Discurso de Joe Biden

A primeira intervenção de Joe Biden como (futuro) Presidente dos EUA

“Prometo ser um Presidente que procurará unir, não dividir. Que não vê estados vermelhos e estados azuis, só vê os Estados Unidos.”

O apelo à união foi o tónico principal do discurso de declaração de vitória de Joe Biden — como já tinha sido na véspera, quando falou apenas como candidato otimista. Quando disse que “não vê estados vermelhos e estados azuis, só vê os Estados Unidos” — uma frase que foi também central num dos discursos mais conhecidos de Barack Obama, quando ainda era um quase desconhecido no partido e no país, em 2004 —, Biden está a reforçar uma mensagem que já expressara várias vezes, como no segundo debate que teve com Trump, ainda durante a campanha. Aí, o Democrata criticara a divisão do país promovida por Trump, que culpava os Governadores democratas (acusando-os de inação) pela violência em protestos associados ao clima de tensão racial e ao movimento Black Lives Matter, mas também por respostas mais restritivas à pandemia da Covid-19. Biden chegou a dizer nesse debate com Trump que o número de casos diários de infeção estava a explodir em estados do Midwest, governados por Republicanos, mas que, ao contrário do então Presidente, não iria promover essa divisão do país entre “estados vermelhos” e “estados azuis”. Agora reforça a mensagem: quer união nos Estados Unidos da América, independentemente da afiliação partidária do Governador de cada estado. O tempo em que o país tinha um Presidente que procurava “dividir” e polarizar os eleitores em vez de os “unir” terminou, sugere Biden.

“Procurei este cargo para tornar a América num país respeitado no mundo outra vez.”

Aqui a mensagem é mais simples e menos subliminar. Embora não o diga expressamente, Joe Biden di-lo implicitamente: ao referir que quer tornar a América “num país respeitado no mundo outra vez“, a ideia que quer transmitir é que já o foi e deixou de ser. É claro que, para Biden, a América deixou de ser respeitada no mundo nos quatro anos em que teve Donald Trump como Presidente — mas o sucessor preferiu não mencionar, visar e criticar direta e explicitamente o antecessor. Fê-lo com mais pinças, até para não colocar mais achas na fogueira que consome os EUA neste momento: a desunião entre dois polos que são quase dois países em confronto, um pró-Republicano e outro pró-Democrata. Além disso, a frase é uma espécie de resposta ao “tornar a América grande outra vez”, lema de Trump.

“O povo desta nação falou. Deram-nos uma vitória clara. Uma vitória convincente.”

Joe Biden não quer que subsistam dúvidas: a sua vitória nas eleições norte-americanas não foi por “poucochinho”, foi “clara e convincente”. Na noite anterior, quando nenhum meio tinha projetado ainda a sua vitória nas eleições, já tinha dito: “Vamos ganhar esta corrida com uma maioria clara e com uma nação a apoiar-nos. Tivemos mais de 74 milhões de votos. É mais do que qualquer outro candidato a Presidente na história da América”. Não é por acaso: vários meios de comunicação norte-americanos têm notado que a vitória Democrata não foi tão retumbante quanto algumas sondagens previam e que por isso Biden pode ser um Presidente mais fragilizado. A demora no apuramento de resultados também trouxe alguma indefinição quanto ao vencedor e Biden quer vincar que a sua vitória é “clara”, não deixa margem para dúvidas. Assim, descredibiliza também quem diz que a margem de vitória foi tão curta que é preciso esperar por processos judiciais para averiguar se a eleição não pode pender afinal para o seu opositor. A verdade é que, entre os estados que reconquistou e as vitórias que conseguiu em locais mais improváveis, a vitória não é pequena ou curta.

“Acredito na América das possibilidades. Somos os Estados Unidos da América e nunca houve nada que não conseguíssemos fazer quando o fizemos juntos.”

As mensagens de apelo à união e à agregação dos eleitores, depois de um processo eleitoral disputado, são habituais nos discursos de vitórias. Neste momento, a capacidade de unir o país parece especialmente importante tendo em conta que os dois pólos existentes, pró-Democrata e pró-Republicano, nunca foram em simultâneo duas fações tão numerosas e tão extremadas. Biden apela, por isso, àquilo que une e não àquilo que separa os eleitores. E o que une é a nacionalidade americana. É por isso que diz: “Somos os Estados Unidos da América e nunca houve nada que não conseguíssemos fazer quando o fizemos juntos“.

