Índice
Índice
Foram várias as figuras culturais que marcaram a Roma do século I, mas talvez nenhuma tenha sido mais influente do que Séneca. Mais conhecido pela faceta de filósofo, é considerado o principal representante em Roma do estoicismo, corrente filosófica com origem em Atenas que pregava uma vida sem perturbações. Autor de uma obra ampla e variada, da qual se destacam os trabalhos ligados à ética e aos problemas do supremo bem, da vida feliz e da preparação para a morte, Séneca escreveu em prosa (cartas, diálogos e discursos), mas também em verso. Foi nesta modalidade que compôs dez tragédias, as únicas de todo o teatro romano que se conservaram na íntegra e que chegaram a gozar de maior popularidade do que as gregas. As tragédias, menos conhecidas do que outros trabalhos, são uma extensão das obras filosóficas do autor, abordando questões centrais do seu pensamento e da corrente estoica, à qual se manteve fiel até ao fim da vida.
Esse desconhecimento deve-se em parte à pouca atenção que lhes foi dada durante o século XIX, quando as tragédias de Séneca foram preteridas a favor das gregas pelos românticos. Foi preciso esperar pelo início do XX para que as peças fossem novamente recuperadas e apreciadas, multiplicando-se o número de edições e estudos críticos. Em Portugal, apesar de algumas terem sido traduzidas e publicadas de forma avulsa, permanecem envoltas num certo obscurantismo. Uma situação que se pretende reverter com a edição do conjunto em dois volumes entre este ano e o próximo, pela Edições 70. A tradução é da responsabilidade de Ricardo Duarte, doutorado em Estudos Clássicos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa com uma dissertação sobre a morte em Séneca e investigador do Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa (UL).
Em conversa com o Observador, o investigador explicou que o projeto de tradução teve início quando preparava o doutoramento. Ricardo Duarte, que tinha traduzido a tragédia Medeia para a dissertação de mestrado, traduziu Édipo e Troianas para o grau seguinte. Para o projeto de pós-doutoramento, propôs traduzir e publicar as restantes peças, iniciativa que se aproxima agora da conclusão com o lançamento do primeiro dos dois volumes no passado mês de outubro. O segundo tem publicação prevista para maio de 2022, indicou fonte editorial.
Um sábio tranquilo num tempo intranquilo
Apesar de ter defendido uma existência marcada pela tranquilidade e pela reflexão, Séneca teve uma vida que foi tudo menos tranquila. Lúcio Aneu Séneca nasceu por volta do ano 4 a.C., na atual Córdova, cidade da província hispânica de Bética, no seio de uma família abastada e ilustre. Estudou em Roma, onde recebeu uma educação orientada para a filosofia e retórica. Foi nessa cidade que se estabeleceu como advogado, político, filósofo e dramaturgo e como uma das figuras culturais romanas mais importantes do período. A sua longa vida (morreu em 65 d.C., com cerca de 60 anos) abarcou cinco principados: o de Augusto, primeiro imperador, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero, de quem foi preceptor e depois conselheiro. Foram tempos conturbados e Séneca sentiu isso na pele.
“A questão da transição da República para o Principado não foi propriamente pacífica e colocou um problema, que tinha que ver com a sucessão, quantas vezes dificultada pela sede de poder e intrigas palacianas que iam eliminando os potenciais candidatos, mais ou menos legítimos”, começou por explicar Ricardo Duarte ao Observador. A oposição ao imperador feita pelos senadores, “que cedo se aperceberam das muitas contradições do regime político que sucedeu à República e se foram desenganando quanto à realidade que Augusto se teria esforçado por escamotear”, também criava dificuldades. “O Principado não era senão uma autocracia, de resto, como se viu, propensa a ser exercida por verdadeiros tiranos, como Nero e seus predecessores Cláudio e Calígula. Idealmente, das ações dos governantes se esperaria que fossem exemplares, na mesma medida em que eram, na sua generalidade, conspícuas”, constatou o investigador.
“Fosse por abuso do poder, cuja potência os deslumbrava ao ponto de uma cegueira moral, fosse por predisposição da própria índole, decerto insegura, para a crueldade e para o sadismo, eram muitos os governantes que se regozijavam com o crime e o derramamento de sangue.” Calígula, por exemplo, ficou conhecido por muitas atrocidades (embora o episódio por que ficou mais famoso tenha sido a nomeação do seu cavalo como cônsul). Cláudio, que lhe sucedeu, não terá sido melhor governante, recorrendo muitas vezes ao crime para conseguir o que queria. “Que, em muitos casos, os assassínios ordenados pelos imperadores decorriam de uma espécie de patologia moral, prova-o o facto de os argumentos que, na ótica dos governantes, presidiam às execuções, e as impunham como uma espécie de imperativo, decorrerem de falsos motivos e, como tal, pouco deverem à verosimilhança.”
