Ser pai, para o cantor, rapper, produtor musical e compositor Slow J, foi uma “catarse emocional”. Foi também um motor para aprender a reordenar hábitos de vida, horários do dia-a-dia, gestão de responsabilidades que de repente se impõem: “Estava habituado a estar 12 horas por dia no estúdio e do nada passo um mês em casa sem ir, depois começo a ir três horas aqui e ali…”, diz. Mas, além disso, foi também uma “desculpa perfeita”: se precisava de algum motivo mais prático para mudar por completo a vida que levava, ei-lo então chegado.
O que era preciso mudar? É o próprio que responde, em conversa telefónica com o Observador: “Parar de fazer concertos, parar de ‘mexer’ e fazer silêncio, voltar para dentro”. A reclusão deu-lhe paz, mas deu-nos também a nós, ouvintes, um dos discos mais espantosos deste ano, o recém-lançado You Are Forgiven.
Em 2017, Slow J já alimentara o burburinho dos ouvintes mais atentos do hip-hop. Já revelara um EP (mini-álbum), já dera um bom número concertos, já tivera participação importante num álbum do cantor e rapper NBC e já fora elogiado por outras referências suas da cultura e música hip-hop, como Carlão (Pacman) e Valete, que cresceu a ouvir. Nada, porém, o tinha preparado para o que aconteceria a seguir.
The Art of Slowing Down, o primeiro álbum completo lançado por João Batista Coelho (o nome de batismo), caiu como um cometa na música portuguesa. Como poucos álbuns de estreia, deixou de braço dado boa parte da imprensa e crítica musical, que lhe dedicou capas de suplementos culturais e elogios de devoção assolapada, com uma popularidade imensa. De repente, no Youtube, no Spotify, nas salas de concertos — a começar pelos Estúdios Time Out, onde apresentou pela primeira vez o álbum ao vivo, em março desse 2017 —, Slow J era omnipresente.
As visualizações dos seus singles-teledisco no Youtube somavam milhões de cliques. Os bilhetes para os concertos esgotavam. As comparações com aqueles que cresceu a ouvir sucediam-se. Estava lançado um fenómeno, que se confirmaria nacional em atuações como as que Slow J deu num Casino Lisboa à pinha (com muita gente a ficar de fora por não ter lugar), na Altice Arena (antigo Pavilhão Atlântico) durante o festival Super Bock Super Rock, no Hard Club em dois dias consecutivos e em salas, festivais e festividades de norte a sul, de Trás-os-Montes ao Alentejo, do Algarve a Coimbra e ao Minho.
[ouça o álbum “You Are Forgiven” na íntegra através do Spotify:]
“A minha vida mudou completamente”, assume ele volvidos mais dois anos, em conversa com o Observador. “Do nada, estou a fazer 40 datas pelo país fora, estás a ouvir o nome Slow J em todo o lado, apareço nos sítios todos”, acrescenta. Isso trouxe-lhe, obviamente, alguns benefícios: “Atingi a minha independência, fiquei à vontade financeiramente, pude ter uma casa, ter um filho, ter condições para gravar, essas coisas…”, exemplifica.
A popularidade, contudo, também trouxe dores de cabeça: “Foi complicado lidar com a atenção. Sou um bocado intro, [virado] para dentro e gosto muito do estúdio. Estar a dar muitos concertos de repente foi uma coisa que mexeu um bocado comigo”. A personalidade mais introvertida, “o desgaste emocional” e “outras experiências mais pessoais sobre as quais talvez um dia fale” fizeram-no embater de frente com a máquina profissional que criou com a equipa de colaboradores e amigos que montou em seu torno.
De súbito, a vida de estrada a que se impusera, por decisão tomada com a sua equipa e por interesse dos promotores de concertos e festivais, começou a fazê-lo indagar: seria mesmo isto que queria quando começou a pensar no seu primeiro disco? “De repente a vida que estás a ver por fora como sendo de sucesso, eu estou a ver de dentro como: não é isto que quero estar a fazer, quero é ir para estúdio. Quando entras em sofrimento e tens de estar no palco à sexta e ao sábado é uma experiência muito estranha. Tens muitas pessoas a olhar para ti a pensar: quem me dera ter a vida dele. E tu estás mesmo triste, não estás feliz”.