“Estou orgulhoso da coligação que criámos, a mais alargada e diversa de sempre. Juntámos Democratas, Republicanos, independentes, progressistas, moderados, conservadores, jovens, velhos, urbanos, suburbanos, rurais, gays, heterossexuais, transgénero, brancos, latinos, asiáticos, nativo-americanos. (…) Queria que esta campanha representasse e se assemelhasse à América. (…) Vamos ser a nação que sabemos que conseguimos ser, uma nação unida”

Num momento em que nos Estados Unidos da América as “políticas identitárias” estão na ordem do dia — e em que os discursos defensores das minorias (predominantes em alguns setores da base Democrata) e críticos da obsessão com a defesa das minorias (predominantes em boa parte da base Republicana) também o estão —, Biden quer dizer ao país: a sua candidatura foi capaz de unir quem pensa de maneira muito diferente e quem tem origens, idades, orientações políticas, orientações sexuais e cor de pele diferente. E é isso que pretende fazer como Presidente: unir quem está desunido. Quando diz que queria que a sua campanha “representasse e se assemelhasse à América”, Biden quer vincar que na sua América cabem todos e não vai representar e defender apenas determinados grupos de norte-americanos. No discurso da véspera, aliás, já vincara a vontade de “cuidar de todos os americanos”.

“Todos aqueles que se voluntariaram e que trabalharam nas assembleias de voto no meio desta pandemia merecem um agradecimento especial de toda a nação.”

Em momento algum do seu discurso de declaração de vitórias nas eleições norte-americanas Joe Biden comentou ou visou a estratégia do rival Donald Trump, que está desde o final da noite eleitoral a pôr em causa o processo de contagem de votos. Trump diz que houve fraude, Biden não quis sequer alimentar a discussão em torno da legalidade das eleições — o que faria se comentasse diretamente as dúvidas e posicionamento de Trump. Desconsiderando, de algum modo, a tese de irregularidades eleitores (por não lhe merecerem sequer um comentário), diz simplesmente que “toda a nação” deve um “agradecimento” a quem contou os votos. “Toda a nação” inclui, logicamente, Trump e os seus apoiantes.

“A todos vocês que votaram no Presidente Trump, digo: compreendo a desilusão, também já perdi algumas vezes, mas vamos lá dar uma oportunidade uns aos outros. É altura de nos voltarmos a ouvir uns aos outros. É altura de deixar para trás a retórica dura, baixar a temperatura. Para progredirmos, temos de parar de tratar os nossos oponentes como inimigos. Não são nossos inimigos, são americanos. (…) Vamos fazer com que o fim da era da demonização na América comece aqui e agora”

A campanha eleitoral foi dura e agressiva, com troca de palavras duras entre os dois candidatos e entre apoiantes dos dois candidatos. Biden já o reconhecera no discurso da véspera, em que não se declarou vencedor mas em que se projetou vencedor. Agora volta a reafirmar a necessidade de colocar as diferenças de lado. A incapacidade de dialogar, aceitar divergências de opiniões e conviver de forma saudável revelada por eleitores de Trump e pelos seus eleitores preocupa o Presidente norte-americano. É preciso que os norte-americanos voltem a ser capazes de “ouvir” aqueles de quem discordam, é preciso “baixar a temperatura” e a tensão e é preciso privilegiar o que une une em detrimento do que separa. Daí que Biden diga que os oponentes de uns e outros “não são inimigos”, são “americanos” — e isso deve juntá-los num debate pacífico e moderado.

“Esta é a altura de curar a América.”

Será, talvez, a frase mais marcante do discurso. Só uma nação que está doente, com feridas, precisa de curar. Para Joe Biden, é assim que a América está. Depois de quatro anos de administração Donald Trump, depois da divisão crescente entre Democratas e Republicanos — notória em tudo, até na forma como os diferentes órgãos de media se posicionam e se assumem cada vez mais ideologicamente inclinados (já não é só a Fox News nem são só os media Republicanos, são quase todos — , a América tem de “curar”. E curar passa, para Biden, por travar a bipolarização crescente e tentar voltar a ser um país coeso e capaz de dialogar.

“Qual é a vontade das pessoas? Que mandato nos foi dado? Acredito que foi este: os americanos pediram-nos que mobilizássemos as forças da decência e as forças da justiça. Pediram-nos que mobilizássemos as forças da ciência e as forças da esperança nas grandes batalhas do nosso tempo: a batalha para controlar o vírus, a batalha pela prosperidade, a batalha para garantir os cuidados de saúde das vossas famílias, a batalha para alcançar justiça racial e erradicar o racismo sistémico deste país, a batalha para salvar o clima, a batalha para restaurar a decência, defender a democracia e dar a todos uma oportunidade justa.”

