Esteve para não entrar na RTP porque era “o mais feio” das provas de admissão, mas valeram-lhe as mãos habilidosas. Cresceu numa família da burguesia lisboeta e ficou gago quando nasceram as irmãs gémeas, Dadinha e Dadão. Aos 10 anos passou-lhe e aos 14 estreou-se na televisão, ao lado de João Lobo Antunes e Lídia Franco. Foi delegado de propaganda médica e andou pelo país a distribuir as primeiras pílulas anticoncepcionais, enquanto trabalhava na rádio e cumpria o serviço militar. Só não leu o comunicado do Movimento das Forças Armadas na noite de 24 para 25 de abril porque trocou de turno com Joaquim Furtado. A “Febre de Sábado de Manhã” fez dele uma estrela, a consagração chegou com o “Passeio dos Alegres”, onde lançou António Variações e muitos outros. Entrevistou Amália, comeu scones com Meryl Streep e comparou narizes com Dustin Hoffman. Há seis anos, passaram-no para a RTP Memória. Agora lança a autobiografia O programa segue dentro de momentos. Sem ajustes de contas.
Porque é que decidiu escrever agora a sua biografia, ao fim de mais de 50 anos de carreira?
As biografias só se devem escrever quando há alguns anos de carreira…
Mas como é que se escolhe o momento?
É resultado de algumas circunstâncias e empurrões. Tinha pensado escrever nos 50 anos de carreira. Passaram seis.
Como é que encaixou a escrita na sua vida?
Muito mal. Comecei a escrever há dois anos, com intervalos de meses, com grande sofrimento da minha parte porque o meu trabalho na RTP é diário. Não sou funcionário da RTP, mas nunca cá estou menos de sete horas, todos os dias.
Agora vemo-lo na RTP Memória.
Estou na RTP Memória onde sou autor e faz-tudo do “Inesquecível”. É um artesanato caseiro: a minha mulher faz a pesquisa de arquivo e eu tudo o resto. O programa é gravado de 15 em 15 dias, dois de cada vez.
E ainda tem o programa de fim-de-semana.
O “Traz Prá Frente” é um programa de memórias. Faço sempre o meu trabalhinho de casa que me demora algum tempo. Como os meus colegas do “Traz prá Frente” começaram a chamar-me Júlio Google porque eu sabia tudo, não quis desiludi-los.
A sua família pertencia à burguesia lisboeta dos anos quarenta. Quais são as suas primeiras memórias de infância?
Confundem-se com as descrições que a família fazia. Nasci na Avenida João Crisóstomo. Há dois anos, decidi ir bater à porta dessa casa. Vive lá uma arquiteta. É um prédio pequeno, com três andares, nas chamadas Avenidas Novas. A minha avó materna vivia num palacete na Andrade Corvo. Depois de viúva, resolveu ir viver para ali. A casa era enorme, pelo menos na minha perspetiva. Quando lá entrei de novo, não a achei tão grande. Mas tinha um corredor que nunca mais acabava.
Vivia muita gente nessa casa.
Era um arraial. Vivia a minha avó, que toda a gente conhecia por menina Chiquinha e era a matriarca da família, a minha tia-avó Babá, que se chamava Isaura de Lurdes. Havia a minha prima Mimi, que era Inês, filha da Babá. Nunca casou porque a Babá e a avó Chica não a deixavam namorar.
Há uma série de mulheres na sua vida.
Há também a minha mãe, que o meu pai foi buscar ao Conservatório. Tocava piano e falava Francês, provavelmente. Tinha 20 irmãos. Alguns morreram precocemente, mas lembro-me de ver uma fotografia com 12 ou 14 tios. O meu pai começou a namorar com a minha mãe e prometeu-lhe que iriam ter uma casinha, só que ele tinha um acordo com a minha avó paterna, que se tinha divorciado com 21 anos. Neste país, no início do século XX, uma menina divorciada… E o meu pai fez o compromisso de sangue de nunca se libertar dela. Ficámos todos na casa da minha avó [materna]. Mas havia mais! Havia a minha prima, uma tia espanhola que tinha sido casada com um irmão da minha avó, fotógrafo, que tinha emigrado para o Brasil.
