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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

"Se vier o vento, acabou." Aldeias de Aveiro travam luta numa corrida contra as chamas

Em Ribeira de Fráguas e Telhadela, população combate o fogo pela segunda noite consecutiva. Há chamas em todos acessos e o vento aumenta a cada hora. Bombeiros e moradores já estão "exaustos".

São nove da noite e o vento está cada vez mais forte no distrito de Aveiro. Na Rua do Vale, em Ribeira de Fráguas — ou no “inferno”, como lhe chamam agora os moradores —, o espaço é estreito para o vaivém constante dos carros dos bombeiros. A pouco e pouco, as rajadas ajudam a traçar um cenário digno de filme de terror: de um lado e do outro da estrada, duas línguas de fogo descem em direção às casas, queimando tudo por onde passam, como se tivessem encontro marcado a meio caminho. Entre o barulho das sirenes dos bombeiros e da GNR e os gritos de desespero dos moradores, que correm de um lado para o outro, o que mais impressiona é o barulho incessante da madeira a queimar.

A situação é semelhante em várias regiões do país, levando o Governo a decretar o estado de alerta por mais 48 horas, até quinta-feira, dia 19 de setembro. Nesta segunda-feira, cinco distritos acordaram com o maior risco de incêndio dos últimos 23 anos. Ao longo do dia, mais de uma centena de incêndios deflagrou, sobretudo nas regiões centro e norte do país. As zonas que causam maior preocupação às autoridades são Sever do Vouga, Albergaria-a-Velha e Oliveira de Azeméis. Três pessoas morreram, incluindo dois civis. Uma delas morreu carbonizada a apenas alguns quilómetros daqui, na zona florestal do Sobreiro. Pelo menos 20 pessoas, entre bombeiros e civis, ficaram feridas.

"A água da Câmara não chega. Nós temos sorte, não temos de nos preocupar com a quantidade, mas aqui nesta rua há muitos com a água contada", garante, antes de avisar que para muitos, "a água pode nem chegar para a noite desta segunda-feira".

Não temos maneira de sair daqui“, diz Vera Moreira. Tem 53 anos, vive com os pais nesta rua há mais de quatro décadas, e garante que nunca viu nada assim. Se a situação piorar — e basta que o vento se intensifique para que isso aconteça com mais facilidade —, a única solução é fugir de carro pela estrada que leva a Ribeira de Fráguas. Mas, com a evolução das chamas, até o plano de fuga se adivinha perigoso. Desde o agravar da situação, Vera e os pais começaram a encher baldes de água, que usam para regar o próprio quintal, mas também o dos vizinhos. “Aqui em frente vive a senhora Conceição. Está doente e não sai de casa. Tenho estado a deitar água nas ervas secas que tem nas traseiras.” Um dos maiores problemas, explica, é que nem todos têm o mesmo acesso à agua. “A água da Câmara não chega. Nós temos sorte, não temos de nos preocupar com a quantidade, mas aqui nesta rua há muitos com a água contada”, garante, antes de avisar que, para muitos, “a água pode nem chegar para a noite desta segunda-feira”.

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Combinação atípica de fatores (única em duas décadas) potenciou as chamas. Situações extremas vão ser mais frequentes, avisam especialistas

Enquanto falamos, o fogo chega a uma macieira a apenas alguns metros das habitações, incendiando todas as árvores por ali perto. “Agora já não há salvação“, lamenta a mãe de Vera Moreira, uma senhora de 80 anos. Os moradores ouviram as advertências das autoridades, mas garantem que não podiam fazer muito mais para se livrar dos terrores das chamas. “Nós ouvimos os avisos, mas ninguém nos explicou nada”, queixa-se Vera, antes de assumir que a culpa não é dos Bombeiros, que “fazem o que podem”. “Até podemos estar aqui a regar, mas, e se o incêndio apanha aqui estes pinheiros?”, continua. “Não há milagres…” As árvores que descreve estão no curto espaço que separa a casa de uma das línguas de fogo que descem a serra. Dado o tamanho e a inflamabilidade dos pinheiros, seria mesmo um milagre que as chamas aqui chegassem sem causar danos materiais.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Ao mesmo tempo que os bombeiros tentam apagar o incêndio aqui e em tantas outras localidades, o primeiro-ministro garantia, na sede da Autoridade Nacional da Proteção Civil, que o dia seguinte ia continuar “na iminência de uma tragédia”. Para quem vive na Rua do Vale e vai passar a noite a correr rua acima e rua abaixo de balde na mão, a tragédia não está para chegar — é já uma realidade.

