Cauteloso, ambíguo e até “aborrecido”. Não são adjetivos que normalmente sejam atribuídos a líderes partidários que vencem confortavelmente eleições e que obtêm maiorias absolutas. Porém, esta é a caracterização que muitos fazem de Keir Starmer, o novo primeiro-ministro britânico que obteve esta sexta-feira uma maioria absoluta e confortável. O líder dos trabalhistas acabou com a hegemonia dos conservadores na política britânica, que já durava há 14 anos. Pelo meio, mudou o rosto do partido, num longo processo que começou há cinco anos.
Em dezembro de 2019, o estado de espírito dos trabalhistas era completamente diferente: tinham obtido o pior resultado de sempre na sua história, contrariamente aos conservadores comandados por Boris Johnson, que venciam as quartas eleições consecutivas — com uma nova maioria absoluta. Após a demissão de Jeremy Corbyn, Keir Starmer entrou em ação em 2020. Deixou de lado as posições polémicas do antecessor (que até chegou a suspender e a expulsar) relacionadas com o antissetimismo e foi dirigindo o partido para o centro. E a receita revelou-se acertada.
Para conquistar a vitória esmagadora nesta já madrugada de sexta-feira, Keir Starmer olhou para o passado do Partido Trabalhista, particularmente para os mandatos de Tony Blair, o ex-primeiro-ministro que venceu três vezes consecutivas (1997, 2001 e 2005) as eleições gerais e que também aproximou o Labour do centro político. “O que quero fazer é seguir as pisadas do líder do nosso partido que nos tirou da oposição e colocou-nos no poder”, chegou a admitir o advogado de 61 anos, nascido em Southwark, bem no centro de Londres. Contudo, os dois homens não são iguais e as circunstâncias em que chegaram ao poder são igualmente diferentes.
Apresentando o Labour como uma alternativa segura, moderada e estável, Keir Starmer quis afastar-se não só da liderança de Jeremy Corbyn, como também quis apresentar-se como uma antítese do Partido Conservador. Desde o referendo da saída da União Europeia, os tories têm sofrido crises consecutivas com cinco líderes e primeiros-ministros em apenas dez anos. David Cameron demitiu-se após o Brexit em 2016, Theresa May não conseguiu resolver os problemas relacionados com o referendo, Boris Johnson solucionou a questão mas viu-se envolvido em escândalos com as festas durante a pandemia, Liz Truss teve um mandato desastroso de 45 dias (o da “alface”) e Rishi Sunak não conseguiu virar a maré.
“Após 14 anos de caos e declínio, os conservadores deixaram o Reino Unido num pior estado”: esta era uma das mensagens centrais da campanha do Labour, vendendo a ideia de que era a escolha certa para trazer a “mudança” ao Reino Unido. E os eleitores britânicos votaram, de facto, massivamente na alternância política. “A mudança começa agora”, declarou, no discurso da vitória, Keir Starmer.
Como principal partido da oposição, os trabalhistas foram obviamente os mais beneficiados; mas não foram os únicos. Os Liberais Democratas obtiveram um excelente resultado e, à direita, o Reform UK — de Nigel Farage — também se afirmou como alternativa em várias partes do país.
Politicamente, os próximos cinco anos são uma incógnita. Não estando no poder desde 2010, o Partido Trabalhista vai tentar concretizar as promessas que fez durante a campanha e vai tentar cumprir o voto de confiança que recebeu dos eleitores, ainda que não seja claro de que forma o fará, uma vez que o Labour manteve um posicionamento ambíguo em vários assuntos. Por sua vez, os conservadores deverão procurar um novo líder, após a demissão de Rishi Sunak, que deverá ser oficializada nas próximas horas.
Pelo meio, os conservadores vão definir o seu posicionamento no espetro político. Por outras palavras: se os tories vão ter de eleger se se aproximam do centro ou se se colocam mais à direita, competindo diretamente — nesse espaço ideológico — com o Reform UK de Nigel Farage.
Centro, cautela e “pragmatismo”: Starmer e a estratégia para vencer as eleições
Manter as contas certas, incentivar o crescimento económico, reforçar o sistema nacional de saúde (NHS, sigla em inglês) e manter as fronteiras seguras. Estas são quatro das principais ideias que o Labour apresentou como bandeiras eleitorais para vencer as eleições — e representam as principais dificuldades que os britânicos sentiram nos últimos anos. A população sentiu os efeitos do aumento do custo de vida nos últimos anos, principalmente decorrentes dos efeitos da pandemia de Covid-19 — que também prejudicou o NHS — e da situação geopolítica instável.