Fotografava nus.
Foi nas fotografias dele que vi nus pela primeira vez. Refiro isso no livro de forma soft porque não quero fazer concorrência ao arquiteto Saraiva. O que vi foram umas matronas, muito Rembrandt, gordinhas, sem cuidados de depilação, com fundos com bosques, lagos…
No meio de tudo isto quais são, afinal, as suas primeiras memórias de infância?
Lembro-me perfeitamente de fazer um trajeto difícil da Avenida João Crisóstomo para uma rua perto de São Sebastião da Pedreira para ir sozinho para a escola. Tinha cinco anos. É talvez das imagens mais marcantes que tenho porque não me sentia só, nem abandonado. Primeiro, estive no Colégio Valsassina. Logo nos primeiros dias caiu-me um ábaco na cabeça.
Saiu de lá por causa disso?
Não. Ainda fiquei alguns meses. Mas o meu pai estava muito inclinado para que eu fosse para a escola que ele tinha frequentado. Quis que eu fosse parar a um colégio liderado por militares.
Mas ele não era um homem militarista…
Nem tinha feito tropa! Fui para o Instituto Nacional. Aprendi a ler, a escrever. Era muito bom aluno. A minha maior concorrência era um amigo judeu, o Simão Draiblate. No quadro de honra, normalmente o Simão era o primeiro e eu o segundo. Houve um dia em que fiquei em último. Cheguei em casa a chorar e disse: “Mamã, entrei no quadro da desonra.”
E ela?
Consolou-me. Não faziam força nenhuma para eu estudar. E eu também não faço para as minhas filhas estudarem. Acho que é uma desumanidade as pessoas saírem da escola e estarem agarradas a tudo menos a um bocadinho de divertimento.
Lembra-se do nascimento das suas irmãs?
As minhas irmãs nasceram em casa. Não estava nada à espera, sabia lá que eram duas…
Mas apercebeu-se de que a sua mãe estava grávida…
Sabia que ela estava grávida, mas tinha quatro anos. Não me lembro sequer de reparar que ela tinha uma barriga maior. E a minha mãe também não sabia que ia ter gémeas. Quando a parteira disse “Vem aí outro”, ela começou a chorar. Nasceram a 27 de maio. Nesse dia, estava um irmão da minha mãe lá em casa a fazer o trono de Santo António para mim, na marquise, e entrou uma empregada e disse: “Senhor Alfredo, vá lá dentro, se faz favor, mas o menino, não.” Fecharam-me na marquise, onde estive durante todo o tempo do parto. Depois o meu tio abriu a porta, soltou-me e eu fui pelo corredor fora. Quando vi as minhas duas irmãs, ao lado uma da outra, a minha mãe um bocadinho amarela, toda a gente a brindar, o móvel cheio de bolos e cálices, olhei e disse: “Mamã, manda-as embora.” E depois fiquei gago até aos 10 anos.
Como é que se chamam as suas irmãs?
Maria Eduarda e Maria da Conceição, mas são a Dadinha e a Dadão.
Teve uma educação muito austera?
Se for ao psicólogo, não vou dizer que tenho traumas de infância, pelo menos a este nível. Estou convencido de que fui muito bem educado. Por parte da minha avó, talvez tenha sido amestrado. Mas acho que me faltou carinho. A minha mãe era muito prática e o meu pai muito austero, cheio de segredos com ele próprio. Nasceu em 1911, tirou a quarta classe, fez o curso comercial, depois o curso do liceu em três anos, depois o curso de Filologia Clássica, e depois de Histórico-Filosóficas. Com esse manancial de conhecimentos, entrou para escriturário de uma companhia de seguros, onde esteve até morrer. Era um homem da oposição ao regime. Disse-me quando eu era miúdo: “Quando te perguntarem alguma coisa sobre política, dizes que não sabes nada”. Nunca me quis comprar a farda da Mocidade Portuguesa e eu chorava para a ter. Achava imensa graça a andar vestido de piolho verde, não gostava era de marchar. Eu sabia que não se podia falar, nem pensar em voz alta e que o meu pai comprava livros numa taberna perto de casa. Em 1975, vi a alegria dele quando foi votar nas Legislativas. Nesse domingo, a minha mãe, que era muito expansiva, perguntou: “Então, em quem é que votaste?” Ele: “O voto é secreto, não digo a ninguém. Só digo ao rapaz.” Chamou-me e disse ao ouvido. Não imaginava em quem teria votado aquele senhor austero que usava chapéu de abas duras e gravata. Tinha votado num partido de extrema esquerda.
