“Vocês conseguem imaginar que eu perco?”
O tom com que Donald Trump fez esta pergunta aos seus apoiantes num comício em Macon, na Georgia, não deixava espaço para dúvidas: era uma piada. E foi assim mesmo que prosseguiu, dizendo depois isto: “[Se perder] não me vou sentir lá muito bem. Se calhar vou ter de me ir embora do país, não sei…”. A tirada valeu algumas gargalhadas no momento e até teve direito a resposta da campanha de Joe Biden: “Promessa?”.
É, pois, pouco plausível que Donald Trump saia dos EUA. Porém, mesmo que o venha a fazer e nunca mais ponha os pés no país que o elegeu Presidente em 2016, uma coisa parece ser muito mais certa: do Partido Republicano não sairá.
Mais de cinco anos depois de ter irrompido pelas eleições primárias do Partido Republicano adentro, das quais saiu vitorioso quebrando várias barreiras no que dizia respeito ao tom e também ao conteúdo dentro do partido de Abraham Lincoln e Ronald Reagan, Trump tem agora um partido moldado à sua imagem — e que dificilmente desaparecerá mesmo que perca a 3 de novembro.
Do reaganismo ao trumpismo
Donald Trump apanhou o Partido Republicano e transformou-o, como explica o colunista conservador David Brooks, do The New York Times.
Primeiro, havia o reaganismo. “Consistia em limitar o governo, disseminar a democracia no estrangeiro, construir mercados livres dinâmicos e cultivar pessoas com virtudes vigorosas — pessoas que são enérgicas, retas, empreendedoras, independentes, leais para os amigos e fortes contra os inimigos”, escreveu.
Depois, houve o que David Brooks classifica de “reaganismo anti-governo em modo de morto-vivo”, altura em que a visão de Reagan foi desaparecendo, dentro e fora do partido, sem que os seus líderes entendessem que rumo deveriam seguir — e que, à sua maneira, se agarraram a ideias cujo prazo de validade já expirara. Nesta fase, encontra-se tanto George W. Bush (Presidente entre 2001 e 2009) como Mitt Romney (candidato derrotado em 2012).
Finalmente, chegou o trumpismo. Auxiliado pelo seu guru ideológico, Steve Bannon, Donald Trump fechou a fase reaganista e inaugurou a sua própria, com uma mensagem assumidamente populista que hoje domina o partido. “Donald Trump e Bannon pegaram numa facção barata do conservadorismo — o nacionalismo étnico com base na classe — que esteve sempre fechado na cave da direita americana e que derrubou o paradigma de Reagan”, resumiu aquele colunista.
“Bannon e Trump entenderam bem as emoções”, sublinha. “Entenderam que os eleitores republicanos já não podiam ser motivados por uma sensação de esperança e oportunidade, [mas que] podiam ser motivados por uma sensação de ameaça, ressentimento e medo. No fundo, muitos republicanos sentiram que estavam a ser purgados do seu próprio país — pelas elites com ensino superior, pelo multiculturalismo e pelo secularismo militante.”
Não é, pois, por acaso que, na altura de elencar os seus inimigos políticos, Trump não hesite em juntar democratas e republicanos no mesmo fôlego. Num comício esta quarta-feira, na cidade de Gastonia, na Carolina do Norte, o Presidente atirou no mesmo fôlego contra as “fake news” e os seus “parceiros do Partido Democrata” e também contra os “grandes gigantes da tecnologia”. Aqui, poupou-se a adjetivos.
Mas, quando falou para dentro do Partido Republicano, já não foi igual. Falando dos Never Trumpers (republicanos que nunca apoiaram Donald Trump) e de RINO (sigla para Republican In Name Only, ou seja, Republicanos Apenas No Nome), falou de “gente verdadeiramente estúpida”. E, entre aplausos, continuou: “Derrotei-os de tal maneira que eles nunca conseguiram ultrapassar isso”.
A revolta dos republicanos contra Trump começou, mas não se sabe no que ela vai dar
Tem razão — muitos dos protagonistas do anterior statu quo do Partido Republicano ainda não ultrapassaram o facto de Donald Trump ser hoje Presidente e uma figura incontornável da direita norte-americana. E o desdém que Trump assume perante essas figuras é recíproco, como se entende em expressões mais ou menos declaradas. Já em 2016, apenas um antigo candidato republicano à presidência (Bob Dole, derrotado por Bill Clinton em 1996) esteve presente na Convenção do Partido Republicano que coroou Donald Trump. Este ano, não foi nenhum.
