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Enviados especiais do Observador ao Reino Unido, Cátia Bruno e João Porfírio.
Bob Morris era um cadete de 14 anos de uma escola militar quando Isabel II se tornou Rainha. Dias antes da sua coroação, a 2 de junho de 1953, os pais deste rapaz de Birmingham compraram um aparelho de televisão para poderem assistir à cerimónia. Fizeram assim parte dos cerca de 20 milhões de britânicos que se estima que tenham assistido à cerimónia, transmitida pela televisão pela primeira vez. Bob foi um deles, um dos que se juntou em frente ao pequenino aparelho para ver tudo ao pormenor.
Apesar de ser ainda adolescente, Bob teve noção do impacto que a coroação de Isabel II teve: “Aquele era um país completamente diferente do que temos agora, um país ainda marcado pela II Guerra Mundial. Ainda havia sítios que não tinham sido reconstruídos depois dos bombardeamentos, ainda havia racionamento, ainda havia recruta obrigatória”, descreve ao Observador agora, quase 70 anos depois, à porta da Abadia de Westminster — o local onde decorreu a cerimónia.
“Ainda éramos um país militarizado e cinzento. E aquela coroação foi um borrifo de cor. Aqui estava uma mulher jovem, que era mãe e que se preparava para ser a nossa líder — uma líder apolítica. E a monarquia tem isto: permite a uma população apolítica sentir-se mais próxima do sistema político e constitucional, funciona como uma espécie de cola.”
Em 1953 Bob não adivinhava que grande parte da sua vida adulta seria gasta a estudar aquela mulher e todos os que ocuparam aquele cargo antes dela. Mas assim foi: primeiro como funcionário público do ministério da Administração Interna, contactou de perto com o funcionamento interno do Estado britânico, monarquia incluída. Agora, como investigador do departamento que se dedica a estudar a Constituição na University College London, continua a “pensar a monarquia”, como o próprio descreve.
Aos 83 anos, continua ativo e cheio de ideias para partilhar. Prova disso foi o que aconteceu no dia em que Isabel II morreu. De férias em Norfolk, apressou-se a pegar no carro e a regressar a Londres para participar numa emissão televisiva sobre o assunto. Bob Morris tem sempre algo a dizer quando o assunto é a monarquia, a Família Real e a sua relação com o sistema governativo britânico.
“O espetáculo ajuda a que a coroação se vá mantendo”
O encontro com o Observador ocorre em frente à Abadia de Westminster, a dois passos do Parlamento britânico, por ser este o sítio onde irá decorrer o funeral de Isabel II, na próxima segunda-feira, e por ter sido o palco da sua cerimónia de coroação, em 1953.
“Foi uma cerimónia que durou três horas”, conta o professor. “O que não custa muito a uma jovem de 25 anos, mas imagino que possa ser mais difícil para um homem de 73”, acrescenta, referindo-se às perspetivas para a próxima cerimónia, ainda sem data marcada. Ao prever como poderá ser a coroação de Carlos III, Bob Morris arrisca dizer que só duas coisas serão diferentes: a dimensão, com esta cerimónia certamente a ficar aquém dos oito mil convidados de 1953; e a abertura à presença de membros de outras religiões para lá da anglicana.
“A sociedade mudou muito desde 1953”, resume o investigador, apontando para a maior secularização, a diversidade étnica e as novas tecnologias. Mas as mudanças são também de mentalidade, aponta: “Basta pensar na minha vida, eu que nasci em 1939. Estudei numa escola só de rapazes, fui para o Exército e depois estudei numa Universidade masculina. Quando comecei a trabalhar no serviço público, em 1961, de repente encontrei mulheres. E descobri que a maioria era muito mais inteligente do que eu!”, comenta com uma gargalhada. “Um rapaz ter este choque agora é impensável. E ainda bem”.
Mas não se pense que estas mudanças sociais podem fazer com que uma longa cerimónia religiosa, que ainda mantém os ritos romanos e bizantinos, seja eliminada. O Reino Unido continua a ser a única monarquia da Europa onde o momento da coroação continua a existir, com os países nórdicos a terem abolido essa cerimónia ainda no século XIX.