Frequentou o Liceu Camões na mesma altura de alguns homens célebres: João Lobo Antunes, Ferreira do Amaral… Como era o ambiente?
A minha memória é uma desnatadeira, branqueia. Tenho uma ideia de felicidade, embora fosse proibido correr nos pátios.
Nos pátios? Não era só nos corredores?
Nos pátios! Saíamos para aqueles 10 minutos e era proibido de correr no pátio. Às vezes, dava dois passos para avançar, mas detinha-me. Via lá em cima nas galerias o reitor vestido com uma gabardine esverdeada e um molho de chaves na mão. Era obrigatório usar gravata a partir dos 10 anos.
Foi no Liceu que a RTP o descobriu.
O padre Ávila, que dirigia o Orfeão do Liceu, nalgumas saídas, tinha-me pedido para apresentar a canção seguinte. No Orfeão cantávamos eu, o João Lobo Antunes, o José Nuno Martins, o Ferreira do Amaral, o João David Nunes, muita gente conhecida. Quando [os produtores da RTP] foram lá fazer provas para apresentadores do Programa Juvenil, fui um dos escolhidos por indicação do próprio padre. “Vai o Júlio.” E eu fui. Correu bem. Passei na primeira eliminatória, fui à final e na final disseram que eu era o que tinha mais jeito, mas não entrava porque o visual não era grande coisa.
Disseram-lhe declaradamente que era feio.
Assim: “Tu não entras porque és o mais feio.” Havia outros feios, mas eu era o mais feio.
Pelo telefone ou cara a cara?
Cara a cara, nos olhos.
Já tinha pensado em si próprio como uma pessoa muito feia?
Sabia que havia outros colegas meus com quem as meninas gostavam mais de dançar. Tinha de jogar com outros trunfos.
Foi um adolescente namoradeiro?
Não, fui um adolescente que gostava de namorar. Eu namorava com elas, elas é que não namoravam comigo.
Como assim?
Namorava à distância. Era um soupirant.
Tudo platónico.
Exatamente.
Por falta de coragem?
Não queria ouvir um não.
Quando é que venceu esse medo?
Quando foram elas a dizer-me alguma coisa.
E eram as que queria ou sujeitou-se?
Às vezes eram soluções de emergência. Era preferível uma segunda escolha do que nada.
E afinal quando é que entrou para a RTP?
Foram buscar-me passado muito pouco tempo, na estreia do Programa Juvenil, onde eu fui cantar com o Orfeão do Liceu Camões. Nesse dia queriam começar uma rubrica de bricolagem.
Que o Júlio praticava desde miúdo por causa do aeromodelismo…
Eles precisavam de mim: a cara não ajudava, mas as mãos sim. Nesse dia, fiz dois em um: cantei de um lado e do outro fiz a primeira rubrica “Mãos à obra”.
Também lá estava a Lídia Franco.
Estavam a Lídia Franco e o João Lobo Antunes. O João tinha um concurso muito giro: o Papel e Lápis. No princípio do programa, fazia uma série de perguntas e, em casa, as pessoas, com papel e lápis, tomavam nota delas e respondiam. No fim, o João dava as respostas. Não havia sequer contacto.
Ele recebia muitas cartas de fãs.
Ele recebia essas, as minhas não eram de amor. Eram do género: como é que se faz um carro com tábuas de caixote? O João Lobo Antunes, olho azul, loirinho, recebia 99% das cartas de amor.
As suas irmãs um dia tiveram pena de si.