“Só espero que não arda o ringue de patinagem!” População em choque, dos mais velhos aos mais novos

Sever do Vouga é uma das regiões que mais preocupam as autoridades. Olhando à volta na rua, são várias as colunas de fumo que se vão formando. Entre o preto, o branco e o cinzento, as cores vão mudando, à medida que chega uma nova vaga de carros dos bombeiros para apagar os novos focos de incêndio que aparecem, ou aqueles que reacendem (muitas vezes, mais do que uma vez). Nesta zona, o vento empurrou as chamas para o centro da cidade, e uma casa chegou mesmo a arder.

O supermercado Pingo Doce, por exemplo, esteve totalmente rodeado pelas chamas, mas acabou por resistir. No terreno ao lado, a oficina de automóveis Gineto não teve a mesma sorte. Mais de 30 carros arderam, além de um monte considerável de pneus. “Estava a trabalhar desde as 8, isto chegou aqui pelas 9”, descreve Carlos Simões, um dos responsáveis da oficina, explicando que os automóveis arderam durante cerca de 30 minutos. Por volta das 9h30, quatro carrinhas dos bombeiros vieram para apagar as chamas. “O fogo chegou às árvores e passou logo para os carros.” Felizmente, eram veículos “em fim de vida”, pelo que os danos financeiros não foram tão elevados. No parque ao lado, a apenas alguns metros deste ferro-velho, os automóveis acabaram por escapar.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Isto agora vai tudo para a sucata”, explica Abílio Simões, irmão de Carlos e dono da oficina. Mais de 10 horas depois de o fogo ter passado, teve de regressar ao local porque o monte de pneus deu sinais de reacendimento. “Está para aqui uma fumarada, mas acho que estou a conseguir resolver.” Durante vários minutos, Abílio rega calmamente o conjunto de mais de uma centena de pneus, que por esta altura já não passam de um monte irregular de borracha derretida. Ao lado, estão oito bidons de gasolina — estavam vazios quando as chamas chegaram.

Já por várias vezes o fogo chegou perto de Sever do Vouga, mas todos garantem nunca ter visto nada assim. Apesar dos avisos, os moradores não resistem a sair à rua para assistir ao combate às chamas. E por ali ficam, com o passar do dia, à medida que novas frentes se abrem e outras entram em fase de rescaldo. Uma delas é visível desde Pessegueiro do Vouga, onde a família do senhor Alfredo, de 70 anos, assiste desde o pátio do prédio aos últimos desenvolvimentos. Quem por ali passa, vai também entrando no terreno. “Se vier o vento… acabou“, comenta um. “Na minha vida, nunca vi igual”, responde Alfredo. Na varanda do andar de cima, os vizinhos brincam: “Marcámos lugar VIP!”

Quem o diz é Teresa, 42 anos, que tenta entreter a filha enquanto o desastre se desenrola à frente dos olhos de todos. Valentina tem 7 anos e brinca como pode: vai correndo e saltando de um lado para o outro, fala com os desconhecidos que aparecem e garante que não tem receio. “Só tenho medo que chegue ao ringue de patinagem!”, assume. A mãe assegura-lhe que, se isso acontecer, os bombeiros vão lá estar para ajudar.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Uns metros mais acima, Mafalda, uma senhora de 70 anos, lamenta o abandono das ruas na região, que representa também uma ameaça para as casas. “A Junta, nem as silvas manda cortar”, protesta, explicando que, desde manhã, quando saiu de casa, esteve a “guardar” com um regador as ervas daninhas que por ali se acumularam. “É um perigo! Funcionam como acendalhas”, explica Mafalda, que garante que foi por esta razão que o quintal da vizinha, que entretanto se ausentou, acabou também por arder. Ao lado, um dos vizinhos, José Pedro Cruz, lembra que há quatro anos, a zona de Sever do Vouga sofreu com uma vaga de incêndios parecida com esta. “Se olhar para o outro lado do rio, vê um linha nova de eucaliptos. Dali para baixo, há quatro anos, ardeu tudo! Isto está igual ou pior. Está pronto a arder outra vez.

