Quase 15 meses depois, Bruno de Carvalho, aquele Bruno de Carvalho que ficou conhecido de forma mediática depois de chegar à liderança do Sporting, não mudou assim tanto. Quando chegou ao Campus da Justiça, no dia em que foi ouvido no âmbito da fase de instrução do caso do ataque à Academia do Sporting, em Alcochete, não prestou declarações mas, no interior da sala, manteve o seu estilo corrosivo em algumas declarações prestadas perante o juiz Carlos Delca, impulsivo na forma como reagia a algumas afirmações da procuradora Cândida Vilar e com algum humor à mistura, quando perguntou meio em surdina durante a audição da testemunha Carlos Vieira, antigo vice do clube e administrador da SAD, se as pessoas que estavam a colocar em causa a ideia de dispensar Jorge Jesus ainda antes da final da Taça de Portugal com o Desp. Aves sabiam que os leões tinham perdido.
O que mudou, isso sim, foi a sua posição. No Sporting, em termos profissionais, na própria sociedade. A onda de rescisões que apanhou nove jogadores do plantel principal foi apenas mais um dos fatores que contribuiu para uma queda maior do que a ascensão do antigo presidente verde e branco em Alvalade. O mesmo que, em março de 2017, foi sufragado para um novo mandato com 90% contra Pedro Madeira Rodrigues. O mesmo que, em fevereiro de 2018, foi ratificado em Assembleia Geral com 90%. O mesmo que, a 23 de junho de 2018, pouco mais de um mês depois do ataque à Academia, foi destituído da liderança por 72%. E que entrou numa espiral que conheceu esta tarde mais um capítulo, ao ver confirmada a ida a julgamento acusado de ser o autor moral da ida a Alcochete, onde foi suspenso de sócio, expulso de sócio e apontado a mais um caso (Cashball).
As rescisões: uma, duas, stop. Mas o pior ainda estava para chegar
O fantasma das rescisões unilaterais de contrato depois dos acontecimentos de Alcochete pairou durante vários dias na órbita do universo Sporting e falou-se ao longo de dias da possibilidade de haver já uma espécie de “minuta base” para carregar no botão de ativação da “bomba”. Uma semana e meia depois da final da Taça de Portugal, que os leões perderam com o Desp. Aves por 2-1, houve mesmo a primeira saída. E mais outra. E seriam bem mais mas num timing diferente. O edifício do futebol verde e branco começava a desmoronar-se e também o espaço de Bruno de Carvalho para dar a volta começou a ficar bem mais apertado.
Rui Patrício foi o primeiro a enviar a carta de rescisão para Alvalade. Ao longo de 34 páginas, o número 1 e capitão começou com um enquadramento legal para justificar a decisão, antes de pormenorizar uma série de acontecimentos que levaram à tomada da medida, desde SMS e mensagens de Whatsapp enviadas por Bruno de Carvalho para o plantel ou só para o grupo de capitães, o post após a derrota com o Atl. Madrid, a ameaça de suspensão depois da resposta dos jogadores, as conferências que se seguiram e o ponto alto de tudo, o ataque na Academia. Pouco tempo depois no mesmo dia, Daniel Podence seguiu os passos do guarda-redes e enviou uma missiva com apenas dois parágrafos diferentes para selar também a rescisão. Ainda se levantou a hipótese de haver mais saídas nesse 1 de junho, sobretudo a de William Carvalho, mas tudo ficou apenas por dois jogadores nessa fase.