Estes são os chamados “primeiros passos” da futura governação trabalhista. A ministra-sombra das Finanças, Rachel Reeves, disse que a “partir desta sexta-feira” vai começar a “trabalhar para reconstruir a economia”. Em declarações à televisão Channel 4, a muito provável responsável pela pasta das Finanças no governo de Keir Starmer elogiou o futuro primeiro-ministro: “Preparou-se para este trabalho durante estes quatro anos e meio. O que conseguiu foi fenomenal e, se ele fez isso com Labour, fará o mesmo ao país. Vai trazer estabilidade, crescimento e qualidade aos serviços públicos”.
O programa é simples, moderado e pouco arriscado para um partido que se assume de centro-esquerda. O vencedor do Nobel da Economia em 2008, Paul Krugman, descreveu a campanha dos trabalhistas no X (antigo Twitter) como “extremamente cautelosa”. “Devido às derrotas passadas entendo porquê”, escreveu nas redes sociais, esperando que, com “esta maioria de centro esquerda”, o Labour “governe como o partido dominante”.
O que fará com esta maioria ainda não é claro, mas a economia será um dos pontos mais escrutinados neste governo trabalhista. Outro será o das migrações, principalmente a chegada de pessoas pelo Canal da Mancha. Mais uma vez, neste tópico, a solução é moderada e ideologicamente pouco robusta. “O Labour vai agir para diminuir a migração, aumentar as condições salariais para os trabalhadores britânicos […] e implementar um plano prático para resolver o caos dos pequenos barcos.”
Em vez de apresentar um programa marcadamente ideológico como Jeremy Corbyn, o atual líder dos trabalhistas “acredita” mais no poder do “pragmatismo”. Segundo Josh Simons, diretor do think tank Labour Together em declarações ao Washington Post, Keir Starmer prefere aplicar políticas “ao resolver problemas e não seguindo grandes teorias”. “Ele não negocia com base em pressupostos ideológicos.”
Para o eleitorado centrista, e entre alguns que estão desiludidos com os conservadores, essa é uma vantagem. Para os mais à esquerda, é uma desilusão. Um aliado de Jeremy Corbyn considera que Keir Starmer “representa muito pouco” politicamente. “Ele reflete as ideias de pessoas que estão à sua volta”, afirmou o responsável ao Washington Post, estando a “aproximar-se” do establishment.
Não cativando nem grandes amores nem grandes ódios, esta vitória de Keir Starmer pode ser interpretada mais como um voto de protesto contra os conservadores do que propriamente um voto convicto nos trabalhistas. Como comentou Steven Fielding, professor emérito de história política da Universidade de Nottingham ao New York Times, o objetivo da campanha do antigo advogado era “parar de dar às pessoas razões para não votar no Labour“: “Teve bastante sucesso nisso”. Contudo, o especialista frisa: “Ele teve menos sucesso ao dar às pessoas razões para votar no Labour.”
A estratégia, ainda assim, funcionou. Surfando a onda da vontade de alternância política dos britânicos, Keir Starmer soube cativar e mobilizar distintos eleitores. Por exemplo, tudo indica que terá conseguido reerguer a Red Wall no norte de Inglaterra e terá tido sucesso em roubar alguns bastiões conservadores noutras partes do país. A mensagem? A que representa uma mudança segura.
Como parte indissociável desta estratégia, o líder dos trabalhistas distanciou-se de Jeremy Corbyn. Uma das principais mensagens transmitidas ao eleitorado é que o Labour “tinha mudado”. Uma dessas provas foi a promessa de “arrancar o antissemitismo pela raiz” entre os trabalhistas, uma polémica que manchou o partido — e radicalizou a imagem — com o antigo líder.
“Somos um Labour diferente e vamos governar como um Labour diferente”, prometeu Keir Starmer no discurso de vitória na madrugada desta sexta-feira. “Começamos um novo capítulo e vamos começar a reconstruir o nosso país. A mudança começa agora”, afirmou o líder trabalhista.