A oposição entre a impressão de sucesso e o sofrimento é, aliás, um dos grandes temas do álbum que Slow J começou a compor quando se fechou do mundo, apagou as fotografias do Instagram, parou de publicar nas redes sociais e travou a fundo no ritmo de concertos dados. Logo no primeiro tema de You Are Forgiven, uma canção chamada “Também Sonhar” gravada com a cantora e compositora Sara Tavares, ouve-se Slow J dizer “bem-vindo ao topo”. De seguida, pergunta: “Topo do quê? Topo de quem? Qual é o teu sonho?” — e termina com um conselho:
“Protege-o bem
para não esqueceres
ou a vida vai levá-lo
sem te aperceberes”
Mais à frente, no tema “Teu Eternamente”, Slow J fala de uma “família” que à primeira vista poderia ser entendida como a sua biológica (numa alusão ao nascimento do seu filho), mas que se for entendida como “família” de pessoas envolvidas no seu projeto musical também parece abordar o assunto. Eis o back to basics, a subversão da lógica de digressões extensas para músicos com notoriedade, plasmado no tema:
“Mas esquece o que as famílias deviam ser
e ‘bora ser como nós sonhamos
‘bora ser como éramos dantes
focados no que é importante (…)
Não quero falar com ninguém só quero ‘tar sozinho
fiz tanta estrada que esqueci o meu caminho”
No fundo, o distanciamento dos olhares públicos, que a paternidade impulsionaria sempre — mas não obrigatoriamente a este grau, com um silêncio absoluto nas redes sociais numa era em que não comunicar é quase proibido —, deveu-se à perceção de Slow J de que com a vida que levava até a atividade musical poderia ficar em risco, explica o próprio: “Como se diz no livro The 7 habits of Highly Effective People, se o teu sucesso público não se baseia em sucesso privado vai sempre desmoronar a certo ponto. Preferi parar antes dele desmoronar, preferi pôr-me tranquilo, a fazer as coisas que gosto, a focar-me nas coisas que acho realmente importantes e com os pés na terra. E só então construir a partir daí”.
Não será por acaso que o disco termina com um tema em que se repete, quase como um mantra, a expressão “voltar / a ouvir o silêncio”.
“Esta é p’ós dias de chuva
de duvidar da
minha motivação
qual era essa paixão?
(…)
Vou ter de voltar ao primeiro passo
são tantas câmaras o que é que eu faço?”
(“Só Queria Sorrir”)
Essa construção a partir de uma paz interna acrescida tornou-se pública sem aviso prévio. Na madrugada da passada sexta-feira para sábado, 20 para 21 de setembro, Slow J voltava às redes sociais para avisar que tinha acabado de disponibilizar um novo disco em plataformas digitais como o Youtube e o Spotify. Intitulado You Are Forgiven, com nove temas, oito dos quais inéditos (“Teu Eternamente”, a quinta faixa, já tinha chegado ao Youtube há meses, mas com alguma discrição, sem vídeo nem pompa de single), é um álbum surpreendente não apenas por ter chegado sem anúncio. É também inesperado pela toada íntima.
Recheado de confissões e reflexões interiores do início ao fim, este é um álbum que reflete o momento que Slow J viveu: virado para dentro, de auto-análise minuciosa, mas em que o que impressiona mais é o talento na escrita coexistir com a diversidade na coesão musical. Se o anterior The Art of Slowing Down era uma entrada a pés juntos que disparava com eficiência em várias direções — dança mulata com “Mun’Dança” e “Casa”, doçura com “Serenata” e com o interlúdio “Beijos”, força (em alguns momentos, agressividade) com “Pagar as Contas”, “Sonhei para Dentro” e “Último Empregado”, lição de escrita rap com “Comida” e declaração de intenções artísticas em “Arte” (arte ou ar de duro?) —, You Are Forgiven é outra coisa. É altura de preterir alguma expansividade por reclusão, de abdicar do rap mais tradicional (que no anterior surgia muito a espaços) em detrimento do canto, mais aprimorado, muitas vezes tão robotizado por efeitos de voz quanto humano nas letras.
A casa de Slow J não para de crescer. O rescaldo de uma consagração no Super Bock Super Rock
Os temas sucedem-se e as surpresas vão aparecendo, sempre com potencial para maravilhar o ouvinte. Há a voz de Sara Tavares e a batida ritmada mas planante de “Também Sonhar”, a afro-comunhão B.Leza pé-na-tradição-pé-na-modernidade de “FAM”, o tom baladeiro digital com hip-hop à mistura de “Onde É Que Estás?”. Há a guitarra e a voz feminina que se ouvem em “Lágrimas”, a letargia R&B eletrónica de “Teu Eternamente”, a percussão e o efeito de voz em “Só Queria Sorrir” (que fazem o refrão parecer cantado pelas muitas vozes que Slow J simboliza). E há os graves trapizados e o flow rápido (mas sui generis por causa da letra) de “Mea Culpa”, os disparos rap sobre uma cama instrumental nada óbvia, que não é boom-bap nem trap mas cançonetista, em “Muros”; e a melancolia que acompanha os magníficos versos de Slow J no “Silêncio” final que encerra o disco.
Este segundo álbum de Slow J é um disco curto, com apenas cerca de 30 minutos, mas é também por isso maior o seu mérito, com surpresas a cada nota musical e a cada utilização criativa da voz em canções que vão estabecelendo “pontes” entre si. Talvez seja essa coesão a justificar que o álbum tenha surgido sem singles de antecipação ou canções destacadas com recurso a vídeo. O plano, contudo, não estava definido desde início, como explica Slow J: “O álbum dita sempre o que vai acontecer, não tenho assim tanto controlo sobre isso, vai-se fazendo a ele próprio. Limito-me depois a tentar compreendê-lo. Tento perceber o que saiu da nossa criação e qual é a forma mais equilibrar de passar o que saiu às pessoas”.