A rescisão de Rui Patrício acabou por ser a consequência nas dificuldades que estava a encontrar o Sporting para ser vendido, numa fase inicial para o Nápoles e depois para o Wolverhampton – neste caso, por causa de uma dívida dos leões ao empresário Jorge Mendes que Bruno de Carvalho não reconhecia como efetiva (apesar de haver um email de outro elemento da SAD verde e branca a escalonar o pagamento dessa verba, assumindo que ela existia). Podence limitou-se a aproveitar a “onda”. Outros foram esperando para perceber as movimentações políticas que iam acontecendo no clube e que se tornavam cada vez mais confusas. A situação parecia uma bomba relógio mas o tic tac tic tac acabou no dia 11 quando os outros três internacionais portugueses no Mundial, William Carvalho, Bruno Fernandes e Gelson Martins, apresentaram também cartas de rescisão (e com Luís Filipe Vieira a dizer numa AG que estava disposto a vingar o Verão Quente de 1993 quando Paulo Sousa e Pacheco foram para Alvalade). Com o prazo de um mês para revogar o vínculo a acabar, Bas Dost, Battaglia, Rúben Ribeiro e Rafael Leão saíram. Em menos de uma semana, depois de Patrício e Podence, os leões ficavam sem mais sete jogadores, quase todos titulares.
As derrotas nos tribunais civis, a derrota no tribunal de Alvalade – e adeus presidência
As duas primeiras semanas de junho tinham sido muito complicadas para o futuro de Bruno de Carvalho, que, apesar de defender que iria ganhar no Tribunal Arbitral do Desporto todos os processos de rescisão, sabia do impacto das saídas entre os associados do clube que, já tinham ficado de pé atrás na Assembleia Geral de fevereiro em que o então presidente tinha “reforçado” o posto. Entretanto, os tribunais civis continuaram a não dar provimento aos pedidos apresentados por Bruno de Carvalho, fazendo com que a Comissão Transitória da Mesa da Assembleia Geral e a Comissão de Fiscalização por si nomeadas não fossem consideradas válidas e, pior dentro deste cenário, que a Assembleia Geral de destituição avançasse a 23 de junho, na Altice Arena.
Depois de várias entrevistas dos grandes protagonistas desta “guerra”, Bruno de Carvalho e Jaime Marta Soares, líder da Mesa da Assembleia Geral (chegando ao ponto de haver telefonemas em direto a responder ao que o “adversário” dissera), o dia chegou e o ainda presidente não aguentou o impulso de se deslocar ao local quando faltava apenas uma hora para fechar as votações depois de várias horas onde foi publicando vídeos e comentários sobre o que se passava no interior da Altice Arena. Também aqui, havia uma perceção diferente da realidade: quem era apoiante do então líder, ficava no recinto e discursava; quem votava contra, ia à mesa de votos, deixava o boletim e ia embora. Ao todo, os 14.735 associados mais do que duplicaram o registo máximo dos leões num ato que não fosse eleitoral (mais de 7.000, no final da década de 80 com Jorge Gonçalves). E Bruno de Carvalho caiu.
A quente, o líder destituído por cerca de 72% dos votos foi bastante crítico, numa conversa com vários associados à saída da Altice Arena e, já de madrugada, escreveu um post onde anunciava uma espécie de “divórcio” total com o clube. “Não, não vou regressar para as bancadas. Não, não vou mais vibrar com as vitórias. Foram 46 anos de um amor intenso mas que vim a descobrir que não era o que pensava, que não me identifico minimamente com os seus falsos princípios e falsos valores e que me andava a trair. Afinal o sportingado era eu, um sportinguista enganado. Não vou impugnar a AG apesar de todas as ilegalidades mas não me quero mais aproximar de uma elite bafienta e mal cheirosa que sempre dominou o Sporting”, escreveu, antes de anunciar ainda que iria entregar a “carta de suspensão vitalícia de sócio na segunda-feira”. Pouco depois, voltou atrás na intenção.
