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Composições abstratas, imagens grotescas e surrealistas, nus inspirados na antiguidade clássica, cartoon e anime, fauna e flora, ilustração científica, crítica e sátira, minimalismo, manchas de cor, objetos quotidianos e um traço fino, como se alguém tivesse emprestado a pele para uma aula de desenho. Parafraseando uma aprendiz do Porto, antes de serem tatuadores, são artistas. E como em todos os outros suportes, também a tatuagem está à mercê de novas vagas e estilos. Entre Lisboa e a Invicta, falámos com sete tatuadoras que são o fôlego de uma nova geração. O que é que têm em comum? Além de percursos quase sempre ligados às belas-artes e das provas dadas noutros suportes artísticos, uma linguagem que se demarca do imaginário fechado que, ao longo dos anos, considerámos ser a tatuagem.
Com diferentes estilos e inspirações, a leveza, humor e ironia são marcas próprias daquilo a que chamam tatuagem contemporânea. A estética sobrepõe-se ao significado sem julgamentos. As opções que tomam são, em tudo, alternativas à tatuagem convencional, dos próprios estúdios à evidente supremacia feminina. Das sete, a maioria aprendeu a tatuar sozinha, outras ilustraram outras superfícies até perceberem que o corpo dava uma bela galeria de arte. São artistas autodidatas e os rostos de uma nova visão do que a tatuagem pode ser.
Isto é um estúdio de tatuagens ou uma loja de flores?
É preciso entrar no Flourish and Blotts para se perceber a pertinência da pergunta. Mas sim, no número 146 da Rua Damasceno Monteiro, em Lisboa, fazem-se essencialmente tatuagens, embora a profusão de espécies botânicas seja igualmente importante no chamado cartão-de-visita. De cabelo esverdeado, Daisy comporta-se como uma anfitriã clássica, muito pouco hesitante na hora de receber as visitas com simpatia e de mostrar os cantos à casa. “A cor é a minha cena, é muito mais divertido”, revela em jeito de introdução do próprio portefólio. Há um ano, mudou-se para aqui, ela que foi aprendiz num estúdio lisboeta — um dos convencionais, entenda-se — e que concluiu o curso de Pintura na Faculdade de Belas-Artes.
Aos 23 anos, a ideia do que é uma tatuagem está longe de ser a mais unânime. Da flora ao surrealismo, passando pela sobreposição de ambos, antes de chegar à pele, todo o desenho é uma obra assinada. “Sinto que as pessoas já fazem uma tatuagem, não tanto por quererem que ela tenha um significado, mas porque a veem como arte. Em vez de irem a uma galeria, querem colecioná-la no próprio corpo”, explica. Daisy, nome profissional de Margarida Conceição, não tem dificuldade em encontrar um nome para esta nova vaga — chama-lhe tatuagem contemporânea, conceito tão povoado de estilos, referências e estéticas quanto o universo da tatuagem clássica. Parte desta diversidade começa na questão autoral. O artista e as suas idiossincrasias sobressaem em cada desenho e, neste jogo de criatividade, pisar o estilo alheio é perder a oportunidade de desenvolver uma linguagem própria. “No meu caso, foram muitas folhas amachucadas e deitadas fora. É por isso que acho que é tão frustrante encontrar um estilo próprio”, admite.
Atualmente, conta com outros quatro tatuadores na casa, entre eles Karuline Costa, Karu desde o dia em que decidiu simplificar. Aos 13 anos, veio viver para Portugal e, entretanto, mudou-se da Fátima para Lisboa para estudar Desenho, também na Faculdade de Belas-Artes. “Sempre quis tatuar. Lembro-me de ter visto um documentário quando era pequena e de ter ficado completamente vidrada. Depois disso, cresci a ver tudo: ‘LA Ink’, ‘Miami Ink’… Quando vim para cá, percebi que havia uma maior abertura para seguir um percurso artístico”, conta. Todos os passos foram dados para chegar aqui, ao lugar de tatuadora profissional. “Cresci a pensar que tinha de aprender todas as técnicas”, reconhece. Aos 24 anos, conta com um estúdio no centro da cidade onde pode receber os seus clientes. Mas nem sempre foi assim. Comprou a primeira máquina em 2015 e um ano depois já estava a tatuar “a sério”. O desenho a uma linha, o cartoon e a animação japonesa fazem parte de um léxico ainda em construção.
