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Sem incidentes e transformadas em batalha política. As duas manifestações em Lisboa uma semana depois da morte de Odair Moniz

Separadas por poucos quilómetros, os dois eventos ficaram marcados por críticas à atuação da polícia, por um lado, e críticas à "bandidagem", por outro.

Os gritos contra a violência policial e as palavras de apoio aos polícias estiveram a menos de três quilómetros de distância. As duas manifestações — uma marcada pelo Chega e outra pelo Movimento Vida Justa — aconteceram na sequência da morte de Odair Moniz e dos distúrbios que marcaram toda a semana, mas não foi este sábado que as questões políticas ficaram de lado, com forte presença dos partidos nos protestos.

Cova da Moura. A história da morte de Odair contada por quem estava à janela

André Ventura deu o mote e logo no início da manifestação marcada pelo partido que lidera e ao lado dos pouco mais de 200 manifestantes, na Praça do Município, disse que “é preciso o país não passar a mensagem de que somos todos uns esquerdalhos contra a polícia”. Do outro lado, ainda na rotunda do Marquês de Pombal, Fabian Figueiredo, líder da bancada parlamentar do Bloco de Esquerda, acusou a Direção Nacional da PSP de “mentir” no comunicado divulgado na última segunda-feira, a propósito da morte na Cova da Moura. “A Direção Nacional da PSP emitiu um comunicado que o trabalho das senhoras e dos senhores jornalistas mostrou que tem várias mentiras. Odair Moniz não tinha uma faca. Odair Moniz pisou com o seu carro um traço contínuo. Porque mentiu a Direção Nacional da PSP? A Direção Nacional da PSP, quando fala, tem de dizer a verdade”, acusou Fabian Figueiredo.

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As manifestações — que, temia-se, pudessem resultar em novos distúrbios, depois de uma semana de tumultos em múltiplos pontos da Grande Lisboa — decorreram sem sobressaltos.

Se, por um lado, o Chega gritou em defesa da polícia e pela detenção de “bandidos”, os manifestantes da Vida Justa pediram justiça por Odair Moniz e criticaram a violência policial que entendem existir nos bairros. Com início marcado para a mesma hora, as diferenças foram muitas, começando logo no número de manifestantes. Na Praça do Município, o Chega não conseguiu juntar 300 pessoas — entre elas estavam vários deputados do partido, como Rita Matias, Pedro Pinto, Cristina Rodrigues e Pedro Frazão. E este foi um dos motivos que levou a comentários por parte do Bloco de Esquerda, desta vez por Joana Mortágua, no X: “Desconfio que houve deputados e assessores do Chega que se baldaram, malandros”.

Em contraste, desceram a Avenida da Liberdade cerca de três mil pessoas, com destaque para a presença dos partidos de esquerda — além do Bloco de Esquerda, estiveram o PCP, o Livre e ainda figuras como a antiga eurodeputada socialista e candidata presidencial Ana Gomes.

Num e noutro caso, as manifestações — que, temia-se, pudessem resultar em novos distúrbios, depois de uma semana de tumultos em múltiplos pontos da Grande Lisboa — decorreram sem sobressaltos. A PSP deixou, aliás, uma nota pública de agradecimento aos “cidadãos que integraram estas manifestações, pelo seu elevado comportamento cívico e respeitador das orientações dos polícias”.

Uma manifestação por Odair, contra a violência policial e para que as vítimas não caiam no esquecimento

Francisca conheceu Odair Moniz no bairro do Zambujal há mais de duas décadas. Já Fernando viu o seu rosto pela primeira vez esta semana, ao abrir noticiários das televisões depois de ter sido morto a tiro por um agente da polícia. Os seus caminhos cruzaram-se esta tarde no Marquês de Pombal, em Lisboa, onde largas centenas de pessoas se juntaram numa manifestação contra a morte do cabo-verdiano de 43 anos.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Não é preciso grande ensaio. Quando se dá a ordem para iniciar a descida ao longo da Avenida da Liberdade, em passo lento e com vozes fortes, o apelo é comum: “Justiça para Odair Moniz”, como se podia ler a tinta vermelha na faixa branca que abria o cortejo e onde se via um desenho do rosto de Odair. Ainda assim, ao longo do percurso seria outra frase a ganhar força, gritada em crioulo por uma multidão ensurdecedora: “Nu sta djunto, nu sta forti” (“Estamos juntos, estamos fortes”).