“Porque é que a mantemos? Nunca encontrei uma resposta cabal para essa pergunta”, confessa Bob, antes de sugerir dois fatores que podem ajudar a explicar o fenómeno. ”Para alguns é uma questão religiosa. Em 1953, 40% da população acreditava que Deus tinha escolhido Isabel II para ser Rainha. Hoje em dia já não é assim. O que é igual é que é uma grande festa, e o espetáculo ajuda a que se vá mantendo. É uma ocasião especial e a maioria das pessoas só o vê uma vez na vida.” Sempre ali, na Abadia de Westminster, onde as torres em estilo gótico e os arcos quebrados se mantêm iguais há séculos.
Mas há espaço para algumas mudanças nas cerimónias reais, coroação incluída. O professor aponta o exemplo de um ritual registado na coroação da Rainha Vitória (1837), em que a nova Rainha atirou moedas de prata e ouro para a população: “Uma das moedas caiu aos pés de uma duquesa, que ficou muito embaraçada, com vontade de apanhar a moeda, mas sem saber se devia. A partir daí, eliminou-se essa parte da cerimónia”.
Para lá do brilho das luzes, o papel político do monarca
Muitos no Reino Unido e fora dele olham para a monarquia e para a Família Real britânica com leveza, como se não passassem de uma distração para os comuns mortais, uma novela que se vai acompanhando à distância. Mas o monarca britânico, seja ele quem for, é também chefe de Estado e tem um papel fundamental no funcionamento do sistema político.
Bob Morris dedicou grande parte do seu estudo a essa dimensão estatal dos monarcas britânicos e nota que, ao longo do tempo, o país se foi tornando num regime cada vez mais parlamentar e menos absolutista. Longe vão os tempos em que era o Rei quem escolhia o primeiro-ministro e em que podia vetar leis, ilustra. “Mas, embora os poderes políticos do monarca tenham diminuído ao longo dos tempos, ele ainda é o último responsável”, alerta o professor. “Por exemplo: se Boris Johnson tivesse recusado sair do Nº10, era a Rainha quem o ia tirar de lá.” Ou seja, numa situação como essas, Isabel II teria todo o poder constitucional para decretar o afastamento daquele primeiro-ministro.
Até nos seus últimos dias de vida a Rainha demonstrou a relevância do seu papel ao indigitar Liz Truss como nova primeira-ministra. E, nos minutos que mediaram a saída de Boris Johnson da audiência com Isabel II e a indigitação de Liz Truss, constitucionalmente o país estava sem primeiro-ministro. O que significa isto? Que, naquele momento, era a Rainha a única responsável.
Mas todo esse poder só funciona, diz Bob Morris, porque o monarca no sistema britânico mantém uma imagem apolítica e imparcial. E para o professor, Isabel II foi exímia nessa tarefa. “Ela só escorregou uma vez, aquando do referendo da independência da Escócia. Na altura disse ‘Espero que as pessoas pensem com cuidado’”, recorda, torcendo o nariz à frase.
“Mas o facto de estar em causa a manutenção do Reino Unido como União não poderia ser motivo suficiente para ela assumir uma posição, embora rara?”, questionamos, numa altura em que, na Abadia de Westminster, o céu cinzento ameaça cada vez mais chuva. Morris é taxativo na resposta: ”Tenho a certeza que ela era unionista, mas o monarca não lidera o sistema político. Ela ou ele tem de ficar fora dessas questões.”
O papel do monarca surge também na influência indireta, mais visível nas audiências privadas com primeiros-ministros — e Isabel II privou com 15. Governar, diz Bob Morris, “pode ser um negócio sujo”. “Como dizia Bismarck, ‘Vocês não querem ver como são feitas as salsichas’”, acrescenta, bem-disposto. “Os primeiros-ministros sempre disseram que as audiências eram úteis, nem que seja porque sabem que ela nunca vai contar o que lhe disseram. E, nos últimos anos, eles beneficiaram da sua longa experiência, em contraste com as primeiras audiências que ela teve, em que foi ela a beneficiar da experiência de Winston Churchill.”
O trauma da abdicação de Eduardo e as perspetivas para um Rei Carlos III
Enquanto Bob Morris conversa com o Observador, os turistas continuam a espreitar para a Abadia de Westminster, que permanece fechada ao público nestes dias, por ser o local onde se realizará a cerimónia do funeral de Isabel II. Um padre, de batina preta, passeia ao longo dos jardins, do lado de dentro dos portões. “A Igreja está naturalmente muito envolvida nisto, eles estão cheios de preparações”, nota o professor, apontando para dentro da catedral.