O mesmo se poderá dizer de Nero, “a respeito do qual Séneca acalentava grandes esperanças de que viesse a tonar-se o governante ideal”, o que não se verificou. “Acabou por revelar um caráter nefasto, sobretudo à medida que foi cortando os laços que tinha com aqueles que tinham sido seus preceptores e depois conselheiros — Séneca, encarregado da parte da mais teórica da sua formação, e Afrânio Burro, que era prefeito da guarda pretoriana, e que ficou responsável pela educação mais prática daquele que viria a ser o futuro imperador.”
Séneca assumiu a educação de Nero em 49, quando regressou a Roma a mando de Agripina Menor, mãe do futuro imperador e mulher de Cláudio, após um período de exílio na Córsega. O filósofo tinha sido acusado de adultério com Júlia Livila, irmã de Calígula, mas tudo não terá passado de um esquema engendrado pela primeira mulher do governante, Valéria Messalina, para se ver livre de Livila. Messalina temia que Livila, que era sobrinha de Cláudio, a viesse a substituir como imperatriz. Este não foi, contudo, o primeiro desentendimento de Séneca com um imperador romano — ou o último. No ano 39, terá sido ameaçado de morte por Calígula, que ficou desagradado com o filósofo ao ouvi-lo discursar no senado.
“Calígula é tido como um bom orador, mas julgar-se-ia excelente. Ficou claramente desagradado com aquele desempenho de Séneca e terá pensado em mandar matá-lo. Foi dissuadido dessa ideia por uma das amantes, que lhe terá feito ver que, dada a saúde enfermiça de Séneca [que sempre teve problemas de saúde], não valia a pena estar a macular de sangue as mãos. Mais cedo ou mais tarde, teria uma morte natural. Enganou-se, porque ele viveu por muitos anos depois disso. Décadas.”
O período da educação de Nero terá durado cinco anos, até à morte de Cláudio, em 54. O mais provável é que tenha sido assassinado por Agripina, que ambicionava tornar o filho imperador. Apesar de conhecido pelas extravagâncias e crimes, Nero teve uma ação positiva à frente do império durante os primeiros cinco anos de governação, um período em que os conselheiros Séneca e Afrânio Burro exerceram grande influência sobre ele, orientando as suas decisões e travando os maus comportamentos. Foi com o jovem imperador em mente que, no final do ano 55, o filósofo compôs Da Clemência, onde mostrou como devia ser o governante ideal. O objetivo era guiar Nero na virtude, procurando que se tornasse um sábio. “Mas cedo Séneca percebeu que, de facto, Nero estava muito longe se tornar um sábio estoico e que como governante também deixava muito a desejar”, apontou Ricardo Duarte.
Essa faceta foi-se revelando aos poucos, até que Séneca decidiu afastar-se. “Séneca tentou afastar-se por duas vezes. A primeira foi logo após a morte de Afrânio Burro [em 62]. Ainda hoje se questiona se terá tido uma morte natural ou se terá sido envenenado a mando de Nero. O que é certo é que morreu e tornava-se ainda mais difícil, com a morte daquele que era o suporte de Séneca como conselheiro do imperador, manter qualquer tipo de influência ou autoridade junto de Nero. Séneca pediu então autorização para se afastar e pôs inclusivamente os muitos bens que tinha acumulado ao longo dos anos, porque Séneca era riquíssimo, à disposição de Nero.” O imperador recusou, argumentando que ainda considerava necessária a presença de Séneca em Roma.
“Naturalmente que isto era uma fachada”, comentou o investigador do Centro de Estudos Clássicos da UL. “Com o passar dos anos, e à medida que Nero que ia cortando os laços com aqueles que lhe eram mais próximos — com a mãe, com os conselheiros —, ia, por outro lado, rodeando-se de outras figuras, quase todas sinistras, que ocuparam o lugar que antes era ocupado pela influência benéfica de Séneca e de Afrânio Burro.”