A manifestação, que estava marcada para as 15h e começou com algum atraso, não era apenas uma homenagem ao cabo-verdiano que morreu esta segunda-feira. Era também um “grito de alerta” à sociedade, sublinhou antes do arranque Luís Batista, membro do Movimento Vida Justa, que organizou a iniciativa. “Ao longo dos últimos dias temos visto quem tente fazer parecer que esta é uma situação isolada. Não é!”, começa por dizer ao Observador.

"Eu entrei como uma vítima no tribunal e sai como uma criminosa. Se fosse branca não teria sido assim", sublinhou Cláudia Simões. Outros manifestantes também subiriam ao palco improvisado para pedir união e sugerir "uma semana de greve da população africana".

O membro do Vida Justa critica a “política diferenciadora”, praticada há anos, que é marcada por designações como as de “zonas urbanas sensíveis”. “O Estado e o Governo estão a permitir que, do ponto de vista jurídico, exista legitimidade numa intervenção que é diferenciadora. Passamos a catalogar territórios quando à origem étnica, à origem social [de quem ali vive], e isso é profundamente inconstitucional. E a polícia passa a ter a possibilidade de intervir nesses bairros de uma forma diferente”, denuncia.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O sentimento é partilhado por Francisca Sousa, que o Observador encontra no coração da manifestação. Veste um fato de treino cor de rosa, distinguindo-se por entre a multidão que veste de luto, e fala na morte de Odair Moniz como mais um caso de violência policial. “Há muitos outros, casos que ficaram impunes, que acabaram arquivados, em que os policiais foram transferidos para outras esquadras ou em que foi usada a desculpa de problemas psicológicos”, afirma.

Garantir que o caso de Odair não terá esse desfecho foi o que a levou à manifestação deste sábado, onde se multiplicam cartazes com frases como: “Violência não é acidente”, “Parem de nos matar” ou “Black lives matter” [em português, “As vidas negras importam”]. “Estamos aqui para pedir justiça, paz, sinceridade e respeito pelo povo cabo-verdiano”, reforça Fernando Batalha, um dos que se foi mantendo à frente da manifestação durante todo o caminho.

Nascido em São Tomé e criado em Cabo-Verde — país cuja bandeira carrega na mão —, vive em Portugal há vários anos. Enquanto desce a avenida, traz no pensamento um desejo de justiça, mas também fortes críticas ao deputado e líder do Chega, que marcou uma espécie de contra-manifestação a terminar na Assembleia da República. “Queremos pedir ao André Ventura para sair do Parlamento português”, diz, acusando-o de estar “a matar a democracia de Portugal.”

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Fernando é dos primeiros a chegar ao destino final, a praça dos Restauradores, onde foi erguido um memorial improvisado em homenagem a Odair Moniz. Ajoelha-se em frente à fotografia do cabo-verdiano e chora a perda do homem que nunca chegou a conhecer, numa altura em que as centenas de manifestantes se vão congregando à frente da estátua.

Adriana já lá esta, ainda de pé na carrinha de caixa aberta onde, durante toda a manifestação, foi gritando ao microfone as palavras de ordem. De voz rouca, diz ao Observador que foram as “mentiras” e contradições sobre o que se passou no dia da morte de Odair Moniz que a levaram ali. O Estado, diz, é o maior culpado neste caso, que viu “duas vidas desgraçadas, duas famílias desgraçadas”. “Acredito que o Estado não devia ter posto uma pessoa de 20 anos num bairro problemático com um ano de experiência, juntamente com outra também com pouca experiência”, afirma.

