O “simplex urbanístico” entrou em vigor esta segunda-feira, 4 de março, e o setor da promoção imobiliária diz que este pacote legislativo pode ser o início de uma “uma revolução” na construção habitacional em Portugal. O novo simplex quer modernizar a construção de casas – acabando, desde logo, com “exigências excessivas” como a obrigatoriedade de todas as casas terem uma banheira e um bidé. Mas a grande prioridade é acelerar o surgimento de nova oferta habitacional. Embora elogiada, a legislação não é isenta de riscos, já que em alguns aspetos vai-se privilegiar rapidez e a sacrificar segurança jurídica para promotores, arquitetos e, até, bancos.
Algumas das disposições definidas no decreto-lei nº10/2024 já entraram em vigor a 8 de janeiro, dia em que foi promulgada a lei que “procede à reforma e simplificação dos licenciamentos no âmbito do urbanismo, ordenamento do território e indústria”. Entre essas mudanças está o fim de um dos aspetos mais caricatos da legislação portuguesa sobre construção habitacional: a obrigatoriedade da existência de bidés em casas de banho. Além disso, passou a permitir-se que possa existir um duche em casas de banho, deixando de ser obrigatório haver pelo menos uma banheira.
A própria legislação reconhece estas exigências como “excessivas” e “desproporcionadas”. E Hugo Santos Ferreira, presidente da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII), diz que eram obrigatoriedades que “datavam dos anos 50” e “encareciam as casas”. Isto porque, diz o responsável ao Observador, tínhamos de ter casas de banho maiores para caber o bidé, um equipamento que caiu em desuso na sociedade portuguesa”.
Pior: “a obrigatoriedade de ter pelo menos uma casa de banho com banheira era outro facto que já não se percebia”, diz Hugo Santos Ferreira. “Hoje a maioria das pessoas tem preferência por casas de banho com base de duche”, diz o presidente da APPII. E “se pensarmos num T1 ou T0, que só têm uma casa de banho, obrigatoriamente essa casa de banho tinha de ter banheira. E isso não faz sentido: basta pensar no caso das pessoas mais idosas ou pessoas com mobilidade reduzida, para quem uma banheira é a pior opção“, acrescenta.
Se estas limitações mais insólitas já desapareceram a 8 de janeiro, o grosso da legislação que ficou conhecida como o “Simplex urbanístico” entrou em vigor nesta primeira segunda-feira de março. E, para o mesmo responsável, “é um importante passo na simplificação do processo administrativo, na luta contra a burocracia e acima de tudo muito importante para termos mais casas e casas mais baratas, que as pessoas possam pagar”, diz o presidente da APPII.
Quando se fala em “processo administrativo”, o que está em causa neste pacote legislativo é, sobretudo, o processo de licenciamento camarário dos projetos de construção – algo que há longos anos é apontado pelas empresas do setor como um enorme entrave a que se possa construir casas, incluindo casas para a classe média.
“Temos câmaras municipais onde se entrega um projeto de licenciamento e depois se fica três, quatro, cinco anos com o processo parado, com as casas presas no licenciamento, o que também é um fator de encarecimento porque ‘o tempo é dinheiro‘ e a escassez resultante faz com que as casas existentes [usadas] também se tornem mais caras porque são um bem raro, como um diamante”, afirma Hugo Santos Ferreira.
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Patrícia Barão, head of residential da promotora e mediadora JLL Portugal, diz que “a situação, como estava, não podia continuar“. A demora nos licenciamentos não é a única razão, e talvez não seja a mais importante, mas “indiscutivelmente é uma das razões para termos tido apenas 100 mil novos fogos a vir para o mercado nos últimos 10 anos” – o que compara com as mais de 700 mil novas casas colocadas no mercado na primeira década deste século.
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Adeus, alvarás de construção e licenças de utilização
Entre as 26 medidas deste “simplex urbanístico”, também conhecido por “simplex dos licenciamentos”, os especialistas destacam o facto de deixarem de ser obrigatórias as licenças urbanísticas para a construção ou reabilitação dos imóveis – os chamados alvarás de construção. A lógica, como o próprio decreto admite, é de, “numa lógica de licenciamento zero“, avançar com uma “contínua eliminação de licenças, autorizações e atos administrativos desnecessários”.
Ficam isentas de licenciamento, por exemplo, as obras que “aumentam o número de pisos” sem que a fachada do edifício se altere e, por outro lado, também deixa de ser necessário licença para construções “em área com operação de loteamento, plano de pormenor ou unidade de execução com desenho urbano”. Nestes casos, e em outros, passa a ser necessária apenas uma “comunicação prévia” à câmara e o alvará de licença de construção é substituído pelo simples recibo do pagamento das taxas devidas.