Apesar de lhe ter recusado o afastamento, Nero permitiu que Séneca vivesse mais afastado da vida pública. “Passava muito tempo em casa, recolhido em meditação, em estudo e a produzir muitas obras.” Terá sido nesta altura que terá composto as tragédias, “assim como as Questões Naturais, uma obra imensa para a qual ele tinha recolhido muitas informações quando esteve exilado na Córsega e possivelmente na estadia no Egito quando era mais novo, e também as Epístolas Morais a Lucílio, que são um manancial de doutrina estoica, além de permitirem entrever uma série aspetos relativos à vida de Séneca e ao quotidiano dos romanos”.
O facto de Séneca se ter tentado afastar apenas quando a situação parecia irreversível gerou duras críticas por parte dos seus detratores, contemporâneos e também posteriores. “Aos detratores contemporâneos, Séneca deu uma resposta no Da Tranquilidade da Alma, um diálogo em que explica que o sábio ou o aspirante a sábio tem o dever de não desertar do campo de batalha (ele utiliza muito a imagética militar e da medicina para fazer a apologia do papel que o estoicismo deve ter junto da sociedade), mesmo quando o governante não é o governante ideal, porque o seu exemplo será útil. Há sempre a esperança de conseguir atenuar e inclusivamente melhorar os aspetos menos positivos do comportamento e do caráter do imperador.”
De acordo com Ricardo Duarte, esta posição, mantida por Séneca ao longo dos anos, terá mudado quando, após a morte de Afrânio Burro, o filósofo concluiu que, “dada a quantidade de crimes que Nero entretanto tinha cometido, seria impossível algum dia tornar-se num sábio”. “O percurso que ele estava a traçar era irreversível, de muitas perversidades. Séneca decidiu que tinha chegado o momento de se afastar.”
Uma morte exemplar
Em 64, após o incêndio de Roma, Séneca voltou a colocar a sua fortuna à disposição de Nero, que a aceitou. Recusou, no entanto, que o filósofo deixasse a cidade. Passado um ano, na consequência da conjura de Calpúrnio Pisão, que conspirou para afastar o imperador do poder, Séneca, que não estaria diretamente envolvido no plano, foi obrigado a suicidar-se. A morte do filósofo tornou-se célebre, pelo exemplo de dignidade que tentou passar. “Nos derradeiros momentos da sua vida, como um bom estoico, tentou ser um exemplo para os que o rodeavam. Tentou consolar os que estavam com ele, dizendo precisamente que, afinal, o que havia de estranhar ali? Depois de Nero ter mandado matar a mãe, Agripina Menor, e o irmão, Britânico, não restava senão mandar matar o próprio Séneca. E foi de facto o que aconteceu”, afirmou Ricardo Duarte.
O historiador romano Tácito, nos Anais, “diz-nos inclusivamente que a morte de Séneca foi a mais grata a Nero, talvez precisamente pela beleza do ideal que tentou incutir-lhe e por ser uma figura que trabalhava arduamente e quotidianamente para se aperfeiçoar e para melhorar enquanto pessoa”, contou o investigador. “Uma vez que lhe foi negado o acesso ao testamento nesses derradeiros momentos, Séneca disse que a única coisa que podia legar aos que estavam junto dele era a imagem da sua vida, a maneira como tinha vivido tentando alcançar a virtude, que era o bem supremo para os estoicos. Foi isso que lhe foi permitido deixar, a imagem da vida e também a imagem da morte. Ele acolheu aquele momento, que sabia ser inevitável. Sabia que não tinha como escapar e foi com serenidade que aceitou a morte e que foi ao seu encontro.” Mas a morte não chegou com facilidade, como explicou o tradutor.
“Séneca começou por abrir as veias dos braços, das pernas e dos tornozelos. Nesse ato, foi acompanhado pela mulher, Pompeia Paulina. Apesar da diferença de idades, existiu uma união profunda entre os dois, de tal modo que Pompeia Paulina quis acompanhar o marido na morte e suicidar-se também. Séneca, talvez mais por temer o que lhe pudesse suceder depois de estar morto, concordou. Há quem diga inclusivamente que existiria um pacto de morte entre os dois, já selado há muito tempo. Séneca suportava bem a sua dor, mas não suportava ver a pessoa que tanto amava a sofrer, e temendo que a sua própria agonia enfraquecesse o ânimo de Pompeia Paulina, pediu que a levassem para outro quarto. Assim que foi levada, os soldados de Nero deram ordens para que lhe atassem as feridas para que não se acrescentasse mais uma vítima inocente à lista já muito considerável de crimes do imperador. Pompeia Paulina sobreviveu à morte de Séneca e viveu ainda durante alguns anos, mantendo-se sempre muito digna na dor e respeitando a memória do marido.”