Após vários desabafos meus — “nunca tenho cartas de fãs” —, passado uns tempos comecei a receber. “Gostamos muito de si” e tal. Anos mais tarde, as minhas duas irmãs disseram-me que eram elas que escreviam as cartas.
Foi uma desilusão?
Não, não! Agradeci-lhes muito, até chorei! Fiquei comovido.
Quando começou tinha muito pouca roupa e pôs um anel da sua avó no prego para comprar um fato.
Quando me estreei, só as calças, a camisa e a gravata eram minhas. O casaco — um blazer azul escuro com botões amarelos — foi um primo meu que era rico que me emprestou. Os sapatos também, que os meus estavam rotos. A minha avó pôs-me no dedo o anel de família. Um dia, fui ao prego e pus lá o anel. Tínhamos de pagar o juro para mantermos as coisas. Eu não paguei. Aquilo foi por água abaixo. Comprei um corte de fato — três metros de fazenda — e fui ao senhor Cerdeira mandar fazer um fato à medida. Fui ao cinema várias vezes, cortei o cabelo na Pascoal de Melo e fiquei sem o dinheiro todo. Foram 200 escudos.
Como é que conheceu a mãe da sua filha mais velha?
Ela pertencia a uma banda rock do Liceu Francês, Les fanatiques, que tinham Les Girls. Ela era uma das Girls. O baterista era o Michel, o cozinheiro. Achei graça àquela suíça-alemã. Ia buscá-la ao Liceu Francês, passeávamos. Passado pouco tempo a minha futura sogra quis conhecer-me. Recebeu-me em casa e comecei a jantar lá às quintas-feiras, o dia dos restos de toda a semana. A minha sogra tinha vivido a guerra e sabia o que era ter falta de comida. A mesa enchia-se de tupperwares pequeninos para o jantar.
Casou-se pouco tempo depois?
Relativamente pouco. Tinha 22 anos, a Katy 19. A Inês nasceu passado um ano. Casámo-nos pelo registo, a nossa boda foi num sítio inusitado para a época (22 de janeiro de 1966). Havia um [único] restaurante chinês [em Lisboa]. A minha sogra, que era toda para a frentex, levou-me a jantar lá e disse: “É aqui que vamos fazer o copo d’água.” Agora imagine em famílias conservadoras: nunca tinham comido nada daquilo e tinham os mitos todos de que aquilo poderiam ser lagartixas, osgas, insetos. No fim da cerimónia, fomos a pé da Barata Salgueiro até ao São Jorge, ver o “From Russia with Love”. Não segunda-feira já estava a trabalhar. Casei-me três vezes, uma delas não oficialmente. Da última vez, há quase 20 anos, com a Sandra, também fui trabalhar na segunda-feira seguinte.
Foi trabalhar?
Eu realmente tenho desperdiçado imenso tempo com esta mania de trabalhar. Ninguém deve ter feito mais Natais a trabalhar do que eu. E Passagens do Ano também.
Quando o chamaram para a tropa, a sua vida profissional já corria…
Já era casado! Fiz o serviço militar com 23 anos. Trabalhava na CIBA, como delegado de propaganda médica.
Como é que lá foi parar?
Fui lá oferecer-me, precisava de ganhar dinheiro. Fiz um curso de farmacologia à pressa. Trabalhei um tempo com os estomatologistas do distrito de Lisboa. Antes tinha acompanhado médicos de outras especialidades porque a CIBA era especialista em hormonas.
Então esteve no grupo que andou a distribuir as primeiras pílulas pelo país.
Foi o grupo que inventou a Noraciclina, que era uma bomba.
Teve noção de que estava a fazer parte de uma revolução dos costumes?
Sim. Para já, a Igreja era contra. Para fugir ao conservadorismo, este medicamento apareceu com a designação de regulador do ciclo menstrual. Realmente, regulava, mas não era só isso.
No meio disto tudo ainda tentou escapar à tropa.