O ponto de partida aqui, diz Hugo Santos Ferreira, da APPII, é que “existe a regulamentação nacional mas, depois, cada câmara municipal tem o seu regulamento municipal”, para a construção. Portugal tem 308 municípios, pelo que tem 308 regulamentos municipais diferentes – em muitos casos, garante quem anda no terreno, com inúmeras incongruências em relação à regulamentação nacional. O “simplex urbanístico” tenta contrariar isso com vários exemplos da pouco convencional “legislação pela negativa”, proibindo expressamente algumas práticas que algumas câmaras têm e que vão contra a regulamentação nacional.
“Nas últimas décadas as câmaras foram incrementando de tal forma as exigências burocráticas que levaram a que o licenciamento pelas câmaras se tenha tornado um processo kafkiano, intrincado, com uma série de coisas desnecessárias” que o simplex vem, agora, tentar atenuar, diz Hugo Santos Ferreira. Um exemplo está relacionado com o pedido da licença de utilização: “num processo de pedido de licença de utilização, que surge no final do processo de licenciamento, o titular de um processo pede a emissão da licença de utilização. E em Lisboa, por exemplo, receber esse papel demorava um ano”.
Essa “licença de utilização”, que agora é eliminada (a par da chamada ficha técnica de habitação), “é meramente uma folha A4 onde se diz a morada, a inscrição na conservatória, a inscrição nas finanças e uma brevíssima descrição do imóvel”. Também na compra e venda de casas este documento deixa de ser essencial, o que está a levar a algumas críticas que estão a ser feitas à nova legislação (na prática, dizendo-se que sem este papel o consumidor fica mais desprotegido).
Mas Hugo Santos Ferreira considera que essa é uma “não-questão”. “Claro que a licença supostamente seria um garante da legalidade do edifício, mas vamos pensar nas marquises. As marquises são ilegais, normalmente, porque são uma alteração da fachada. Porém, quando se compra um apartamento não tem lá escrito que tem marquise, regra geral. Portanto estar-se a dizer que sem a licença de utilização o consumidor pode ser mais facilmente defraudado, por si só, não é verdade, porque na prática uma licença de utilização não é garante de que não há uma alteração estrutural não documentada na câmara municipal”, diz o presidente da APPII.
Claro que, “num mundo perfeito eu gostaria de ter licenças de utilização. Mas no mundo real, quando isso demora um ano a ser emitido, prefiro ter mais casas mais rapidamente e, por isso, mais baratas“, afirma Hugo Santos Ferreira. E mais: “antes de 1951 não havia licenças de utilização. Ou seja, quando compro uma casa anterior a 1951, reabilitada, não é obrigatório ter esse papel porque nessa altura ainda não havia licenças de utilização. E não temos notícia de haja muitos consumidores enganados, ao comprar casas anteriores a 1951, só porque não têm aquele papel que muito pouca gente sequer lê…”
Câmara calada? Consente
Outra “novidade boa”, na opinião de Patrícia Barão, é que se vai reforçar a importância do chamado “deferimento tácito” nos processos camarários. Em termos simples, se a câmara não dá, dentro do prazo previsto, uma resposta (positiva ou negativa) a um pedido de licenciamento, então a obra pode avançar. Hugo Santos Ferreira explica que “o que acontece hoje em dia é que existem prazos escritos na lei mas as câmaras não cumprem. Então, o legislador vem dizer que há um prazo que está na lei, se a câmara não responde então temos um deferimento tácito”.
Os prazos variam conforme o tipo e dimensão da obra em causa, mas caso este deferimento tácito seja mesmo cumprido, vai trazer uma grande mudança na construção em Portugal. Patrícia Barão admite que “poderá ser complicado para as câmaras, elas conseguirem adaptar-se a isto tudo, conseguirem dar resposta com os recursos humanos disponíveis”, mas é, “sem dúvida, um passo num sentido que está certíssimo”.
A mudança será tão paradigmática que, sem querer ser pessimista, Hugo Santos Ferreira quer esperar para ver como isto vai funcionar. “Como é que as câmaras vão encarar isto? Vamos ver até que ponto as câmaras vão considerar os deferimentos tácitos e se lhes vão dar seguimento”, diz o presidente da APPII. Um exemplo: “imaginemos um deferimento tácito, a câmara não me respondeu no prazo portanto eu apliquei o deferimento tácito. O ato seguinte pode ser a emissão das guias para as taxas… mas se eles não emitem, ficamos na mesma…”.
Perante tal situação, “posso sempre ir para tribunal, mas depois fico preso aos prazos da Justiça, que também não são rápidos”, acrescenta Hugo Santos Ferreira, usando este caso hipotético para mostrar “como o deferimento tácito, na prática, pode significar muito pouco“. E pode significar ainda menos se não se resolver “o problema de cultura que está instituída na nossa máquina administrativa, que é a cultura da dificuldade, da burocracia, também da corrupção, das capelinhas, do pequeno poder…”
“Enquanto houver um burocrata haverá sempre burocracia“, diz Hugo Santos Ferreira, lançando uma outra questão: “Qual é que vai ser a posição dos bancos quanto a isto”? Os bancos, que promovem o financiamento da construção, “também querem ter a certeza e que a obra não vai ser embargada”. E gera-se um risco porque “as câmaras passam a ter um prazo de 10 anos para ir fiscalizar se aquilo está bem construído”, diz o presidente da APPII.
