Senhor Quino,
Se me permite, vou tratá-lo por tu. Espero que não te importes. Bom, se te importares, agora é tarde, porque estou a escrever-te esta carta no dia em que morreste, o que é um bocadinho triste, não só por teres morrido, claro, mas porque gostava de te ter escrito esta carta há muitos anos. Desculparás se o meu tom te parecer um pouco infantil, mas estar a escrever-te leva-me atrás no tempo. Ao tempo em que eu ainda era criança e tinha de ir passar os fins-de-semana a casa do meu pai, o que era quase sempre uma chatice, porque o meu pai não tinha muito jeito para crianças.
Quando fiz sete anos, deu-me para ler um livro chamado Nome de Guerra, de um senhor chamado Almada Negreiros, que é um escritor modernista português, e ficou um bocado irritado porque eu não percebi grande coisa. Depois, tentou um livro com bonecos, mais para a minha idade. Chamava-se Histoire de la Peinture Européenne. O livro era bonito, e os bonecos, de facto, muito interessantes. Mas foi pior a emenda que o soneto (que é uma expressão portuguesa que quer dizer que mais valia ter estado quieto). O meu pai, que é pintor, ficou ainda mais pior que estragado (quer dizer zangado) que eu, já com sete anos de vida e dois de escolaridade, não soubesse distinguir o traço de Matisse do traço de Modigliani, depois de ter mostrado um quadro de cada um. Ou que eu não soubesse que o Manet e o Monet não eram a mesma pessoa. “Mas o que é que vocês aprendem na escola, afinal?”, perguntou-me, com um certo desdém que, anos depois, não deixo de reconhecer em mim próprio. “Aprendemos a ler, a escrever, a fazer contas”, respondi-lhe. “Está bem, mas isso é na primeira classe, não é?”.
Até que, certo dia, desistindo de tentar explicar-me, pela quinta vez, as regras do gamão, o meu pai teve a boa ideia de ir à estante livros buscar um calhamaço encarnado, que atirou para cima da mesa. “Isto é a coisa mais divertida que vais ler”, vaticinou.
Foi nesse dia que entraste na minha vida, Quino. O livro, claro, era Toda a Mafalda. E descobrimos finalmente uma coisa que éramos capazes — eu que o achava um bocado estranho e ele que me achava vagamente atrasado mental — de fazer juntos sem nos aborrecermos.
Morreu o argentino Quino, criador de Mafalda e artista de rigor que nunca quis abandonar a infância
Durante muitos meses, era esse o nosso programa, quando se acabava a conversa de circunstância. Depois de lhe contar a minha semana, que incluía uma queda de bicicleta ou mais um animal de estimação que a minha mãe me tinha deixado levar para casa — e de lhe explicar que não, que na escola primária não tínhamos exames nem havia disciplinas opcionais, pelo que não podia escolher Noções Básicas de História de Arte —, sentávamo-nos à mesa a ler as tiras da Mafalda do princípio ao fim, à vez. “Agora sou eu!”, dizia-lhe, cheio de vontade de ler, e com o mesmo entusiasmo infantil com que dizia ele quando chegava a sua vez. E ríamos muito, com umas gargalhadas muito escandalosas, que ainda tenho, e ele também. Quando achávamos mesmo muita graça, líamos outra vez. E outra vez. E fazíamos vozes. E o meu pai, às vezes, engasgava-se nos cigarros e eu ficava muito aflito, a achar que ele ia morrer. Ou então, distraído, atirava-me fumo para os olhos, e depois ficava ele muito aflito, a achar que me tinha cegado. “A tua mãe não ia achar graça nenhuma, se eu te fosse levar a casa cego”. De facto.
E tantas vezes repetimos aquele momento só nosso, nessa intimidade possível entre um filho que era uma criança e um pai que não tinha muito jeito para crianças, que te posso dizer, sem exagerar, que sei as tiras todas do teu livro de cor.
Mais tarde, já adolescente, percebi que, para todos os meus amigos, tinha também havido esse momento iniciático de abrir pela primeira vez o livro das tiras da Mafalda. Ou da Mafaldinha, como a chamamos cá em Portugal. Que os meus amigos também sabiam de cor as tiras da Mafalda. Talvez a alguns escapasse a subtileza política das tuas tiras. Mas não eram filhos do meu pai. Para além de me mostrar “a coisa mais divertida que vou ler na vida”, também me falou da tua Argentina, da ditadura, e do capitalismo e do comunismo, mas também dos direitos humanos, e da condição das mulheres e dos direitos das pessoas todas em geral, e dessas coisas todas que, imagina, ainda hoje há quem ache que não se deve ensinar na escola.