Não tentei escapar à tropa, pensava era: “Pode ser que a guerra acabe”. Estava na tropa, na CIBA, na rádio e ao fim-de-semana fazia locuções na televisão. E na rádio fazia “A noite é Nossa”, das 3h às 6h da manhã. Faço isso hoje de outra maneira, com a noção de que estou a aproximar-me do final da carreira e da vida, tentando garantir que uma menina com 14 e outra com 17 fiquem bem. Estou a trabalhar para o núcleo familiar. Naquela altura também, mas o vazio que deixava em casa era enorme. Ia jantar, dormia pouco e não me portava muito bem. As noites fascinavam-me. Começar o programa de rádio às 3h da manhã, dava direito a ir à discoteca pelo menos até às duas. E eu ia.
Mesmo depois de nascer a Inês.
Não a vi nascer porque estava de serviço. Saí às 7h da manhã dos noticiários e fui para casa dormir. A nossa empregada disse: “Senhor Júlio Isidro, já tem novidades”. Lá fui tomar um duche. Tenho feito tudo na minha vida sempre com um duche antes. Quando cheguei estava a Katy com o bebé no bercinho. Disse-me no seu bom português arranhado: “Na Suíça, as meninas vestem-se de azul e os meninos de cor-de-rosa”.
A emoção do nascimento dela foi diferente da que sentiu quando nasceram as mais novas?
Claro que sim. Quando as meninas nasceram, primeiro a Mariana e depois a Francisca, tive mais nervos do que com a primeira. Nessa altura, pensei: durante quanto tempo vou ser pai?
Esse medo diminuiu?
A gente habitua-se. Estou muito habituado a estar vivo, vamos ver durante quanto tempo mantenho este bom hábito.
Só não esteve de serviço para ler o comunicado do Movimento das Forças Armadas no 25 de Abril porque trocou de turno com o Joaquim Furtado.
Sim, mas nem um nem o outro planeou. Com um dia ou dois de antecedência, o Joaquim disse-me: “Estás marcado da 1h às 7h e eu das 19h às 1h. Queres trocar?” À 1h, depois de passar a pasta ao Joaquim, meti-me no carro e fui para o Porão da Nau laurear. Já estava divorciado nessa altura.
A sua mulher pôs-lhe as malas à porta, à filme.
À filme mesmo: pôs-me a mala na escada e mudou a fechadura. Fui para casa dos meus pais.
Então na madrugada do 25 de Abril foi ao Porão da Nau.
Fui para casa tardito, às 3h, 4h da manhã. O Porão ficava no Saldanha e eu morava na João Crisóstomo.
Não se notava nada na rua?
Nada. Às 5h ou 6h da manhã, a minha mãe bate à porta do meu quarto: “Júlio, há uma coisa estranha na tua rádio. Há uns comunicados”. “Mamã, deixe-me ouvir.” E realmente ouvi uns comunicados e música marcial. Percebi logo que era uma revolução e que as ruas em redor já estavam com tropas mobilizadas. Disse: “O melhor é fazer isto a pé”. Deixei ficar o meu MGB GT — o solteirão tinha um carro de dois lugares, é evidente. Saí da João Crisóstomo, subi a Marquês da Fronteira, atravessei o Parque Eduardo VII e entrei na Sampaio e Pina. Havia metralhadoras nos telhados. No estúdio do fundo, já estavam presos dois polícias. O 25 de Abril para mim significou sobretudo liberdade. Nunca disse tal e qual aquilo que pensava. O meu chefe nos noticiários do Rádio Clube Português era o Luís Filipe Costa e [antes da Revolução] escreveu-me um manual de seis páginas. As quatro primeiras eram sobre como se faziam noticiários, as duas últimas sobre como se fugia à censura.
Qual foi a coisas mais ousada que disse?
É difícil escolher uma. Fui mais incomodado nos programas do que nos noticiários. Uma vez fiz uma rubrica sobre o aniversário do Picasso, que não deixaram ir para o ar porque ele era comunista. Cortaram-me uma peça sobre o António Aleixo, porque o censor confundiu o António Aleixo com o Manuel Alegre. Estreei o “Je t’aime moi non plus”, do Serge Gainsgourg.
Mas essa música não era proibida?
