Em Antuérpia, Bélgica (ou Flandres, como o orgulho local insiste em frisar), quem não soubesse que nos últimos três dias decorria todo um vasto programa da prestigiada lista The Worlds 50 Best Restaurants, nunca adivinharia que tal evento estava a decorrer.
Por entre as ruas serpenteantes desta cidade portuária que junta diamantes e batatas fritas no seu coração, tudo corria como costume. Podíamos cruzar-nos com o famoso Eneko Atxa (do ultra-premiado Azurmendi, no País Basco, Espanha) e a mulher à porta de um hotel, de malas e mapas na mão, e confundi-los com uns turistas genéricos. Podíamos percorrer vários dos restaurantes mais interessantes da cidade e não ver sequer um panfleto ou um autocolante na porta. Cenário muito diferente de anos anteriores: há duas edições, em 2018, quando este certame decorreu em Bilbao, só faltava ter altifalantes na rua a anunciar o programa das festas. Nenhum candeeiro de rua se livrou de ter uma bandeirinha a assinalar o evento. Previa-se um certame monótono.
Com o mundo inteiro a lentamente levantar a cabeça depois de mais de um ano de restrições impostas pela pandemia da Covid-19, ninguém sabia muito bem o que esperar da gala que esta terça-feira, 5 de outubro, coroou o dinamarquês Noma, de René Redzepi, como o melhor restaurante do mundo.
O anúncio da lista dos The World’s 50 Best Restaurants é sempre um programa de vários dias — o da cerimónia é precedido de palestras, apresentações, jantares exclusivos, e culmina na grande revelação e nas inúmeras (e míticas) after-after-partys, sempre reunindo cozinheiros, jornalistas e pessoas ligadas à hospitalidade e restauração vindas de todos os cantos do mundo. Do Japão à Austrália, passando por Portugal (José Avillez segurou a 42ª posição com o seu Belcanto), Rússia, EUA e Peru. Como se faz algo deste género funcionar num contexto pós-pandémico?
“Meses de preparação desafiante”
A citação que abre este capítulo foi proferida na conferência de imprensa que antecedeu a grande gala e foi dita por Charles Reid, o CEO da William Reid, editora responsável por dar vida a esta lista. Para qualquer pessoa que não tenha vivido debaixo de uma pedra no último ano e tendo em conta toda a logística internacional que envolve este evento, não é lá grande revelação. A pandemia bateu de punho fechado especialmente no ramo das viagens e da restauração por isso não é surpresa para ninguém a dor de cabeça que foi voltar a dar vida a tudo isto. “Estou aqui a falar com vocês com um ano de atraso”, disse. “O mundo ficou em ‘pausa’ mas, felizmente, já carregaram no ‘play’ novamente e aqui estamos”, remata.
A pacatez que se sentia em Antuérpia estilhaçou-se totalmente logo no momento de check-in para esta conferência que juntou num espaço pouco maior que uma piscina olímpica pelo menos uma centena de pessoas — talvez mais, até. Para quem já não viajava há tempos sem fim e quase ficava ansioso ao cruzar-se com outro ser humano no corredor de um supermercado, estar ali no meio era simplesmente bizarro. Mas seguro, ainda assim.
Ninguém entrava sem comprovativo de vacinação ou teste PCR negativo (neste e em todos os vários eventos da programação) e havia centenas de máscaras à disposição de quem quisesse usar. Por muito que ainda nos estejamos a habituar a conviver neste mundo vacinado, onde as máscaras gradualmente vão caindo, o primeiro confronto com esta realidade é sempre um desafio. Pelo menos, neste caso, deu alguma esperança de que era possível voltar aos grandes eventos do 50 Best. E isso via-se nos reencontros. “Estou a ver pessoas com quem já não me cruzava há mais de dois anos”, comentou um jornalista italiano. Sentia-se o entusiasmo.
“No final de contas, o 50 Best é uma forma de unir pessoas e culturas através da comida e de grandes restaurantes. Ver-vos todos aqui hoje é um prazer sem igual porque mostra que apesar dos tremendos desafios que vivemos nos últimos tempos, isso ainda é possível”, rematou Reid. No final desta conferência vários outros cozinheiros fizeram apresentações e deram palestras — uma delas genial, do hiperativo Heston Blumenthal que apresentou o seu novo conceito de “Gastronomia Quântica”, que não explicou muito bem mas diz que vai ser a “próxima grande coisa” — e no final da tarde já sentíamos que 2020 nunca tinha acontecido e que cumprimentar pessoas com dois beijinhos não cara não é nada do outro mundo.
