um argumento sem sentido”.

“O que fiz, isso sim, foi partilhar a evolução do processo, ‘possibilitando o acompanhamento de todas as fases de operacionalização da estratégia definida’, como se refere no penúltimo parágrafo do email de 14 de junho de 2021, sempre que tal me foi permitido pela Senhora Ministra”, diz.

Vice-provedora da Santa Casa alega motivos de doença e já não vai ser ouvida no Parlamento

Ana Mendes Godinho foi ouvida na terça-feira na sequência de um pedido potestativo apresentado pelo PSD, que fez o mesmo requerimento para ouvir a atual vice-provedora, Ana Vitória Azevedo, uma vez que teve responsabilidades na pasta da internacionalização da Santa Casa durante a anterior gestão. A audição chegou a estar agendada para dia 20 de dezembro, mas viria a ser cancelada por falta de agenda da vice-provedora.

A comissão de Trabalho tentou agendar para data posterior, mas segundo indicou ao Observador a presidente da Comissão, a deputada do PSD Isabel Meireles, a última tentativa voltou a não ter sucesso, com Ana Vitória Azevedo a alegar motivos de saúde para não estar presente. E uma vez que a Assembleia é dissolvida no dia 15 de janeiro, a vice-provedora já não será ouvida nesta legislatura.

Na terça-feira, e por considerar que há decisões tomadas pela Santa Casa por esclarecer, o PSD tinha insistido para que a comissão agendasse a audição entre os dias 10 e 11 de janeiro. Durante a audição, o deputado Nuno Carvalho sugeriu que a vice-provedora se recusa “a vir repetidamente e desrespeitosamente a este Parlamento”.

A audição do antigo provedor Edmundo Martinho foi já duas vezes chumbada pelo PS. Neste caso, o PSD não pode avançar com um pedido potestativo porque Edmundo Martinho já não exerce funções públicas.