Recebi a música e passei-a, tal como alguns colegas meus. E aquilo era “Je t’aime moi non plus”, ais e uis por ali fora. Passámos, mas nessa mesma tarde foi logo proibida.
Convivia mal com o Antigo Regime?
Tenho a lealdade de dizer que, ideologicamente, nada me motivou a agir na oposição. A oposição que eu fazia era sempre a favor dos valores da liberdade de informação e da cultura. Antes de ir para Londres da última vez, pensei: “Agora é mesmo para a guerra”. Então fui para Inglaterra. Tinha lá uma tia que se propôs a arranjar-me um emprego.
Como motorista.
Ela trabalhava para algumas vedetas. Uma delas era o Patrick McGoohan e outra era a Ava Gardner. Nunca cheguei a vê-la. Falei apenas com um senhor que estaria a fazer um casting para uma espécie de mordomo, motorista e fiquei por aí. Entretanto, deu-se o 16 de Março. Vim para Portugal e retomei os notíciários. Senti que havia uma desagregação do regime. De 16 de março a 25 de abril foi um saltinho.
Depois do 25 de Abril, na rádio, esteve mais dedicado à notícia. Era um bom jornalista?
Sou um bom jornalista. O meu tipo de trabalho foi sempre baseado em conceito jornalísticos. Antes de os americanos terem inventado o infotainment, que me desculpem, mas o que eu fazia no “Passeio dos Alegres” era infotainment.
Nessa altura, foi aos Estados Unidos, à Roménia…
Fiz a primeira transmissão de um discurso de um Presidente da República Portuguesa na Assembleia-Geral da ONU, Costa Gomes. Tive imensa dificuldade porque estava tão emocionado que a voz ficou um bocadinho embargada. Fui à Roménia em visita com Costa Gomes e fui cumprimentado por Ceausescu (eu e todos os outros). Na Sala Oval, nos Estados Unidos, o presidente também nos cumprimentou, tal como Kissinger.
Na Casa Branca teve um pequeno incidente por causa de uns esquilos.
Depois de sairmos da Sala Oval, fomos levados para uma sala para nos dizerem quais seriam as próximas atividades. Aquilo estava a ser um bocadinho aborrecido. Olhei para a porta de trás, havia árvores muito bonitas, um relvado e esquilos à solta. Só tinha visto esquilos nos filmes da Walt Disney, o Tico e o Teco. Vim cá fora e fiquei a ver. De repente aparecem-me três agentes do FBI ou da CIA a perguntar o que é que eu estava ali a fazer. “Vim ver os esquilos.” Lá fui lá para dentro, cheio de medo.
Como é que passou para o entretenimento puro e duro?
Quando se dá a nacionalização da rádio, perguntam-me se quero ficar na informação ou no entretenimento. Quis ficar no entretenimento. Não teria feitio para a informação adivinhando-se grandes lutas ideológicas e de interesses. Fui trabalhar para o canal 4 da RDP. Continuei a fazer o “Em Órbita”, fiz o “Quatro Crescente”, onde estreei o primeiro LP dos Trovante.
Daí transitou para os grandes programas de televisão.
Foi tudo um crescendo muito lento. Fiz programas juvenis, fui convidado para os infantis, fiz sketches de fantoches e os próprios fantoches, fiz vozes. Aliás, adorava fazer vozes em dobragens de desenhos animados e nunca ninguém me convidou. Depois fiz o “Juventude no Mundo”, li imensos documentários. Comecei a fazer o Circo do Billy Smarts, no dia de Natal e no dia de Ano Novo…
[Júlio Isidro no início do seu percurso na televisão]
Só depois é que fez o “Fungagá da Bicharada”?
Fiz o Fungagá, a convite da Maria Alberta Meneres e do António Torrado. A minha ideia era vedetizar um animal e atribuir-lhe uma função. Convidei o melhor de todos os tempos para fazer a música, o José Manuel Barata Moura. Fiz o “Arte & Manhas”: eu era o tio Julião, tinha quatro sobrinhos. Cantaram lá a Dina, o Jorge Palma, a Adelaide Ferreira…
A sua grande fama vem, no entanto, da rádio.