Já adulto, descobri que dizer: “Sabes aquela tira da Mafalda em que ela…?” começa uma conversa de horas. Porque toda a gente se lembra de mais uma.
— Ah! E aquela em que a Susaninha está a dizer que o seu filho médico, o Filho-da-Dona-Susaninha, há-de ter uma ambulância Rolls Royce? E a Mafaldinha, farta, lhe responde: “Chega! É de mais!”. “Tens razão”, diz-lhe a Susaninha. “Para os doentes pobrezinhos, há-de ter outra mais ordinária”.
— E aquela em que é a véspera do primeiro dia de escola da Mafaldinha e ela vê a mãe muito preocupada e lhe vai dizer: “Não te preocupes, mãe. Eu quero ir para a escola, e depois para a Universidade e essas coisas todas, para no dia de amanhã não ser uma mulher medíocre e frustrada como tu”. E ainda se vai embora a pensar: “É tão bom reconfortar uma mãe!”.
Quino, o homem que mostrou que o mundo é uma balbúrdia que vale a pena
— E aquela em que o pai da Mafalda chega a casa e diz que tem um presente para ela, e ela grita: “É UMA TELEVISÃO? É UMA TELEVISÃO?”. E, no último quadradinho, o pai está no dia seguinte no escritório, a dizer: “Nunca um chocolate me soube tanto a fracasso”.
— E aquelas em que as conversas da Mafaldinha com o pai acabavam sempre com a mãe na farmácia a comprar um Nervocalm?
— E aquela em que a Liberdade pergunta ao pai da Mafalda se gosta de plantas, e ele lhe responde que sim, mas que tem pena de tê-las em vasos na varanda e de não ter um jardim, e ela lhe diz: “Eu perguntei-lhe se gostava de plantas, não lhe perguntei se gostava da sua vida”.
— E aquela em que o Manelinho deu caramelos aos amigos todos e no fim lhes apresenta a conta!
— E aquela em que a Mafalda está na rua e vê passar um operário, um homem de gravata, um padre e depois um gato e chega a casa e pergunta: “Mãe, os gatos que força política representam?”.
Com o tempo, fui percebendo que, tal como a cor preferida, ou o prato preferido, ou a estação do ano preferida, a tira preferida da Mafalda diz muito sobre uma pessoa. As pessoas que acham mais graça ao Filipe não são as mesmas que acham mais graça à Susaninha ou ao Manelinho, ou ao Gui. É como ser uma pessoa de cães ou uma pessoa de gatos. Se eu tivesse de te dizer qual é a minha tira preferida, acho que dizia que era aquela em que a Mafaldinha está a pintar na escola. E a professora, muito contente, está a dizer: “Acho que o guache descobre a personalidade de uma criança”. E a Mafaldinha, coberta de tinta, lhe responde, furiosa: “Eu diria que a cobre!”.
Desculpa estar a contar-te as tuas próprias piadas. Devia acontecer-te muitas vezes. Vou contar-te uma coisa: a mim também me acontece. Sabes, também faço tiras com umas piadas. As minhas piadas não são tão boas como as tuas, nem os meus desenhos tão bons como os teus, claro. Mas, e não te estou a dizer isto só porque te estou a escrever, ou só porque morreste, mas quem me ensinou a fazer tiras, a fazer piadas em três ou quatro quadradinhos, foste tu. Às vezes, quando olho para os meus desenhos, acho que vejo neles um bocadinho dos teus, e quando leio as minhas piadas, acho que leio nelas um bocadinho das tuas. Espero que não revires os olhos. Quer dizer, espero mesmo, que ias pregar um grande susto a toda a gente no teu enterro. Teve graça? Teve um bocadinho, não teve?
Gostava de te escrito mais cedo, quando ainda talvez tivesses lido a minha carta. Ou até de te ter conhecido. Nem devia ser assim tão difícil, a Argentina também não é do outro lado do mundo. Ou melhor, é, mas há aviões e assim. Já vou tarde.
Só falta então explicar porque é que te estou a escrever. Queria agradecer-te do fundo do coração por teres escrito a Mafaldinha. Por teres tanta graça. Por a tua graça ter sido o diapasão por que medi tantas vezes a graça dos outros. Por teres sido parte da cola que me ligou a pessoas tão importantes na minha.
O meu pai e eu não nos falamos muito. Hoje, o Nome de Guerra é um dos meus livros preferidos. Tenho uns quadros (falsos, claro) do Matisse e do Modigliani na parede em frente à secretária de onde te estou a escrever, não adoro particularmente o Manet nem o Monet e ainda não sei jogar gamão. Mas o meu pai vê as minhas tiras e ri-se.
“Às vezes, faz lembrar a Mafalda, só que mal desenhado”, já me disse.
Obrigado, Quino.
Até sempre,
Hugo van der Ding