Mesmo à porta da fachada ocidental da Abadia, sentado debaixo de uma árvore, Morris conta que, como hipótese académica, chegou a questionar se a monarquia como sistema político não poderia vir a acabar no Reino Unido por os próprios membros da Família Real não quererem continuar: “Isto é muito intrusivo para eles: observam-se as roupas, o comportamento dos filhos, etc. Vivem numa gaiola dourada”.
Uma vez, ao cruzar-se com uma pessoa que trabalhava no Palácio de Buckingham, levantou-lhe essa questão: “Não acha que eles se podem fartar?” Do outro lado, a pessoa respondeu-lhe “Nem pensar!”. “Porque há uma falta de privacidade, mas há também o outro lado da moeda, o do privilégio”, explica.
A ideia de abdicar do trono sempre foi aberrante para Isabel II. “A abdicação era mal vista por ela por duas razões diferentes. A primeira é a questão religiosa: o monarca é também o chefe da Igreja Anglicana. A segunda é o caso de 1936”, explica Bob Morris. O professor refere-se a Eduardo VIII, nomeado Rei nesse ano após a morte do pai, Jorge V, mas que abdicaria menos de um ano depois. A decisão aconteceu ainda antes da sua própria cerimónia de coroação e foi tomada para Eduardo poder casar com Wallis Simpson, uma norte-americana divorciada.
“Eduardo estava tão pouco interessado na coroação que quem estava presente nas reuniões de planeamento era o irmão”, aponta Bob Morris, referindo-se ao príncipe Alberto, pai de Isabel II. “E acabou por ser ele o Rei quando Eduardo decidiu abdicar. Mas essa decisão semeou o caos na família. O Rei Jorge VI, pai de Isabel II, tinha todos aqueles problemas com os discursos públicos que conhecemos. Foi difícil.”
A ideia de abdicação tornou-se, por isso, um trauma para a família de Isabel II. De tal forma que o novo Rei Carlos também já garantiu que não irá abdicar, ao prometer no seu primeiro discurso à nação que vai prestar “um serviço para a vida”. Bob Morris considera que tanto esse primeiro discurso como as declarações oficiais no Parlamento esta segunda-feira feitos por Carlos foram “cheios de emoção genuína e as pessoas responderam bem a isso”.
Um bom prenúncio para o reinado de Carlos III? Não exatamente, prevê o professor. “O problema é que todos sabemos muito sobre Carlos, enquanto não sabíamos nada sobre a mãe dele, que só deu uma entrevista uma vez. E todos sabemos o potencial desastroso que uma entrevista pode ter, basta lembrarmo-nos da do príncipe André…”, diz, referindo-se à entrevista do príncipe sobre a sua relação com Jeffrey Epstein e as acusações de ter tido relações com uma menor que pendiam sobre si.
“Mas Carlos também traz algumas coisas boas, como o seu ambientalismo, que cai bem nesta fase. Outra mudança que ele quer fazer é reduzir os membros ativos da Família Real, mas aí acho que há um perigo: eles trabalham muito em várias causas para a sociedade civil e o trabalho pode ser afetado”, considera Bob Morris. “Sabe, é que há uma diferença entre ser uma celebridade, como a Meghan, por exemplo, ou ser um membro da Casa Real: a celebridade procura atenção para si; os membros da Família Real dão atenção aos outros.”
Apesar das mudanças que a partida de Isabel II e a subida de Carlos III ao trono introduzem no sistema, o investigador está convencido de que a monarquia continua para durar no Reino Unido. Os jovens são quem menos apoia este sistema, o que lança dúvidas sobre a sustentabilidade deste equilíbrio no futuro. “Apesar de se reverem sempre nalguma das figuras da Família Real. Lembro-me bem o que a minha neta chorava quando o príncipe William se casou!”, nota, entre risos, o professor.
Mas, aos 83 anos, Bob Morris acha que, apesar de tudo, há sinais encorajadores de que Carlos pode vir a ser um Rei alinhado com o espírito desta época. E aponta um exemplo de quando trabalhava no ministério da Administração Interna, no início da década de 1980, e perguntou a um dos responsáveis da Guarda Real porque razão não havia guardas negros nas suas fileiras. “‘Quando eles se candidatam nós explicamos-lhes que este talvez não seja o lugar para eles”, foi a resposta que recebeu e que o deixou chocado.
“Em 1986, o príncipe Carlos deu instruções para que esse comportamento mudasse”, aponta — tendo o príncipe dito em público que tinha “graves preocupações” sobre a falta de diversidade e acusações de racismo dentro Guarda Real. “Pode parecer algo pequeno, mas não é. É o que um líder faz.”