Keir Starmer: o político “reservado” com fama de “aborrecido” (fama de que não gosta)
Filho de um operário e de uma enfermeira, Keir Starmer nasceu numa zona rica de Londres, se bem que não fosse parte de uma classe social privilegiada. Nasceu, aliás, no numa família tipicamente de esquerda — e o seu primeiro nome é bem indicativo disso, segundo a BBC, uma vez que foi uma homenagem dos pais ao primeiro membro da Câmara dos Comuns trabalhista, chamado Keir Hardie.
Tendo em conta o contexto em que cresceu, a política entrou cedo na vida de Keir Starmer, um excelente aluno que também tocava vários instrumentos — desde violino a piano. Aos 16 anos, juntou-se à Juventude Socialista de East Surrey, pertencente ao Partido Trabalhista. Dois anos mais tarde, inscreveu-se na Universidade de Leeds para estudar Direito. Durante a sua experiência universitária, foi um dos editores da revista Socialist Alternatives, de tendência trotskista.
Esta experiência mais à esquerda parece contrariar as posições centristas recentemente assumidas por Keir Starmer. Numa entrevista no final de maio à BBC, o líder dos trabalhistas assumiu-se como um “socialista”: “Descrever-me-ia como um socialista, como um progressista”. Depois, ressalvou que se vê como alguém que “coloca o país primeiro e o partido em segundo”, apostando numa imagem de tecnocrata.
Após sair da universidade, Keir Starmer começou a exercer advocacia, defendendo casos relacionados com direitos humanos. Como escreve o Politico, o novo primeiro-ministro do Reino Unido preferia defender “inquilinos do que senhorios”, guiando os casos que defendia pela justiça social. Ficou publicamente conhecido quando defendeu dois ativistas ambientais — Helen Steel e David Morris — que publicaram um cartaz contra a cadeia de fast food McDonalds, que decidiu processá-los.
Aceitou depois um lugar enquanto conselheiro jurídico da guarda fronteiriça da Irlanda do Norte e também para o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Em 2008, foi eleito procurador-geral para a Inglaterra e para o País de Gales, cargo em que ocupou durante seis anos, até concorrer para a Câmara dos Comuns pelo Partido Trabalhista. Devido à sua experiência profissional, desempenhou as funções de ministro sombra para as Migrações e depois para a gestão do Brexit.
Dentro do Partido Trabalhista, era visto como um “workaholic”, como lembrou esta sexta-feira o autarca de Londres, Sadiq Khan. “É alguém que exige humildade à sua equipa. Acredita nos serviços públicos”, acrescentou. E realçou ainda a personalidade “reservada” do novo primeiro-ministro: “Nunca usou a mulher e os dois filhos para fins políticos”. “Adora futebol e ir ao pub com os amigos”, contou ainda.
O seu afinco ao trabalho e os resultados enquanto ministro-sombra levaram a que, depois da saída de Jeremy Corbyn, se candidatasse à liderança do Partido Trabalhista. Foi eleito em 2020 e, desde aí, começou um esforço concertado para mudar o funcionamento partidário por dentro. O objetivo era vencer as eleições de 2024 mas, na altura em que foi eleito, poucos acreditavam que isso fosse acontecer.
Um dos motivos? O facto de estar colado à pele de Keir Starmer estava a fama de ser “reservado” — de não gostar de falar sobre si — e também de “aborrecido” e “sem carisma”. “Um control freak anti-carismático”, descreveu um crítico. Mas isso tem uma explicação: o líder trabalhista não gosta “da parte mais performativa da política”, explicou ao New York Times Tom Baldwin, um antigo jornalista que cobriu campanhas do Labour e que escreveu uma biografia sobre o político.
Enquanto alguns políticos gostam de proferir discursos entusiasmantes e são excelentes na retórica, Keir Starmer não é bem assim. Prefere resolver problemas, encontrar consensos e explicá-los ao eleitorado. “Ninguém quer ver isso. É aborrecido”, reconheceu o biógrafo ao New York Times. Contudo, isso não significa que o trabalhista não consiga politicamente que as suas ideias vinguem.
Ao The Guardian, um antigo eleitor conservador confirmou que Keir Starmer é “aborrecido” — um adjetivo que o novo primeiro-ministro não gosta que lhe esteja atribuído. No entanto, por mais paradoxal que possa pareça, essa reputação é precisamente o que Reino Unido “precisa”, assinala a mesma fonte, aludindo às sucessivas crises políticas provocadas pelo Partido Conservador.