Tanto Karu como Daisy têm no Instagram a sua principal montra para o mundo. Em Portugal, as figuras de proa desta nova vaga têm todas uma característica comum — são mulheres. No Flourish and Blotts, os dois rapazes — um deles aprendiz — são uma aquisição recente. Ter um estúdio só com tatuadoras nunca foi um objetivo, mas ambas reconhecem que os primeiros traços da chamada tatuagem contemporânea estão a ser desenhados no feminino. “As mulheres não são tão bem recebidas quando entram num estúdio tradicional”, refere Karu, que optou por se tornar uma autodidata em vez de dar os primeiros passos dentro de um estúdio. “Talvez no caso dos rapazes também haja mais pressão para se tornarem tatuadores de estilos clássicos”, completa Margarida.
Aqui, assumem quem são, os seus estilos — por muito diferentes que sejam — e os estereótipos que fiquem do lado de fora da porta. Na verdade, é como se ainda fossem estudantes de faculdade — aparecem quando têm marcações ou quando precisam de concentração máxima. Karu é conhecida pelos serões solitários no estúdio — “entre Uber Eats, séries e desenhos”, como denuncia Daisy. A dinâmica é meio familiar, a boa disposição transparece para fora e o próprio espaço foi pensado para bem receber, dos vasos com plantas aos bibelôs de loiça, sem esquecer a mascote, um velociraptor chamado Cornélia, sempre de casaco de pelo cor-de-rosa. “É totalmente diferente da maioria dos estúdios tradicionais, com as paredes pretas e vermelhas e os objetos de couro. Às vezes, sinto que há pessoas que até têm medo de entrar nesses sítios”, reflete. “Queremos que as pessoas se sintam em casa, fazer uma tatuagem já dói o suficiente”.
Animação e tatuagens: uma linha em movimento
Vahine lembra-se do dia em que uma cliente lhe pediu para desenhar um pitbull. Dezenas de esboços depois, cada um explorando uma técnica diferente, chegou àquilo a que os entendidos chamam one line — figuras desenhadas com uma única e fina linha. Encorajada por um dos mentores do estúdio onde trabalha — o Minimal Ink, no Porto — a aprendiz de 28 anos fez da técnica uma espécie de imagem de marca. A partir do traço delicado, como se nunca tivesse saído da sala de desenho, persegue a consolidação do seu próprio estilo. “Nos anos 90, olhava para as tatuagens e era tudo muito old school. Não tinham nada a ver com o que gostava, mas também nunca tinha pensado na pele como um sítio onde pudesse desenhar o que quisesse”, partilha Vahine Correa.
O nome tem muito que se lhe diga, pelo menos, foi diferente o suficiente para lhe facilitar a escolha de uma identidade artística. Basicamente, os pais não resistiram a Vahine, figura feminina pintada por Paul Gauguin na Polinésia Francesa e que, no Taiti, é sinónimo de mulher. Va.hi.ne (com pontos a separar as sílabas) é o nome pelo qual responde quando está de agulha na mão. “Desde pequena que desenho mulheres. Depois, descobri também os elementos botânicos. Quando comecei a tatuar, por exemplo, desenhava muitas flores”, conta. Há nove meses a aperfeiçoar-se, a carreira de tatuadora ainda agora começou, mesmo com o número de clientes a aumentar nas últimas semanas.
Mas o percurso desta aprendiz é a modos que invulgar. Estudou na ETIC, em Lisboa. Tempos depois, voou para França com uma bolsa da mesma escola para estagiar num estúdio de animação. Rodeada por artes plásticas, cinema e videojogos, a inspiração trouxe-a de volta a Portugal com vontade de fazer algo diferente. “Cá, a área [da animação] é muito pequena, mas tinha voltado com um bichinho e queria usá-lo nalguma coisa. Sempre gostei de tatuagens, mas nunca me tinha imaginado a fazer isso. Comecei a mandar mensagens a toda a gente, mesmo à descarada. Foi aí que conheci os meus mestres”, recorda.
“Antes de sermos tatuadores, somos artistas”, confessa. Independentemente do intuito com que alguém faz uma tatuagem — seja pelo significado ou por motivações meramente estéticas — o gozo é o mesmo e a aprendizagem diária. “É uma ilusão achar que se aprende rápido. Não há um curso que ensine a ser tatuador, é aqui a trabalhar num estúdio. E nove meses é muito pouco”, continua a aprendiz, que começa agora a aventurar-se nos primeiros trabalhos a cores, ao mesmo tempo que conta ser cada vez mais comum esbarrar em tatuadores vindos das artes plásticas. Lidar com as agulhas é algo que, de uma maneira ou de outra, todos aprendem. O estilo desenvolvido por cada um é que parece ser o grande passaporte para se afirmarem nesta área. Enquanto procura o seu, Va.hi.ne sonha com o dia em que voltará a sair do pais, desta vez rumo a um destino onde a arte de tatuar esteja a viver um momento fervilhante. A Coreia do Sul está no topo da lista.