A lista mais inclusiva de sempre?
Nenhum galardão, deste género ou de outro qualquer, agrada a toda a gente. E o 50 Best não é exceção. Durante vários anos, vozes críticas apontavam sempre para as falhas deste formato que faz gala dos seus critérios e avaliadores — centenas de chefs, empresários, críticos, jornalistas e influencers (cada vez mais) que todos os anos enumeram aquelas que consideraram ser as suas melhores experiências à mesa. Acusações de falta de representatividade, tanto de chefs mulheres como de chefs não caucasianos, por exemplo, ou de um certo euro-ocidente-centrismo foram sendo arremessadas contra a organização, e esta pouco foi fazendo para as contrariar. Desta vez, porém, as críticas não parecem ter caído em saco roto.
A diferença começou a notar-se logo nas personalidades escolhidas para as palestras e conversas que se realizaram antes da cerimónia. Num debate a que chamaram de Aftershock e que pretendia revisitar o impacto da pandemia neste setor, os chefs oradores foram o sul-coreano Junghyun Park, a ganesa Selassie Atadika e o suíço Daniel Humm. Os premiados pela distinção Champions of Change (distinção recente, apontada a personalidades que estão a ir além da comida na busca pela mudança social) foram o afro-americano Kurt Evans, a italiana Viviana Varese e o tailandês de raízes indianas Deepanker Khosla. Até a apresentadora da lista durante a cerimónia foi a chef pasteleira e apresentadora de televisão Ravneet Gill. No geral, em todos os momentos de discurso da organização foi dado um claro enfoque na diferença, na representatividade, na solidariedade e na inclusão. E a própria lista mostrou isso.
Quando o relógio batia nas 16h30, as centenas de pessoas que já estavam reunidas no átrio principal do Flanders Meeting & Convention Centre — que trocaram muitos brindes, beijos, abraços e selfies sem máscara — invadiram a enorme sala de eventos onde uma pequena banda os recebia atrás do palco, visível apenas através de um painel eletrónico para saber das boas (ou más, em alguns casos) novas.
O revelar da lista em si é enfadonho, de certa forma. Mais de uma hora de conversa à medida que um a um todos os nomes dos galardoados são pronunciados. Muito pouco glamour, pelo menos para quem vê de fora. O que a lista ia mostrando, por sua vez, era bem mais interessante. Só no top 10, por exemplo, existem 5 restaurantes em território europeu — o vencedor Noma e o segundo lugar Geranium (ambos na Dinamarca, a nação vencedora da noite); o terceiro classificado Assador Etxebarri (Espanha); o quinto classificado Disfrutar (Espanha) e o sexto lugar do sueco Frantzén — e 5 fora da Europa: o Central, na quarta posição (Peru); o Maido, em sétimo (também no Peru); o Odette, em oitavo lugar (Singapura); o nono lugar do Pujol (México) e o 10º para o chinês The Chairman. Olhando para a última lista, esta distribuição era mais desequilibrada, com sete espaços europeus contra apenas três fora do velho continente.
Outros projetos mais jovens inovadores como o promissor Ikoi, que apresenta pratos com inspirações africanas em Londres pelas mãos do jovem chef Jeremy Chan (venceram o prémio “One To Watch”, dado aos espaços que a lista considera ter grande potencial), também tiveram destaque. O inusitado Wolfgat, perdido numa praia da África do Sul, também foi nomeado (posição 50) e os irreverentes e jovens Lyle’s (Londres) e Septime (Paris) também se mantiveram fortes entre autênticas instituições como o icónico Azurmendi (País Basco) ou o Le Bernardin (Nova Iorque).
Será isto resultado da criação do Best of the Best, a lista onde todos os números uns entram depois de terem vencido o primeiro lugar e que os impossibilita de o ganhar novamente? Talvez. Impacto do clima de crispação e reivindicação social e cultural que se vive hoje em todo o mundo? Muito provavelmente. Independentemente do porquê, a verdade é que isso é positivo. Fica a grande questão: como será que esta aposta se manterá em próximas edições?