Quando se deu a privatização da rádio, surgiu a Comercial e o João David Nunes perguntou-me o que eu queria fazer. Quis ficar com o programa da manhã, das dez à uma, escrevi a proposta da “Grafonola Ideal”. Depois disse que tinha outra ideia: “Uma coisa chamada Febre de Sábado de Manhã”. O filme “Saturday Night Fever” tinha passado há uns tempos. Eu queria fazer rádio num palco, ao vivo. Comecei no Nimas com 180 pessoas, depois com 360 e quando já estava tudo ao colo dos outros começámos a fazer em pavilhões gimnodesportivos para 5000 de cada vez. Quando chegámos aos 50 000 em Alvalade, isso deu-me gozo.
Que artistas lançou no programa?
Quase todos: os UHF, o Carlos Paião, os Táxi… Entretanto comecei a fazer o “Passeio dos Alegres”, ao Domingo. O Adelino Gomes fez uma reportagem sobre a Febre no Estádio de Alvalade e puseram no Telejornal. A Maria Elisa telefonou-me: “Tenho aqui quatro horas e meia aos domingos para encher. Tens alguma ideia?”. Eu disse logo que tinha, mas não tinha. Podia fazer a economia de escala. As vedetas internacionais que vinham fazer rádio para milhares de pessoas, se ficassem mais um dia também faziam televisão. No segundo ou terceiro programa, a minha convidada foi a Amélia Rey Colaço, no “Passeio dos Alegres”, ela que se recusava a ser passada pela máquina. Entrevistei o Jô Soares, o realizador Arthur Duarte.
Foi na altura do Passeio dos Alegres que descobriu o António Variações?
Fui cortar o cabelo à Isabel Queiroz do Valle porque tinha acordo com a RTP, não se pagava. O cabeleireiro que me destinaram era um jovem com uma roupagem estranha. Passado um bocadinho ele disse-me: “Sabe, eu também escrevo umas cantigas e canto”. Uns dias depois, apanhou-me num restaurante, não sei se me seguiu. Eu estava a ler o Se7e, e ele tirou do bolso uma cassete. Nessa noite telefonei-lhe.
Que músicas eram?
O “Comprimido” e outro tema sobre o consumo de droga. Perguntei-lhe se queria ir ao “Passeio dos Alegres”. Nem lhe sugeri a rádio: ele tinha de ser visto. No domingo seguinte estava a estrear.
Conseguia conciliar gente nova com a Amália, por exemplo.
Houve vários artistas que, no pós-25 de Abril, por razões várias, estiveram fora das câmaras, dos microfones e dos gira-discos. Isto sempre me fez uma certa confusão porque eu também já estive fora e não gosto nada.
Sente falta da televisão quando não aparece?
Não sinto falta da televisão, sinto falta de trabalho. Isto é um ofício. A seguir ao 25 de Abril, a Amália entrou em silêncio. Passado uns tempos, levei-a a cantar uma canção do Carlos Paião, o “Senhor Extraterrestre”. Ela foi. Estava nervosa. No fim, disse-me: “Júlio, vou a todos os programas que quiser”, E foi a vários.
Nesse tempo, também por lá esteve Herman José.
O Herman estava num momento muito popular por causa de canções como o “Saca-rolhas” e o “Super Homem”. E foi lá cantar. Passado uma semana ou duas foi ter comigo: “Fui falar com a Maria Elisa para saber se podia ter uma colaboração no programa. Ela disse que tu é que sabias”. E eu disse: “Entras já quando tu quiseres. Tens alguma ideia?”. “Tenho a ideia de criar um cantor piroso chamado Tony Silva.” Desenvolvemos a ideia de inventar uma senhora que dizia poesia, a Dona Prudência; o Menino Nelito foi a meu pedido, vestido à marujo.
[Herman José no Passeio dos Alegres]
Porque é que decidiu ir para os Estados Unidos estudar?
A minha ida para a UCLA fazer a Masterclass de Produção e Realização de Cinema e Televisão aconteceu quando tive a perceção de que em casa de cegos, quem tem olho é rei. Durante três anos, gastei todo o meu dinheirinho e fiquei a viver lá três meses de cada vez.