Agentes da PSP terão admitido que não foram ameaçados diretamente com uma arma branca em punho por Odair Moniz

A manifestação chega ao fim pelas 18h, com vários discursos a partir da carrinha convertida numa espécie de palanque. Falou Cláudia Simões, que ficou conhecida pelo caso de agressões passado num autocarro e foi condenada por agredir um agente da polícia, também este condenado, mas por ter agredido duas testemunhas dos factos. “Eu entrei como uma vítima no tribunal e sai como uma criminosa. Se fosse branca não teria sido assim”, sublinhou. Outros manifestantes também subiriam ao palco improvisado para pedir união e sugerir “uma semana de greve da população africana”. A manifestação não terminaria sem um minuto de silêncio por Odair e um apelo: “Chega de pôr lume em Portugal”, “Viemos bem, voltem bem.”

Por entre as largas centenas de pessoas que participaram na manifestação do Movimento Vida Justa foram-se destacando os rostos de várias figuras com responsabilidades políticas. Um deles foi Fabian Figueiredo, líder parlamentar do Bloco de Esquerda que desceu a Avenida da Liberdade com uma mensagem crítica sobre a forma como a PSP geriu o caso da Cova da Moura.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Garantindo que esta não é uma manifestação “contra a polícia”, o responsável do Bloco de Esquerda sublinhou se deve “fazer uma avaliação crítica da Direção Nacional da PSP” neste processo. “Emitiu um comunicado que foi mostrado que tem várias mentiras”, assinalou, lembrando que “as pessoas precisam de confiar nas instituições do Estado”.

“Há uma história de violência policial em Portugal, a população negra tem 21 vezes mais probabilidade de ser atingida pela polícia do que a média da população. Temos de enfrentar esta realidade”, argumentou ainda.

João Ferreira, vereador comunista na Câmara de Lisboa, foi outro dos que participaram no protesto. E também ele apontou o dedo à atuação — e gestão — de todo o caso pela PSP. João Ferreira pediu celeridade na investigação para que rapidamente se possam “atribuir responsabilidades” nas falhas que venham a ser identificadas. “Quanto mais depressa isso acontecer, mais estamos a contribuir para o pronto desanuviar de tensões que existem há muito tempo mas que se têm manifestado de um modo particular na última semana”.

Isabel Mendes Lopes, líder da bancada do Livre, também integrou a marcha pela Avenida. Insurgiu-se contra o que considera ser um “racismo estrutural” na sociedade portuguesa e, para evitar casos como os da madrugada da última segunda-feira, apontou ao “policiamento de proximidade” como solução para o reduzir das tensões.

A três quilómetros dali, a contra-manifestação chegava à Assembleia da República.

Uma manifestação pela polícia, por André Ventura e contra tudo o resto

Em menos de duas horas, a concentração e marcha marcada pelo Chega ficou despachada. O objetivo era apoiar a polícia, mas as atenções dos manifestantes que começaram por se concentrar na Praça do Município, este sábado, desviaram-se assim que André Ventura saiu do BMW preto, de braço no ar. O protesto ainda não tinha começado e já os pouco mais de 200 apoiantes gritavam o habitual em manifestações marcadas por este partido, seja qual for o motivo do protesto: “Ventura, Ventura, Ventura”.

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVADOR

Entre os manifestantes que gritavam pelo líder do Chega estava Fátima Canha. A socióloga de 61 anos decidiu sair de Mem-Martins, onde mora, para defender que devia existir em Portugal “pena de morte ou prisão perpétua”. “Confundiram liberdade com libertinagem, essa escumalha toda que vive de subsídios”, criticou, em referência aos distúrbios que têm acontecido pela Grande Lisboa ao longo da última semana, desde a notícia da morte de Odair Moniz, vítima de dois disparos feitos por um agente da PSP.

Mas a conversa facilmente se desloca para o discurso habitualmente promovido por André Ventura, independentemente de o tema ser polícia ou não. Se não há segurança, a culpa também é da imigração descontrolada. “Vêm com armas, com doenças, tirar o lugar aos que estão cá. As pessoas são todas bem-vindas se aceitarem as regras. Tirando isso, lixo, escumalha.”