Um olá e um adeus
À medida que a contagem se aproximava do número um o entusiasmo intensificava-se. As medidas de segurança impediam que os vencedores saltassem e pulassem como dantes, a organização avisara logo no início, mas ainda assim, quando se ouviu o nome do Noma, a casa do célebre René Redzepi, em Copenhaga, tanto o chef — que vestia uma camisa com um desenho feito pela filha mais nova — como a sua equipa, saltaram dos seus assentos. Canhões de fitas douradas dispararam, a música parece que ficou mais alta e os aplausos tornaram-se rugidos. Sentia-se que René é um tipo acarinhado pelos seus pares — e o 50 Best também é muito um concurso de popularidade.
Redzepi, a mulher e a sua entourage subiram ao palco num estado de alegria contida. Não houve pulos nem danças mas dava para perceber a felicidade. René passou o microfone para os seus colegas quase no mesmo momento que lho entregaram. Todos, quase, falaram antes do chef. Soltaram-se uns quantos “fuck” de emoção. O seu gerente, James Spreadbury, aproveitou para puxar o holofote para as equipas de sala de todos os nomeados, “que muitas vezes não têm o destaque que merecem”. Só no final é que Redzepi assumiu o microfone e puxou da folha onde tinha escrito umas palavras: “Vocês ao verem isto vão pensar que já sabia que íamos ganhar mas não, não fazíamos ideia! Decidi escrever isto porque, havendo essa possibilidade, não queria deixar nada de fora”.
De forma descontraída e animada, como é seu apanágio, René abriu o jogo e falou da dificuldade que foi estes últimos tempos, de quase sentir-se “culpado de estar tão contente quando tantos colegas ainda estão em graves dificuldades”, no essencial que foi sentir que tinha a sua equipa consigo nos momentos de maior aperto e na luta que travou com unhas e dentes para garantir que aos seus companheiros nunca faltava aquilo que os tornou famosos — criatividade e imaginação. Mais tarde, na conferência de imprensa que deu logo após o fim da cerimónia, disse que fez sempre por manter as preocupações financeiras longe das cabeças que precisavam de vaguear soltas e que essa separação foi muito importante.
Por muito que a relevância do Noma seja incontornável — é deles a criação da “nova cozinha nórdica” que tantos jovens cozinheiros já influenciou, por exemplo –, que René seja um tipo que cai bem a toda a gente e que os seus menus sejam uma coisa digna de qualquer “bucket list”, esta sua nova vitória não foi inquestionável. Por entre os corredores do centro de conferências muitos comentavam a estanheza de um chef ter sido reconhecido cinco vezes como o melhor do mundo em anos anteriores e de, por causa disso mesmo, ter entrado nos tais Best of the Best, e ainda assim voltar à primeira posição. Os seus defensores diziam que as distinções anteriores foram atribuídas ao Noma original e esta era para o novo Noma — o espaço mudou fisicamente de sítio, de equipas e menus há algum tempo. Certo. Talvez o truque para fugir ao Best of the Best seja fechar o restaurante que ganhou e abri-lo noutro sítio, com o mesmo nomes.
Independentemente disso, Redzepi assume que agora é de vez. “É uma sensação incrível estar aqui outra vez. Agora, pela última vez”, afirmou. “É como uma coisa que sabemos que o banco depois nos vem tirar, não nos devemos afeiçoar muito”, acrescentou em tom de brincadeira. De certa forma é um olá e um adeus ao mesmo tempo.
Quando as emoções acalmaram e a vontade de celebrar falou mais alto começou a corrida às famosas after-after-partys. “Para onde é que é para ir agora?”, começa-se sempre a comentar. Nestes momentos quase que não importa se se foi convidado ou não. Basta estar atento e ter sorte. Um “anda connosco” transforma-se num verdadeiro bilhete dourado do Willy Wonka e de repente chega-se a um museu convertido em salão de festa com comida e bebida, a roçar-se cotovelos com os maiores chefs do mundo. E de repente estamos na fila para a casa de banho entre o Massimo Bottura e o Andoni Aduriz. E justamente quando uma festa acaba, outra está prestes a começar, noutro lado qualquer da cidade. Esta celebração dos The World’s 50 Best Restaurants 2021 terminou mas, pelo sucesso que foi este regresso pós-Covid, em menos de nada uma outra estará certamente ao virar da esquina.