Dos ex-presidentes e ex-candidatos republicanos à presidência vivos — Bob Dole, George W. Bush e Mitt Romney — nenhum tem expressado apoio a Trump: Bob Dole, com 97 anos, limitou-se apenas a criticar a comissão organizadora dos debates, referindo que esta é parcial contra o Presidente. De resto, George W. Bush tem guardado silêncio. E Mitt Romney, que, enquanto senador, foi o único republicano a votar a favor do impeachment de Donald Trump, tem criticado abertamente o Presidente. Num comunicado, falou negativamente “do estado da política” nos EUA e não poupou Trump (e também alguns democratas, sublinhando, ainda assim, que Joe Biden “se recusa a descer tão baixo”). Porém, já depois disso, criticou abertamente o Presidente por não denunciar o coletivo de teorias da conspiração QAnon.
— Mitt Romney (@MittRomney) October 16, 2020
Raízes profundas, para lá de Trump
Da mesma maneira que o reaganismo estabeleceu raízes profundas no Partido Republicano, também o trumpismo parece ter condições para ser a doutrina dominante da direita norte-americana — mesmo que essa insistência, caso venha a dar provas de ser um erro, leve o trumpismo a ser empurrado do poder.
O politólogo da Universidade de Harvard Thomas Patterson, autor do livro “Is The Republican Party Destroying Itself” (sem edição portuguesa, e cujo título pode ser traduzido para “Estará o Partido Republicano a Destruir-se a Si Próprio?”), diz que os republicanos estão perante cinco armadilhas onde se colocaram por culpa própria.
Em primeiro lugar, uma aproximação à direita que os afasta de eleitores moderados. Em segundo lugar, as alterações demográficas, com as minorias a crescerem e a base eleitoral branca do Partido Republicano a diminuir. Em terceiro lugar, o envolvimento com os media conservadores e a necessidade de agradar a esse meio através da sua governação. Em quarto lugar, os cortes fiscais direcionados sobretudo às empresas e com pouco impacto entre a classe trabalhadora. E em quinto e último lugar aquilo que Thomas Patterson diz ser “o desprezo das normas e instituições democráticas”.
Naquela que foi a primeira derrota do Partido Repubicano sob o trumpismo — as eleições intercalares de 2018 —, Thomas Patterson diz que não houve “nenhuma lição a ser retida” pelos republicanos. “A maneira como os media de direita interpretaram aquilo foi que aquilo aconteceu porque muitos tentaram aproximar-se do centro”, disse aquele académico ao The Guardian.
Por isso, acredita que não será uma possível derrota de Donald Trump em 2020 que vai apagar o trumpismo do Partido Republicano. “Mesmo que eles levem uma sova em 2020, creio que, provavelmente, serão necessárias duas outras sovas”, disse.
A certeza de que o trumpismo veio para ficar no Partido Republicano é também partilhada por quem conhece bem aquela máquina por dentro e apoia Donald Trump. Num artigo de opinião publicado no Wall Street Journal, o ex-governador republicano do Louisiana, Bobby Jindal, foi claro ao dizer que os temas que catapultaram Trump para a presidência já existiam antes dele e continuarão para lá da sua passagem na Casa Branca, termine ela em 2021 ou em 2025.
“O Presidente potenciou a onda populista que transformou a política republicana, mas não foi ele que a criou”, sublinhou. “Apesar daquilo que os críticos de Trump possam desejar, o seu apelo é mais profundo do que o de um culto de personalidade. Tem raízes em políticas desenhadas para beneficiar a sua base eleitoral da classe trabalhadora. Os líderes republicanos estarão a enganar-se a eles mesmos se alguma vez pensarem que esses temas vão desaparecer da política com ele.”
No campo Never Trumper, também há poucas esperanças de que o trumpismo se dissipe com Donald Trump.
Quem ainda acalenta algumas é Peggy Noonan, antiga speechwriter de Ronald Reagan e, por isso, uma reaganista. Também no Wall Street Journal, escreveu um artigo com um título sugestivo: “Queimar o Partido Republicano até ao chão?”. A sua sugestão, porém, era contrária essa ideia — e defendia que ainda era possível imaginar uma vida no Partido Republicano para lá do trumpismo.
“Quando a experiência de Trump acabar, o Partido Republicano terá de se reconstruir. Terá de começar com as dezenas de milhões de eleitores que votaram em Trump. Terá de decidir onde é que se situa e qual é a sua razão de ser. Não bastará repetir antigos mantras ou velhas formulações de 1970 ou 2000. Estamos em 2020. Estamos num país diferente”, disse, apontando que esse trabalho de reforma terá de passar por “alguns Never Trumpers”, que Peggy Noonan diz terem “criado as condições que criaram o Presidente Trump”.