Joe Biden elenca um conjunto de prioridades e desafios que terá como Presidente dos Estados Unidos da América. Uma das “grandes batalhas” será “controlar o vírus” da Covid-19. Outra será a “prosperidade”, numa altura em que a própria Covid-19 se repercute na economia e nas posses e emprego dos norte-americanos. Outra são os cuidados de saúde, que a pandemia reforça, mas que são tema discutido no país dadas propostas como o Obamacare e a vantagem ou desvantagem da saúde pública e privada.  Outra batalha ainda é enfrentar “o racismo sistémico deste país” e garantir que todos são tratados de igual modo, independentemente da cor da pele que tenham. Será ainda preciso travar uma batalha “para salvar o clima”, dadas as alterações climáticas, que Biden não duvida resultarem de ação humana (ao contrário de fações negacionistas do Partido Republicano), outra para “restaurar a decência” —  se é preciso “restaurar”, é porque se perdeu nos últimos anos — e “defender a democracia” que alguns acusam Trump de estar a pôr em causa, ao contestar o processo eleitoral. E “dar a todos uma oportunidade justa”: afinal, os EUA são conhecidos como a terra das oportunidades, em que é possível ascender na cadeia social através do trabalho e da perseverança. A agenda é progressista e posiciona a futura Administração Biden muito à esquerda da Administração Trump, mas não na esquerda radical.

“Não podemos reparar a economia, restaurar a nossa vitalidade ou saborear os momentos mais preciosos da vida (…) até controlarmos o vírus. Na segunda-feira, vou nomear um grupo de cientistas de primeira linha e de especialista como Conselheiros de Transição, para ajudar a pegar no plano Covid Biden-Harris e convertê-lo em algo capaz de ser colocado em prática logo a partir do dia 20 de janeiro de 2021.”

Joe Biden não tem dúvidas: sem controlar a evolução da pandemia da Covid-19, os Estados Unidos da América não terão nem recuperação económica nem estabilidade emocional, por não ser possível no país “saborear os momentos mais preciosos da vida”. À habitual dicotomia entre saúde e economia, reforçada por vários políticos — incluindo Donald Trump, mas também primeiros-ministros de países europeus —, Biden responde com uma estratégia que tem uma ideia chave, o lado contrário da moeda: a economia também não avança se a evolução da pandemia se descontrolar. Há muito que Biden critica a estratégia adotada por Trump para responder à pandemia e há muito que fala na importância de adotar uma estratégia diferente para ajudar a “salvar vidas”. A prioridade em mudar de estratégia é considerada premente e Biden promete que agirá de forma diferente do antecessor, com um plano de resposta próprio à Covid-19 (o “plano Covid Biden-Harris”) desde o dia 1: 20 de janeiro de 2021, aquele em que toma posse.

“A comunidade afro-americana voltou a erguer-se por mim. Estiveram sempre lá para me defender — e eu estarei sempre cá para vos defender.”

Sem falar de tensões raciais, não é possível falar dos Estados Unidos da América de 2020 — e de qualquer ano até aí, especialmente desde o surgimento do movimento Black Lives Matter e desde a vaga de protestos que começou em Baltimore, em 2015, e se espalhou como pólvora por todo o país. Biden sabe que o voto afro-americano teve um peso significativo na sua eleição, mas sabe também que o racismo e as discussões em torno da desigualdade racial e da violência policial sobre negros são uma das grandes chagas dos EUA de hoje. De um lado da barricada grita-se “Black Lives Matter”, do outro “All Lives Matter”, mas Biden posiciona-se junto dos primeiros: e promete “defender” os afro-americanos enquanto Presidente. O que não significa que não vá também tentar representar e defender os interesses daqueles que, não sendo afro-americanos, sentem que foram deixados para trás enquanto os EUA caminhavam rumo ao progresso socio-económico.

“Como o meu avô dizia quando eu saía da casa dele, quando eu era um miúdo em Scranton. Ele dizia ‘mantém a fé’, e a minha avó dizia ‘não, Joey, espalha-a’. Espalhem a fé! Deus ama-vos a todos. Que Deus abençoe a América e proteja a nossa igreja.”

Não haverá neste momento muitas coisas mais capazes de unir norte-americanos do que a fé. O país está dividido em dois no que respeita ao posicionamento político e ideológico (mais ou menos estruturado), mas a religião não tem “cor”, não é azul (Democrata) nem vermelha (Republicana). O peso da religião num país como os Estados Unidos da América é grande e Joe Biden, que por sinal é católico, é mais um dos políticos que incorpora “Deus” e a sua fé no discurso político. Outra referência importante é à avó e à sua cidade natal, Scranton. As referências de Biden às suas origens nos discursos que profere costumam ser abundantes e as menções à cidade natal também. Desta vez, no discurso mais importante da sua vida — aquele em que se declara futuro Presidente dos EUA (tomará posse em janeiro) —, não foi diferente.