Fiasco, uma galeria com a arte à flor da pele
Cíntia Coutinho tem 29 anos e uma grande parte deles foi passada a planear um futuro profissional em aberto, a começar pela faculdade. Escolheu combinar arte e multimédia já a pensar que, um dia, não ia gostar de se ver limitada a um único canal criativo. “Estava numa de experimentar tudo”, refere. Dito e feito. A primeira tatuagem pode ter acontecido aos 16 anos, mas nada lhe determinou o que veio a seguir. O interesse pela arte, bem como a expectativa de um desafio constante, levaram-na a ter uma marca de roupa, experimentar a arte mural, produzir posters e até a ilustrar capas de álbuns e revistas. A tatuagem veio no mesmo pacote. “Curiosamente, as pessoas à minha volta começaram a reconhecer-me um estilo, muito antes do que eu própria dar por isso. Também não posso dizer que seja um estilo estanque. É algo em construção”, reflete a artista.
Na verdade, as ilustrações de Espirro, nome artístico pelo qual é conhecida no meio, fazem dela uma espécie de Kandinsky das tatuagens. Manchas de cores vibrantes, composições abstratas e um sortido de objetos corriqueiros — de sofás a ferros de engomar (não consta que já haja algum em catálogo, mas pareceu-nos fazer sentido) — são elementos transversais aos desenhos feitos sobre a pele, sobre uma folha de papel, numa parede ou em design têxtil. No Fiasco, dá largas à criatividade em todas as suas dimensões. Em novembro do ano passado, Cíntia juntou-se a outras duas artistas — Charleine Boieiro e Catherina Cardoso, ou Françoise e Not From This Box para referir os nomes profissionais — para criar um espaço que muito pouco tem a ver com o estúdio de tatuagens tradicional. Da Rua dos Fanqueiros, o projeto cresceu para o Alto do Pina.
Hoje, há mais três tatuadores na casa, para além do trio fundador. Sem fundamentalismos de género, as portas do Fiasco abriram-se à técnica hand poke (sem máquina) de Luís Julião, ou Tattoos You Will Regret, ao italiano Enkoveri e ao zoológico de Luana Saldanha, também conhecida por Lixo Eletrónico. Na cave, existem outros inquilinos — um fotógrafo e um produtor musical. As plantas e as paredes coloridas podem dominar a chamada primeira impressão, mas o ambiente luminoso e desafogado apressa-se a completar a experiência. Café e cerejas fazem parte do ritual de boas-vindas, bem como uma pequena loja com roupa e acessórios que seguem as diretrizes artísticas com que se desenha sobre o corpo. Charleine tatua há sete anos e foi ela que fez do Fiasco um estúdio como nenhum outro.
“É precisamente por cada tatuador ter o seu estilo que há esta vontade de colecionar obras de artistas no próprio corpo”, refere a tatuadora luso-francesa de 33 anos, que já vai no segundo estúdio próprio em Lisboa. Estudou na Edinburgh College of Art e mudou-se para Lisboa há seis anos. Pelo caminho, encontrou os Adamastor Studios, um polo cultural de criação artística em diferentes áreas, no centro da cidade. Com o diálogo entre artistas, Charleine montou um puzzle maior. Afinal, não há limites ao que pode ser desenhado sobre a pele. “Aquele sítio era uma galeria de arte e comecei a ver nos trabalhos dos artistas que expunham lá um enorme potencial para tatuar”, recorda. A ideia rapidamente passou à fase de concretização. Assinaram-se contratos com alguns artistas, que por sua vez criaram desenhos únicos e irrepetíveis. Hoje, o catálogo conta já com 26 nomes, mas há mais dez com lançamento marcado para breve.
Lisboa já faz parte de um roteiro internacional. Estúdios como o Fiasco funcionam à porta fechada, por marcação, com um rol de artistas residentes e com convidados internacionais que aparecem para residências temporárias. Alguns programam digressões mundiais, os portugueses não são exceção. Charleine viaja, em média, 12 vezes por ano. O próximo voo está marcado ainda para este mês e vai levá-la a um festival de cinema, em Paris. Em setembro, é Lisboa a dominar a agenda. Entre os dias 13 e 15, no Anjos 70, a terceira edição do festival Unconvention vai reunir nomes nacionais e estrangeiros, num programa complementado por performance. Françoise é a mentora do evento que, como o próprio nome indica, abre alas para os estilos mais alternativos.