Vamos supor que eu construo um prédio e que nove anos depois o vereador do urbanismo diz que quer ir fiscalizar – e vamos supor que até nem está bem construído. O que é que acontece? Já tenho o financiamento, o banco tem aquilo como garantia… Qual vai ser a postura de um banco face ao pedido de financiamento bancário de construção de um imóvel sem alvará?”, questiona Hugo Santos Ferreira.
É claro que o banco “vai ter de financiar, porque os bancos vivem de dar crédito. Mas vai tornar o financiamento mais difícil? Mais caro? Que documentos vão pedir?”, questiona. Neste contexto, o presidente da APPII admite que possa “surgir um novo tipo de empresas que vão fazer uma espécie de pré-verificação dos projetos”. Ou seja, empresas privadas, interessadas em serem o mais rápidas possível a fazer uma peritagem e uma pré-certificação independente” da obra, para que os bancos tenham uma maior segurança no momento de decidir avançar com o financiamento.
E quem diz pré-certificações independentes diz, também, seguros, admite Hugo Santos Ferreira. “No fundo, realmente o Simplex quer trazer mais casas e mais baratas, mas temos de ter noção de que estaremos aqui a criar novos tipos de custos”. “A questão é saber se o Simplex vai trazer mais casas ao mercado e de forma mais rápida e barata de forma a compensar estes possíveis custos adicionais”, remata.
Arquitetos estão “assustados”. “Imenso”
O simplex dos licenciamentos é uma primeira grande mudança num processo que, nos próximos anos, vai ter mais desenvolvimentos. Está nos programas eleitorais de vários partidos a necessidade de concluir o chamado “Código da Construção”, que quer harmonizar os quase 2.000 regulamentos que existem na legislação portuguesa e aos quais acrescem os regulamentos municipais que se tornaram cada vez mais complexos (e, por vezes, esquizofrénicos) nas últimas décadas.
Estando previsto que o atual regime das edificações urbanas expire em 2026, é nesse ano que se antecipa que a construção habitacional no País passe a estar regida por um código único e sistematizado, semelhante ao código penal ou ao código da estrada. Também até 2026 é provável que seja criada uma plataforma nacional digitalizada de processos de construção e licenciamento, em tudo semelhante ao papel que o Citius tem hoje nos tribunais.
Essas são mudanças que vão chegar ao setor nos próximos anos e que vão simplificar muito a vida de quem trabalha na promoção imobiliária e, em particular, quem trabalha nos projetos – desde logo, os engenheiros e os arquitetos. Porém, estes últimos estão, para já, mais preocupados com outra componente do pacote legislativo agora em vigor: a maior responsabilização destes técnicos nas obras, já que estas deixam de ter um “visto” (prévio) da câmara municipal. A “fiscalização sucessiva” vai ganhar primazia em relação à “fiscalização prévia”.
Miguel Saraiva, líder de um dos principais ateliês de arquitetura no País, a Saraiva + Associados, diz ao Observador que este é um “visto” que demora tempo, é certo, mas dá maior tranquilidade ao arquiteto porque sabe que a câmara, ao aprovar, chama a si o ónus de garantir que aquela obra respeita as regras. Caso chumbe, “também é mais barato fazer uma correção da obra na planta do que na pedra, com a obra já avançada”.
“Vamos ficar muito mais expostos ao erro, ao incumprimento. E isso está a assustar imenso a classe” dos arquitetos, diz Miguel Saraiva, salientando que “as câmaras fizeram muito pouca jurisprudência e nem sempre é fácil estabelecer padrões sobre aquilo que a câmara aprova ou não aprova, em situações semelhantes”. Ou seja, esta nova situação “torna a nossa abordagem muito pouco segura” porque quem fica com a responsabilidade passa a ser o arquiteto.
O arquiteto admite preocupação mas garante não estar “desmotivado” com o rumo que a lei está a tomar, em nome da resolução da crise habitacional. O que é certo, diz, é que “a responsabilidade [que o arquiteto tem de assumir] é totalmente desproporcional em relação até à sua própria remuneração” pelo trabalho que é feito. Uma hipótese admitida por Miguel Saraiva, na linha do que admitiu Hugo Santos Ferreira, é que também aqui sejam criados “seguros por erro urbanístico”, desenvolvidos pelas seguradoras. Mas, caso isso se confirme, também é “algo que inevitavelmente vai onerar os projetos”.