Fora das eleições, suspenso de sócio, expulso do clube – tudo em dez meses
A palavra coincidência tornou-se a certa altura uma das mais utilizadas para definir o quotidiano “político” do Sporting a partir de certa altura. Uns diziam que as coincidências não existem, outros falavam em coincidências aproveitadas de forma propositada para a “vitimização”. Numa ou noutra perspetiva, 2 de agosto trouxe um desses casos: pouco mais de uma hora antes do anúncio oficial da candidatura de Bruno de Carvalho às eleições de 8 de setembro, foi tornada pública a suspensão do ex-presidente por um ano. “Foi o principal artífice e responsável da situação grave e antiestatutária criada”, justificou a Comissão de Fiscalização liderada por Henrique Monteiro, entre outros pontos que motivaram a segunda sanção mais pesada. À partida, o antigo número 1 não poderia concorrer mas continuou a fazer tudo nesse sentido, vendo depois essa possibilidade refutada de vez quando Jaime Marta Soares confirmou com os serviços do clube que, por estar suspenso, não cumpria os requisitos. Assim, no ato eleitoral com mais candidatos de sempre, Frederico Varandas venceu João Benedito e o Sporting ganhou um novo líder.
Como um comunicado e três emails com anexos podem afastar Bruno de Carvalho do Sporting até 2023
A meio de dezembro, já com uma maior estabilidade em termos internos entre as “guerras” que ainda hoje não acabaram (e que em alguns casos parecem não ter fim à vista), Bruno de Carvalho teve uma Assembleia Geral onde o ponto único era votar o recurso apresentado por si e pelos restantes elementos destituídos da Direção, além de Elsa Tiago Judas e Trindade Barros, que tinham sido punidos com sanção máxima de expulsão. Não marcando presença no Pavilhão João Rocha, viu um discurso seu ser lido pela irmã, Alexandra, e assumiu erros entre a defesa intransigente do Sporting e uma campanha que foi feita com sucesso contra si. Nada funcionou e a Assembleia Geral confirmou essa mesma suspensão de um ano com um total de 68,5% o que, em termos práticos e segundo os estatutos, impediria o antigo líder de concorrer a eleições antes de 2024.
No início de março, o Conselho Fiscal e Disciplinar, comandado por Joaquim Baltazar Pinto, terminou a avaliação de um segundo processo disciplinar que tinha sido levantado pela Comissão de Fiscalização, punindo Bruno de Carvalho e o ex-vogal Alexandre Godinho com a ordem de expulsão. “Os factos praticados, em acumulação, com premeditação, com relevantíssimos danos de imagem, moral e patrimonial, com dolo direto muito intenso, com liberdade, consciência e conhecimento da ilicitude pelos sócios visados assumiram uma gravidade, uma ilicitude e uma censurabilidade tão grande e elevada que apenas se coadunam com a aplicação concreta da sanção mais grave prevista nos diplomas legais”, explicou o órgão. Mais uma vez, o recurso, avaliado em Assembleia Geral na primeira semana de julho, foi chumbado por 69,3%. Chegava ao fim a ligação ao Sporting.
Varandas era contra mas houve “pena de morte” – e Bruno de Carvalho caiu como tinha feito cair
A rábula do DCIAP-DIAP, a detenção que o “mudou” e a auditoria
A partir de setembro, o diz que disse sobre uma possível detenção de Bruno de Carvalho foi aumentando e o próprio respondia a quem lhe perguntava que não sabia de nada sobre uma possível constituição como arguido ou uma ligação ao ataque à Academia. Por isso, e em outubro, o próprio Bruno de Carvalho deslocou-se ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) para prestar qualquer tipo de esclarecimento que fosse desejado, seguindo depois para o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP), onde o caso se encontrava. Acabou por voltar a casa sem falar com ninguém, apenas dois dias depois de ter visto recusado o pedido para se constituir assistente do processo pelo juiz Carlos Delca. Mas algo se estava a passar.
A meio de novembro, num domingo ao final da tarde em que havia jogo em Alvalade do Sporting, Bruno de Carvalho foi detido em casa e passou a noite no posto da GNR de Alcochete. Com alguns problemas alheios ao caso à mistura, acabou por ser ouvido apenas na quarta-feira à tarde, saindo depois em liberdade no dia seguinte com apresentações diárias pela insuficiência de prova em relação aos crimes de que estava acusado como autor moral, casos de ameaça agravada, ofensa à integridade física qualificada, sequestro, dano com violência, detenção de arma proibida agravado e terrorismo.