Enquanto isso, o filósofo, com as veias abertas, continuava a lutar com a morte, que teimava em chegar. “Muito provavelmente devido à velhice, o sangue não escoava.” O filósofo, que teria cerca de 60 anos, pediu então ao seu médico que lhe desse a cicuta, que estava guardada para o ajudar a morrer. “Este pedido ecoa claramente a morte de Sócrates, que não tendo sido um suicídio, acabou por se tornar exemplar e serviu de modelo para os estoicos, porque Sócrates teve várias oportunidades para se evadir do cárcere, mas entendeu não o fazer. Nesse sentido, a sua morte acaba por ser considerada uma espécie de suicídio”, apontou Ricardo Duarte, acrescentando que, no caso de Séneca, a cicuta não teve o efeito desejado.
“Estava guardada há muito tempo e não surtiu efeito. Até que por fim Séneca pediu que o transportassem para a sala dos banhos quentes, para que a temperatura da sala ajudasse o sangue a fluir e o próprio vapor o entorpecesse e lhe provocasse um desfalecimento. Pediu aos escravos que o mergulhassem na piscina de água quente e salpicou-os, dizendo que fazia aquela derradeira libação a Júpiter Libertador. E foi assim que finalmente foi ao encontro da morte.”
Tragédias, outra forma de transmitir sabedoria
Séneca é o único tragediógrafo romano cuja obra chegou na totalidade até aos dias de hoje. Dos restantes autores, do período da república e imperial, conhecem-se apenas fragmentos. Por essa razão, é muito difícil saber como era o género em Roma e no período de Séneca e que autores terão servido de inspiração ao filósofo estoico. Acredita-se, no entanto, que a influência terá sido sobretudo latina e não tanto grega, de autores como Pompónio Segundo, muito admirado na época de Calígula e Cláudio. Pompónio também foi perseguido por um imperador, neste caso Tibério, que obrigou um outro tragediógrafo, Mamerco Emílio Escauro, a cometer suicídio. Um dos motivos foi a acusação de que a sua tragédia Atreu aludia ao imperador. Outra possível influência terá sido Ovídio. Conhecido por obras como Metamorfoses, Ovídio, que foi exilado por Augusto, também compôs tragédias, que se perderam. Julga-se que a sua Medeia terá exercido grande influência sobre Séneca, que escreveu uma peça sobre o mesmo mito.
Ao contrário de outros autores, Séneca não terá composto tragédias para puro entretenimento. O filósofo tinha outros objetivos, relacionados com o estilo de vida que seguia e apregoava. “Séneca considerava que o caminho para a sabedoria e para o aperfeiçoamento moral podia ser mais difícil se fosse feito através de teoria e que seria facilitado por exemplos que as pessoas compreenderiam”, começou por explicar o investigador do Centro de Estudos Clássicos da UL. “Séneca compôs ao longo da sua vida uma série de tratados em prosa, os diálogos, mas esses não eram de leitura fácil e acabavam por não chegar a todas as pessoas. Só uma elite culta familiarizada com muitos dos preceitos estoicos conseguia compreender cabalmente a mensagem que estava a ser transmitida. Em comparação com esta forma, as tragédias apresentavam-se como um meio mais acessível, mais cativante.”
Uma das razões era o facto de girarem em torno de personagens mitológicas bem conhecidas do grande público. “Ele terá procurado fazer das tragédias uma espécie de complemento ao muito que tinha escrito e teorizado sobre o estoicismo em prosa, nomeadamente a questão das paixões, um ponto nevrálgico da moral estoica”, considerou o investigador, explicando que, para os estoicos, as paixões eram, “de forma bastante simples, todos os movimentos contrários à razão, com origem num falso juízo relativamente a apreciações de coisas exteriores. São esses falsos juízos que estão na origem das paixões e que depois nos fazem ter uma série de comportamentos e atitudes que não são racionais, e por isso são censuráveis do ponto de vista da moral estoica, acabando muitas vezes por ter consequências bastante nefastas”.
No caso dos mitos escolhidos por Séneca, essas consequências são quase sempre a morte, retratada com grande violência. É o caso da história de Jocasta, que se suicida ao descobrir que tinha casado com o próprio filho, Édipo; ou de Atreu, que assassina os sobrinhos, filhos do irmão Tiestes, para se vingar deste. Atreu “está sob o claro domínio da ira, que é considerado uma das piores falhas morais, porque arrasta uma série de outros defeitos. Não é por acaso que Séneca compôs Sobre a Ira”, apontou Ricardo Duarte. “Nessa obra, o exemplo que Séneca escolhe para retratar alguém que se deixou tomar pela ira é precisamente o de Calígula.” Uma referência que dificilmente se encontra nas tragédias, nas quais não é possível encontrar ecos de acontecimentos contemporâneos.