Ficou num sítio com ótima vista.
Isso foi da primeira vez, mas cheguei a viver num condomínio de idosos, onde estive só uma semana porque era muito depressivo. A primeira casa ficava na colina onde está o dístico de Hollywood.
Esses cursos levaram-no a outro escalão da carreira?
Aprendi o valor da disciplina, do trabalho. Contratei numa Comedy House, por 200 dólares, uma atriz com cursos em todo o lado, tinha o Método, do Stanislavski. O meu exame final de cinema chamava-se The Audition. Escrevi o sketch de exame porque não tinha dinheiro para comprar um, mas contratei um copywriter. Foi pago com um almoço.
Ela acabou por nem querer receber…
Terminou o exame e disse que tinha os 200 dólares para lhe pagar. Ela não quis. “Não queres?” “No, this is Hollywood.” “O que é que isso quer dizer?” “Quer dizer que estive a trabalhar à frente de nove realizadores. Eles gostaram muito do trabalho, é bem provável que me contratem. A notoriedade foste tu que me ofereceste, muito obrigada.”
Ao longo da sua carreira entrevistou muitas celebridades internacionais. Quais foram as conversas mais memoráveis?
Guardo uma memória extraordinária da doçura e da inteligência da Meryl Streep, e dos scones que comemos a meio da entrevista; da entrevista única com um dos maiores atores do mundo, que é o Dustin Hoffman, que mediu o nariz encostando-o ao meu. É uma coisa de uma enorme ternura. Entrevistei o Woody Allen, que estava em crise com o escândalo da separação.
E uma vez deu boleia ao Elton John.
Isso foi muitos anos antes. Dei-lhe boleia [a caminho do primeiro festival de Vilar de Mouros]. Quando me viu a entrevistá-lo deve ter pensado que isto era o circo dos pobres.
Faltam-lhe algumas entrevistas?
Tenho uma admiração enorme por Obama, é impossível que aquele homem não seja o que é. Gostava de entrevistar o Papa, o Robert de Niro. Há muitos. Não me pergunte é porque é que deixei de fazer as entrevistas porque esta conversa é bem humorada.
A televisão portuguesa tem medo do envelhecimento dos apresentadores?
A televisão portuguesa é um reflexo do país português, que não trata bem os seus idosos.
Sentiu a passagem para a RTP Memória como uma despromoção?
Não me senti despromovido porque não há ninguém capaz de me despromover. A minha vida e o meu trabalho falam por mim. Que eu me tenha sentido na altura o Júlio Exílio, isso é outra coisa. Adaptei-me a essa circunstância, fui fazendo o melhor possível. Não sei se tenho alguns inimigos. Se tenho, é injusto. Que não me gramem, é uma coisa, agora inimigos… Independentemente disso, se eu conseguir atenuar tensões, tanto melhor. A inveja é um exercício nacional de que não gosto.
Sentiu-a muitas vezes ao longo da vida?
Há uma linha no livro em que digo: “Conheci muitos canalhas, que me fizeram muitas canalhices a sorrir, mas já escrevi de mais”. Ainda pensei tirar, mas deixei ficar para não pensarem que eu era totalmente estúpido e não dei por nada. Cheguei a encarar a hipótese de ter uma página com as iniciais das pessoas mais miseráveis que conheci.
Dava uma página?
Dava, mas com um corpo de letra grande.
E qual é a sua reação a essas pessoas? Pratica o cinismo laboral?
Não consigo. Nunca fiz a minha carreira com almoços, jantares, noitadas e abraços.
Mas corta relações com essa pessoas?
Ao nível dos sentimentos, sou um péssimo ator. Acho que as pessoas que me fizeram mal, se olharem para os meus olhos, sabem que eu gostaria que percebessem que eu sei. Não escondo. O afeto foi, sem dúvida nenhuma, o grande trunfo da minha vida. Faço da vida uma ação de sedução. Peço desculpa ao nosso Presidente da República, por quem tenho grande apreço, mas comecei o afeto antes dele.