A mudança salta à vista. Hoje, a aprendizagem de um tatuador não tem necessariamente de passar por um estúdio. “Existem muitas mais possibilidades de seres um autodidata. Compras a tua máquina, a tinta e experimentas em casa”, resume Charleine. Na hora de localizar esta nova vaga no tempo, Cíntia recorre ao grande boom do Instagram. A rede social é o mostruário mais eficaz para artistas de todo o mundo. De forma imediata e sem barreiras físicas, a diversidade de estilos e traços, praticamente infinita, chega a todo o lado. Se, por um lado, aproxima os artistas, possibilitando a criação de um sentimento de comunidade, por outro, conecta as pessoas com os seus trabalhos favoritos e com os respetivos autores. Já quase ninguém entra num estúdio em busca de inspiração, a escolha de uma tatuagem começa nas redes sociais.
O belo e o bizarro: como é estar na pele de uma tatuadora?
Não é por acaso que esta nova vaga é protagonizada por mulheres. Mais do que uma associação do traço feminino aos estilos emergentes, o fenómeno parece estar ligado a percursos alternativos dentro da área, a uma aprendizagem por conta própria e a uma versatilidade artística e criativa própria de quem cresce noutros ambientes, que não os estúdios convencionais. Patrícia Tavares tem 24 anos e começou a tatuar profissionalmente há três. Lembra-se do dia em que entrou num estúdio, já com um portefólio na mão. “Disseram-me que os desenhos não tinham nada a ver com tatuagens — não tinham sombras, muitos eram só uma linha — e que, por ser rapariga, ia ser muito mais difícil”, recorda. A alternativa foi, lá está, aprender sozinha. Patrícia nunca se identificou com as tatuagens tradicionais. As primeiras referências estavam muito mais alinhadas com a imagética da ilustração científica.
Mais um percurso, profissional e artístico, que evoluiu de forma muito pouco linear. É natural de Aveiro e licenciou-se em Design de Moda. Dançou, meteu-se na ilustração e, sem querer, começou a fazer figurinos para teatro. No Porto, para onde se mudou, conheceu Ágata Gonçalves (ou só Agata), atualmente, o rosto dos Pântano Studios na Invicta. Pode dizer-se que uma incitou a outra. Começaram em casa, não com pernas e braços, mas com laranjas e bananas. De visita a Lisboa, conheceu Marta Naia. A compatibilidade não foi imediata, mas, depois de se estranharem, perceberam que havia uma amizade pela frente. Passados alguns meses, o Pântano instalava-se em Lisboa, com um primeiro espaço na Pensão Amor, no Cais do Sodré. Hoje, Patricia Shim e Adfunto, os nomes profissionais de Patrícia e Marta, têm a casa cheia.
Ao todo, são oito as tatuadoras que partilham este espaço à porta fechada. Os imaginários não podiam ser mais distintos. Marta explora o bizarro e o grotesco, bem como as referências visuais dos antigos circos e freakshows e da ilustração medieval, sempre com uma tónica crítica ou mesmo irónica. Os desenhos de Patrícia gravitam em torno da figura feminina, preferindo a imagem de uma rapariga real (em vez do ideal de uma silhueta perfeita socialmente perpetuada) e, por vezes, a sua relação com a natureza. “Um desenho só é tatuado uma vez e a verdade é que as pessoas querem algo único. Por isso é que nos procuram e não se limitam a ir ao Pinterest”, defende Patrícia. “Depois, quem entra aqui não vem só fazer uma tatuagem, acaba por ter a experiência de estar aqui connosco — trocamos histórias, servimos chá, café, bolinhos. Às vezes, somos um autêntico consultório de psicologia”, continua.
Nem toda gente reconhece os novos estilos contemporâneos como tatuagem. Já Patrícia e Marta têm a certeza de que o que fazem está a fazer a arte expandir-se para novos territórios. Por outro lado, ser-se mulher continua a ser sinónimo de ter a vida dificultada, sobretudo quando se está na posição de aprendiz. “A indústria continua muito machista, escura e fechada. Não há espaço para coisas novas”, afirma Patrícia. De cor, consegue contar algumas histórias, além da sua — da amiga que foi chamada atenção no dia em que decidiu ir trabalhar sem eyeliner, ou de uma outra que foi contratada pela boa forma física para ser uma espécie de mascote do estúdio. “Acho que não temos de lavar o chão nem de ser o bibelô da loja para aprender a tatuar”, conclui Marta.