Apesar disso, os críticos também apontam que o novo primeiro-ministro britânico é “impiedoso“, como ficou visível com a “purga” que fez da ala mais à esquerda dos trabalhistas liderada por Jeremy Corbyn. Questionado pela Sky News sobre esta sua fama, Keir Starmer, que sempre se assumiu como “competitivo”, clarificou o assunto. “Sou impiedoso para o bem do meu país. É a única maneira de trazer mudança a este país é sermos impiedosos e ganharmos as eleições gerais.”
A tomada do Labour da Escócia, o desaire conservador e a subida dos liberais
O Partido Trabalhista voltou a conquistar vários dos bastiões perdidos nas eleições de 2019 para o conservador Boris Johnson. E conseguiu roubar vários lugares aos tories um pouco por todo o país. Ainda assim, num apontamento negativo para um noite quase perfeita para os trabalhistas, está a eleição do agora independente Jeremy Corbyn para a Câmara dos Comuns no círculo eleitoral Islington North. O candidato entrou em rota de colisão com Keir Starmer. O líder do Labour não deixou que o seu antecessor competisse, por conta das declarações antissemitas. Mas Corbyn desafiou Starmer e competiu a solo.
Noutras geografias, os trabalhistas tiveram um excelente resultado na Escócia. Em contrapartida, o Partido Nacional Escocês, o terceiro mais votado em 2019, sofreu uma verdadeira derrocada — não devendo eleger mais de dez membros para a Câmara dos Comuns. A força partidária independentista sofreu recentemente danos na sua reputação, uma vez que o marido da antiga líder, Nicola Sturgeon, foi acusado de desvio de fundos.
De resto, estas eleições são um cataclismo para o Partido Conservador, tal como apontavam as sondagens — podendo ser o pior resultado de sempre. Perdeu inúmeros membros do governo de Rishi Sunak, tal como o ministro da Defesa, Grant Shapps, ou a líder demissionária da Câmara dos Comuns, Penny Mordaunt. A ex-ministra da Administração Interna, Suella Braveman, foi eleita, mas deixou várias críticas ao primeiro-ministro demissionário: “Peço desculpa. Desculpa, porque o meu partido não vos ouviu. O partido desapontou-vos. Vocês, o grande povo britânico, votaram em nós durante 14 anos. E nós não cumprimos as nossas promessas”.
As críticas repetem-se entre vários simpatizantes, membros e ex-integrantes dos conservadores. “Um momento catastrófico”, “massacre” e um “momento muito difícil” são algumas das críticas. “Falhou em honrar a confiança que as pessoas colocaram nele”, denunciou Penny Mordaunt no discurso da derrota. “Pode falar-se muito sobre segurança e liberdade, mas não se pode ter as duas se se tem medo do custo de vida ou ao acesso do serviço de saúde.”
O primeiro-ministro britânico reconheceu a derrota num curto discurso em Richmond & Northallerton, o círculo eleitoral pelo qual foi eleito. “Há muito para aprender e refletir” com estas eleições gerais e, face à derrota dos conservadores, Rishi Sunak assumiu a “responsabilidade” e pediu desculpa aos membros do seu partido que perderam o mandato.
“Agora vou para Londres, onde falarei mais sobre o resultado desta noite, antes de deixar o cargo de primeiro-ministro, ao qual dei tudo de mim”, indicou Rishi Sunak.
Por sua vez, os liberais democratas conseguem subir de forma considerável o número de membros da Câmara dos Comuns — passam de onze para cerca de 50. Inicialmente até saudavam o “melhor resultado dos últimos 100 anos”, mas, ao longo da noite, o resultado acabou por não ser tão folgado. Mesmo assim, o partido celebra o bom resultado, voltando a ser o terceiro mais votado. Obteve especialmente um bom resultado no Sul de Inglaterra e roubou votos e deputados aos tories.
Já o Reform UK, também elegeu pelo menos quatro deputados, incluindo Nigel Farage. O resultado não foi particularmente expressivo em termos de representação parlamentar, mas em várias localidades os reformistas ficaram em segundo lugar, à frente do Partido Conservador. No seu discurso da vitória, o líder partidário frisou que os trabalhistas apenas obtiveram um resultado por causa do “cansaço da governação conservadora” — e colocou na mira as eleições de 2029.