“Quero ajudar os bombeiros, mas de noite o gato é pardo.” Telhadela rodeada pelo fogo

“Hoje ninguém dorme!” A frase é repetida por António Neves em Telhadela, Albergaria-a-Velha, enquanto ajuda um camião de bombeiros a atravessar uma rua estreita e cheia de moradores que aguardam pela chegada de apoio. As chamas estão a 50 metros de uma habitação e a outros tantos de um armazém de pneus. “Já ontem foi a noite toda a pé, hoje é novamente, está aqui tudo, hoje ninguém dorme, é impossível.” A máscara protege do fumo, mas não esconde o rosto cansado, nem as lágrimas nos olhos de António. Confessa que mantém contacto regular com o presidente da Junta de Freguesia e que há mais de 24 horas tem procurado ajudar a combater as chamas. “De tanto dar à chave, a carrinha não pega, está agora estacionada, mas eu não paro, engato-a com o trator e volto.” António gostaria de ver mais operacionais em Telhadela e assume que já tentou explicar os melhores caminhos para chegar ao fogo. “Mas não confiam, não conhecem, é assim. Quero ajudar, mas de noite o gato é pardo.” Apesar de estar aposentado há mais de 20 anos, António não para sentado, sobe e desce a rua enquanto o fogo se aproxima.

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

No armazém de pneus, o dono não está. O vento sopra com cada vez mais força e toneladas de borracha podem arder a qualquer momento. Uma carrinha de caixa aberta carregada com um depósito de água e um gerador tentam evitar uma desgraça. “Fazemos o que podemos, o dono é o meu irmão que está para Albergaria-a-velha, temos de tentar resolver alguma coisa. Os bombeiros vêm já para aqui para fazerem frente ao fogo.” Manuel dos Santos rega os pneus e a cobertura do armazém, num esforço que pode parecer inglório perante a parede de chamas que se aproxima a partir de sul.

Do outro lado de Telhadela, um quilómetro mais a norte, há outro foco de incêndio. As chamas estão a três carros de distância da casa de Deolinda: “Só faltava arder este lado, aqui à volta já ardeu tudo, faltava este bocadito. Mas aquilo não é meu. A minha parte está limpa, ali é como vê, tudo por limpar. Os donos do terreno nem apareceram. Sei quem são, mas nem apareceram aqui para ajudar.” Há 44 anos que Deolinda vive em Telhadela e garante que nunca passou por situação semelhante. Enquanto o fogo se aproxima, surge um camião de bombeiros que sobe rapidamente a rua. “Vão para o grupo desportivo, lá também está complicado.”

“Temos aqui água, sumos, leite, fruta. Os bombeiros vêm aqui buscar o que precisam e alguns vão pernoitar”

Futsal é a modalidade de bandeira em Telhadela, aposta do Grupo Desportivo e Recreativo da aldeia que dinamiza também marchas populares e organiza o Carnaval. Por estes dias, a bola não rola e a música não toca. À porta do pavilhão, por entre o fumo cerrado, vêm-se as luzes do meios de combate a incêndios e pessoas a correr, ora para pedir ajuda, ora para auxiliar quem trabalha. “Temos aqui água, sumos, leite, fruta. Os bombeiros vêm aqui buscar aquilo de que precisam e alguns vão pernoitar.” Filipe Pereira passou de dirigente do GDR de Telhadela a coordenador de distribuição de mantimentos e de dormidas no pavilhão. “A aldeia mobilizou-se e muita gente quis vir aqui deixar o que conseguia, até um supermercado vem cá deixar produtos.” Junto ao edifício, uma dezena de homens ajuda a combater o fogo assim que identificam um reacendimento. “Ainda agora estava o fogo aqui ao lado, e ali junto às casas. Agora está calmo, mas já esteve mesmo à nossa beira.” Já perto da meia-noite, Filipe Pereira ainda não sabe quantos bombeiros vai acolher nas próximas horas, mas está pronto a ajudar. Na gaveta da memória não encontra nada semelhante: “Nem a minha mãe, que já tem 76 anos. Nunca vivemos algo assim.”

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