“Há o lado daqueles que, seja em que circunstâncias for, estão sempre contra a polícia. Gostaram sempre mais das minorias e dos coitadinhos. O nosso dever é integrar, é deixar que ardam os autocarros, é deixar fazer tudo. E nós ficaríamos em casa a ver. A toda a bandidagem, o vosso país morreu.”
André Ventura, presidente do Chega

Ao lado de Fátima Canha, estava um casal que não quis ser identificado, mas que tinha, ainda assim, várias palavras para dizer, sobretudo para criticar a manifestação que decorria ao mesmo tempo entre a rotunda do Marquês de Pombal e a Praça dos Restauradores. “Tanto polícia que morre às mãos dessa gente. Estamos numa anarquia?”, dizia a mulher, indignada com os protestos contra a violência policial nos bairros.

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVADOR

E nem as palavras do deputado Pedro Pinto foram esquecidas nesta manifestação. Nem condenadas. O líder parlamentar do Chega, na RTP, disse que, “se as forças de segurança disparassem mais a matar, o país estava mais na ordem” — declarações que valeram já um inquérito aberto pelo Ministério Público por eventual incitamento ao ódio. “O que ele disse é o que nós pensamos”, assumiu um dos manifestantes. “Se a polícia fosse como no Brasil — dispara primeiro e pergunta depois —, já não havia isto”, acrescentou, poucos minutos antes de ouvir André Ventura, de microfone na mão já à frente da Assembleia da República, dizer que “este país não é o Brasil de Lula da Silva”.

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVADOR

Com alguma chuva à mistura, os manifestantes andaram sempre em passo acelerado, nunca pararam durante o percurso, como habitualmente acontece nos protestos, e as palavras de ordem deixavam algumas dúvidas sobre se esta era uma manifestação de apoio à polícia ou a André Ventura, que liderava a marcha. Ora se ouvia “bandido, ladrão, o teu lugar é na prisão” e “polícia, amigo, o povo está contigo”, como se ouvia “Ventura vai em frente, tens aqui a tua gente”.

Estas palavras foram repetidas pela deputada Rita Matias, no pequeno palco montado à frente da escadaria do Parlamento. Os manifestantes não foram suficientes para encher aquele largo, mas os que ali se concentraram ouviram Rita Matias cantar o hino português e gritar ainda “está na hora, está na hora de o bandido ir embora”.

As palmas multiplicavam-se, os manifestantes faziam algum barulho e abanaram ainda mais as bandeiras do Chega e de Portugal quando Ventura começou a discursar. Em cerca de 15 minutos, o líder do Chega falou da manifestação da Vida Justa, atirou críticas à esquerda e voltou a falar de “bandidagem”. “Há o lado daqueles que, seja em que circunstâncias for, estão sempre contra a polícia. Gostaram sempre mais das minorias e dos coitadinhos. O nosso dever é integrar, é deixar que ardam os autocarros, é deixar fazer tudo. E nós ficaríamos em casa a ver. A toda a bandidagem, o vosso país morreu.”

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVADOR

A ouvir André Ventura, já no final da manifestação, estava um homem cabo-verdiano, acompanhado por uma criança. “Esta manifestação vem provar que os portugueses não estão com ele. Achas que um português inteligente vai estar aqui a bater palmas? Portugal é um país de coração grande, filho”, ia dizendo, apontando para o reduzido número de manifestantes. Ao seu lado, estava também uma mulher e um homem que tinha pelas costas a bandeira de Cabo Verde. Os quatro estavam sob o olhar das autoridades que por ali estavam — afinal não estavam ali para apoiar aquele protesto.

Mas só quando André Ventura terminou o discurso e começou a escutar-se “Era um mundo novo/Sonho de poetas/Ir até ao fim/Cantar novas vitórias/E ergueram orgulhosas bandeiras/Viver aventuras guerreiras/Foram mil epopeias/Vidas tão cheias/Foram oceanos de amor” é que os quatro começaram a perceber que, afinal, a manifestação marcada pela Vida Justa já não iria terminar naquele local, mas sim na Praça dos Restauradores. Saíram quase a correr para ainda conseguirem participar na manifestação onde queriam realmente estar. Mesmo assim, saíram depois de alguns manifestantes do Chega. Aliás, a maioria dos apoiantes de Ventura nem sequer esperou pelo fim da música ‘Conquistador’.

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