Porém, tendo em conta a biografia de Séneca, Ricardo Duarte considera natural que haja interpretações das tragédias do filósofo que procurem detetar ecos de certos imperadores, até porque um dos temas tratados é o do poder tirânico. Só que este já era aborado no teatro latino arcaico, apontou o investigador. “Do pouco que se consegue inferir do que chegou até nós, dá para ter uma ideia de que o poder tirânico já era tratado por esses autores, como Marco Pacúvio ou Lúcio Ácio. Por outro lado, vemos também em Pacúvio um grande protagonismo por parte de personagens femininas, que depois encontramos também em Séneca, não tanto nas tragédias deste primeiro volume, mas por exemplo na Medeia e na Fedra, cuja tradução sairá no segundo volume. Também as personagens que parecem maiores do que a vida, como no caso do Tiestes. Atreu é uma personagem grandiosa, ainda que pelos piores motivos. Exerce um certo fascínio, ainda que tortuoso, naturalmente, pela crueldade como é caracterizada a vingança contra o irmão — matar os próprios filhos e servi-los num banquete.”
Outra questão polémica diz respeito ao público-alvo das tragédias de Séneca. Não chegou aos dias de hoje qualquer dado que permita determinar se as peças foram escritas para serem lidas ou apresentadas e, se o foram, se chegaram a ser encenadas e de que forma. “Essa questão manter-se-á, porque não temos forma de perceber”, admitiu o investigador.
Uma influência para os renascentistas e barrocos que os românticos recusaram e o século XX recuperou
As tragédias de Séneca terão exercido influência em Roma muito além do período em que foram escritas. Na Idade Média, após um período de aparente desconhecimento em que o nome do autor se confundiu com o do seu pai, também chamado Séneca, mas conhecido como o Retor, a descoberta no século XI de um manuscrito em território italiano com todas as tragédias, o Codex etruscus, permitiu que recebessem uma renovada atenção, que se perpetuou nos séculos seguintes, possibilitando “o renascimento do teatro clássico”. “De tal forma que os autores renascentistas e barrocos, embora também tivessem conhecimento e simulassem maior interesse pelos tragediógrafos gregos, claramente preferiam o modelo de Séneca, como se pode ver, por exemplo, em peças de Shakespeare, Corneille ou Racine. Portanto, durante esse período, as tragédias de Séneca gozaram de grande voga”, apontou o investigador e tradutor.
“Porém, com os românticos, a história já é outra.” Ao contrário dos seus antecessores, os autores românticos preferiam os gregos. “Porque são estéticas muito diferentes”, frisou Ricardo Duarte. “Os próprios intuitos que estão por trás da composição são diferentes. A tragédia ática visava a catarse, a purificação, a identificação do espectador com aquilo que estava a ser encenado de modo a atingir a purificação das paixões. Séneca não pretendia de todo uma catarse, não pretendia de todo uma identificação total ou parcial entre o que estava a ser encenado e o espectador/leitor. Pelo contrário, pretendia um repúdio. É uma função moralizante e didático-pedagógica.”
Dado que muitos dos mitos tratados pelos gregos foram depois tratados pelos romanos, os românticos “consideraram as tragédias de Séneca imitações mal conseguidas das tragédias gregas”. “Nessa altura houve um revés na popularidade das tragédias de Séneca, porque foram de facto injustamente avaliadas.” Foi preciso esperar pelo início do século XX para que as peças do filósofo fossem recuperadas e “devida e justamente apreciadas e avaliadas”. “Percebeu-se que era um teatro diferente do teatro grego, mas nem por isso melhor ou pior. É apenas um teatro diferente e merece ser avaliado por aquilo que é, sem estar a ser comparado com um suposto modelo”, defendeu Ricardo Duarte.
No último século, e sobretudo nas últimas décadas, têm-se sucedido os estudos, ensaios, edições comentadas e traduções. “E em alguns países mais do que uma”, apontou o investigador, lamentando que este não seja o caso de Portugal, onde se está a publicar pela primeira vez “o conjunto do corpus das dez tragédias”. Este inclui as cinco peças que integram o primeiro volume recentemente publicado, Tiestes, Troianas, Agamémnon, Édipo e Fenícias, e as tragédias Hércules Enlouquecido, Medeia, Fedra, Octávia e Hércules no Eta, que serão editadas em 2022. Do último conjunto, acredita-se que dois textos, Octávia e Hércules no Eta, não terão sido compostos pelo tragediógrafo romano.