“Quero agradecer à minha família neste que foi o pior momento da minha vida, a nível pessoal. É um Bruno muito diferente que sai daqui. Obrigado a todos os guardas do posto de Alcochete e da GNR, que foram extremamente profissionais comigo. Vou avaliar enquanto pessoa, enquanto ser humano, aquilo que me aconteceu. Vou assentar um bocadinho, dedicar-me à minha família. Sou uma pessoa diferente, porque só uma pessoa que passa por aquilo que eu passei, e não estou a falar mal, só uma pessoa que foi privada de um banho, de uma ida à casa de banho, de poder abrir a porta, é que sabe o que uma experiência assim muda a perceção de uma pessoa. Não sei se serei melhor ou pior, mas serei seguramente diferente”, comentou à chegada a casa.
No Sporting, em termos internos, os resultados da auditoria às contas (que acabaram por surgir em termos públicos, o que motivou mesmo uma queixa para se perceber o local da fuga) levantaram também dúvidas em relação a algumas operações como o vínculo com a Sociedade de Advogados MGRA (a quem os leões pagaram 1,7 milhões de euros em três anos), o contrato com a empresa Xau Lda., o acordo com o Batuque FC de Cabo Verde ou o tipo de regalias às claques que aumentou e muito a dívida dos grupos organizados de adeptos verde e brancos com o clube. Estes pontos e qualquer outra irregularidade ou dúvida que depois possa aparecer serão avaliados pelo Conselho Fiscal e Disciplinar e, de seguida, poderão chegar ao Ministério Público.
Ir a julgamento no caso Alcochete e aparecer ligado ao processo Cashball
De forma indireta, o processo Cashball, que alega que o Sporting teria tentado corromper árbitros em jogos do Campeonato de andebol (seus e de alguns adversários diretos), acabou por ser muitas vezes referido durante o caso de Alcochete. Por um lado, porque a notícia fez capa do Correio da Manhã desse mesmo dia de 15 de maio; por outro, porque os principais dirigentes e responsáveis do clube acabaram por passar grande parte do dia em Alvalade a analisar a situação no terceiro piso do estádio onde se concentra a administração da SAD, casos de Bruno de Carvalho, Carlos Vieira ou André Geraldes; por fim, porque terá sido essa a razão que fez com que não houvesse ninguém além das pessoas ligadas ao futebol na altura do ataque.
Recentemente, de acordo com a TVI, Paulo Silva, empresário que denunciou o esquema que levou à constituição de quatro arguidos no processo Cashball (além do próprio, André Geraldes, team manager do futebol e diretor da SAD; Gonçalo Rodrigues, antigo membro do Gabinete de Apoio aos Atletas do Sporting; e João Gonçalves, empresário e alegado intermediário), terá referido em novas declarações à Polícia Judiciária que era Bruno de Carvalho que comandava as ordens de alegado suborno de árbitros de andebol e jogadores de futebol, estando por isso na mira das autoridades neste outro processo. Até agora, nada mais se soube em relação ao antigo presidente verde e branco e a notícia da semana acabou por ser o arquivamento do processo pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Andebol por “ausência de indícios suficientes”.
Já em relação ao caso de Alcochete, e apesar de ter pedido a abertura de fase de instrução, Bruno de Carvalho acabou mesmo por ver o juiz Carlos Delca confirmar a ida a julgamento por autoria moral de 40 crimes de ameaça agravada, 19 crimes de ofensa à integridade física qualificada, 38 crimes de sequestro, um crime de detenção de arma proibida e crimes que são classificados como terrorismo. Quase 15 meses depois, o ataque à Academia continua a marcar a vida de Bruno de Carvalho.
Bruno de Carvalho vai a julgamento acusado de ter ordenado o ataque à Academia do Sporting