“O que seria útil da parte deles neste momento seria, em vez de fantasias pirómanas, uma modéstia e até uma humildade construtiva”, atira.
Em entrevista ao Observador, Geoffrey Kabaservice, diretor de estudos políticos do think-tank de centro-direita Nisknanen Center e ele próprio um Never Trumper, disse que não acreditava numa reconstrução sem que nela deixassem de estar os alicerces do trumpismo.
“Não creio que qualquer pessoa que seja um Never Trumper tenha a ilusão de que as coisas vão voltar ao statu quo de 2016”, disse. “Há muita gente que diz isso, mas não me parece que alguém acredite verdadeiramente quando o diz. Donald Trump não vai a lado nenhum, até porque, se ele perder as eleições, irá provavelmente dizer que elas foram roubadas e os seus apoiantes vão acreditar nele, levando à deslegitimação das eleições, de Joe Biden e, no final de contas, da democracia americana.”
Desta forma, Geoffrey Kabaservice sugere que é inglório qualquer esforço por parte dos Never Trumpers dentro do Partido Republicano para virarem a página do trumpismo. Afinal, este é agora um partido que lhes dá cada vez menos espaço — e que, no seu lugar, tem colocado figuras que ora são próximas de Trump ou inspiradas nele.
As várias caras trumpistas do futuro republicano
Geoffrey Kabaservice tem esta certeza: “Quem quer que venha a ser o próximo líder do Partido Republicano, essa pessoa terá uma cara trumpista”.
Não quer dizer que não avancem figuras que, durante os anos do trumpismo, têm sido vozes críticas de Donald Trump. Pode ser esse o caso do ex-governador do Ohio e antigo adversário de Trump nas primárias republicanas John Kasich, que, nestas eleições, não só declarou apoio a Joe Biden como falou na convenção democrata. Também três governadores republicanos de estados, por norma, democratas — Larry Hogan, do Maryland; Phill Scott, do Vermont; e Charlie Bake, do Massachusetts — podiam dar esse passo. Mas a rota de sucesso de cada um naqueles estados (onde, fazendo um caminho pelo centro, conseguiram vencer votos junto do eleitorado moderado) não é hoje a preferida no Partido Republicano. A sugerir isso está a sondagem da Gallup, que coloca Trump com uma taxa de aprovação de 94% entre republicanos.
Quem são, então, as caras trumpistas que podem seguir-se?
Algumas são do mais próximo que é possível a Donald Trump.
Duas chegam mesmo a partilhar o código genético de Donald Trump: os seus filhos Donald Trump Jr. e Ivanka Trump — propostas que já receberam a aprovação de 29% e 16% de apoiantes de Donald Trump numa sondagem online. Outro possível nome — e favorito naquela mesma sondagem, com 40% de apoio junto do total dos inquiridos, é o do vice-Presidente, Mike Pence. Há também 13% a apoiar o nome de Mike Pompeo, o atual secretário de Estado.
Depois há aqueles que não foram criados por Donald Trump e que nem sempre estiveram do seu lado — mas que, assim que decidiram cair nas boas graças do Presidente dos EUA, não voltaram a afastar-se dele. É o caso de Nikki Haley, ex-governadora da Carolina do Sul e primeira escolha desta administração para embaixadora dos EUA nas Nações Unidas. Além deste nome, há o do último homem a fazer frente nas primárias de 2016, mas que hoje em dia é um aliado: o senador do Texas Ted Cruz.
De seguida, há outros nomes de senadores republicanos jovens que se notabilizaram durante o trumpismo e que misturam o populismo assumido da Casa Branca com o discurso de quem estudou em Harvard e Yale: Tom Cotton (Arkansas) e Josh Hawley (Missouri).
Enfim, há a carta fora do baralho mais óbvio, mas que, depois de uma estrela de reality-shows ter chegado a Presidente dos EUA, não é assim tão improvável: Tucker Carlson, comentador da Fox News e um dos maiores defensores de Donald Trump na praça pública.
“Ele é o herdeiro lógico de Donald Trump, além de que é mais inteligente e focado”, disse ao Observador Geoffrey Kabaservice. Por cima disso, Tucker Carlson tornou-se, ao mesmo tempo, num campeão de audiências e numa voz respeitada entre o Partido Republicano trumpista.
“Qualquer político republicano que queira saber o que pensam os eleitores republicanos só terá de fazer uma coisa: ver o Tucker Carlson todas as noites”, disse ao Politico um estratega republicano próximo da Casa Branca. Ou seja, próximo de Donald Trump — o homem que importa entre republicanos ontem, hoje e amanhã.