Em relação à primeira, a única de tema romano, centra-se na figura trágica de Octávia, filha de Cláudio e a primeira mulher de Nero, renegada e assassinada por este. “Ele nunca a terá amado. Acharia Octávia desengraçada no seu recato e no seu pudor. Estava nos antípodas de uma Popeia Sabina, por quem a dada altura se apaixonou e com quem se veio a casar. O casamento com Octávia não passou de uma aliança política, e uma forma de robustecer a sua ligação aos Cláudios, de forma que pudesse ser considerado um sucessor com os mesmos direitos de Britânico, filho consanguíneo de Cláudio, que foi inicialmente afastado para que Nero ascendesse ao trono e depois assassinado a mando deste para que não viesse a reclamar o poder”, explicou Ricardo Duarte, acrescentando que o imperador a tentou afastar a todo o custo, o que não foi fácil.
“Octávia era muito querida ao povo romano. Ele começou por acusá-la de manter relações com escravos e depois os próprios escravos da casa, sob tortura, recusaram-se a admitir que era verdade. Depois acusou-a de ser estéril e repudiou-a, mas o povo prontamente se manifestou e, temendo uma insurreição, Nero chamou-a de volta. Por fim, pediu a Aniceto, prefeito da armada de Miseno, que declarasse que era seu amante.” Nero chegou inclusivamente a divulgar a história de que a imperatriz teria abortado o filho de Aniceto, o que contradizia as declarações anteriores de Nero, que a acusou de ser estéril. Octávia acabou por partilhar o mesmo destino que muitos dos antigos colaboradores do marido — exilada na Pandatária (atual Ventotene), ao largo de Nápoles, acabou por morrer nesta ilha, assassinada pelos soldados de Nero, que lhe cortaram a cabeça para a apresentar a Popeia Sabina como troféu.
A imperatriz terá muito provavelmente convivido com Séneca quando este ocupava um lugar de destaque na corte imperial, mas são poucos os investigadores que hoje acreditam que a tragédia tenha sido escrita pelo filósofo. Desde logo pelo tema, uma escolha perigosa para alguém que corria risco de vida; depois, porque uma das personagens é o próprio Séneca, o que, tratando-se de uma peça da sua autoria, seria inédito na produção trágica antiga. Há também “outros elementos que não corroboram a possibilidade de ter sido composta por Séneca, nomeadamente um passo em que Agripina vaticina a morte de Nero, que aconteceu no ano 68 e, portanto, posterior à morte do próprio Séneca, que se suicidou em 65”, disse o investigador e especialista no autor romano. Assim sendo, quem compôs Octávia?
“Acredita-se que tenha sido composta por um autor posterior, de finais do século I, depois da morte de Séneca e de Nero, talvez um admirador ou um seguidor do autor que lhe quis prestar uma homenagem e precisamente por isso decidiu incluí-lo como figura dramática.” Indício disso é a presença de alguns preceitos estoicos, nomeadamente a visão da morte como refúgio ou libertação, “que acaba por ser a forma como Octávia encara a morte”. Em relação à segunda tragédia sobre a qual existem dúvidas autorais, Hércules no Eta, trata-se de “uma peça diferente das tidas como autênticas, desde logo pela dimensão. Tem cerca de dois mil versos, o que constitui o dobro do que é habitual nas tragédias de Séneca.” Mais tardia, terá sido composta entre finais do século I e inícios do século II. O tema é a morte e apoteose de Hércules no Monte Eta.
Ricardo Duarte decidiu traduzi-las pela sua beleza, associação a Séneca e para dar aos leitores portugueses a possibilidade de as conhecerem. “São peças que, de outra forma, ainda para mais sendo algo problemáticas por causa da questão da autoria, dificilmente seriam traduzidas. A tragédia Octávia foi traduzia pelo professor Segurado e Campos na sua tese de doutoramento, mas é de acesso restrito”, apontou. “Acho que faz sentido por esses motivos e porque são textos de grande beleza que merecem ser conhecidos e lidos.” A partir de meados de 2022, estarão acessíveis aos leitores portugueses, juntamente com as restantes peças de Séneca, o filósofo romano.