[“Só Queria Sorrir:”]
Desta vez, houve uma vontade firme em “nunca pôr a carroça à frente dos bois” e decidir a forma de lançar You Are Forgiven “só depois do disco estar totalmente completo”, explica o seu principal autor. Se a decisão passou por editá-lo digitalmente sem anúncio prévio, a vontade de surpreender é assumida por Slow J: “No anterior tinha quatro ou cinco sons já lançados antes do disco sair. Eram poucas as pessoas que me conheciam antes de o lançar, comparadas às que vieram a conhecer depois, mas para quem me conhecia acho que a experiência de ouvir o álbum ficou um bocado conspurcada por já terem ouvido tanta coisa em antecipação. É como ir ver um filme e o trailer já ter spoilers com as cenas mais importantes. Queria que este segundo filme fosse tão novo quanto possível”.
O álbum reúne alguns colaboradores regulares de Slow J, como os produtores musicais Fumaxa, Lhast e Charlie Beats, o músico Francis Dale (membro da banda com que Slow J se apresenta ao vivo), o cantor e rapper Gson (a sua inconfundível voz ouve-se no tema “FAM”), os cantores Richie Campbell e Papillon (também rapper) e DJ Ride. Outros músicos como Bernardo Cruz, Nuno Cacho e Rubik estiveram também incluídos na conceção do álbum. Uma novidade nas colaborações de Slow J é a cantora Sara Tavares, que esteve quase a entrar no primeiro álbum a solo de Papillon (com produção musical executiva de Slow J) e que foi convidada também porque “tem uma vibe bué leve, bué boa no estúdio. Também é uma vibe feminina, não tenho trabalhado com raparigas e é uma energia diferente. Demo-nos muito bem desde a primeira vez que nos conhecemos e foi muito natural”.
O rapper e cantor português faz, contudo, uma revelação sobre o processo de composição do álbum que indicia que poderiam ter sido muitas mais as participações: “Há pessoas que me entusiasmam naturalmente. Depois o que acontece na prática não consigo dizer, varia. A quantidade de músicos que passaram no estúdio e a quantidade de artistas que foram possibilidades para entrar… mas acho que também faz parte de uma boa relação entre músicos não forçarmos as coisas, por mais que pudesse vender mais ou menos [ter uma colaboração com determinado artista], acho que faz parte ter liberdade de estar no estúdio tranquilo e poder partilhar uma experiência normal entre pessoas. Se resultar em música perfeito, se não resultar perfeito na mesma”.
Além de ter imposto novos horários e de lhe ter dado a motivação final para voltar ao “laboratório” do estúdio mais regularmente, deixando os concertos em standby, a nova condição de pai de Slow J motivou obviamente reflexões que também estão transpostas no disco. A prova mais clara é que o primeiro verso do cantor, rapper e produtor musical neste disco é “ser pai de família mas também sonhar / exemplo é tudo o que tenho para dar”.
[“Também Sonhar”:]
De certo modo, o equilíbrio entre responsabilidades diárias fora da música e a necessidade de ter tempo para imaginar e sonhar novos sons e novas letras é algo que João Batista Coelho ainda não tinha experimentado — e essa procura de “equilíbrio” surge refletida numa canção na qual canta sobre “muita gente acabar por sentir que tem de desistir dos seus sonhos” quando forma família. “Não posso falhar com as minhas responsabilidades em relação à minha família. Mas se parar de sonhar que exemplo é que vou estar a passar ao meu filho?”, pergunta-se.
Com o sucesso e com a estabilidade familiar, vem também uma tentação para arrisar menos, admite Slow J. “Com o sucesso que atingi, senti que o mundo à minha volta estava a dizer-me para ser só aquilo. ‘Se fizeres só isto, consegues fazer X concertos por ano, que te pagam a renda, põem-te a comida na mesa. Devias fazer só isto, não estragues o que tens feito’. Acho que é uma narrativa com que uma pessoa se depara sempre que sobe um degrau — e agora?” A resposta está, como habitual nos versos do novo disco, desde logo quando Slow J dispara:
“Minha fome quis ver-me parar de sonhar,
confundindo o que que queria alcançar.
Sucesso está a querer convencer-me que antes eu sonhava alto de mais.
Desculpa, tive de dar um passo atrás,
lembrar-me do que sou capaz,
tive de afastar-me primeiro para amar o que tenho
e não me conformar”
(“Também Sonhar”)
Se parece, pelo desenrolar do texto, que aquilo que Slow J tem vivido e pensado está traduzido nos versos, não é propriamente um acaso. No tema “FAM”, em que conta com versos de Papillon e canto de Gson, além de dizer que “nunca quis a fama”, Slow J profere frases como “Se a m**** é real, é tudo para mim / esse blá blá não funciona aqui” e “Deixa só contar tudo o que vi”. Foi a forma que encontrou de explicar o que mais lhe interessa escrever quando se senta com o caderno e a caneta:
“A diversidade é importante e temos músicos completamente diferentes de mim que são incríveis à sua maneira. Mas para mim, o que me é útil é deitar cá para fora as coisas que não consigo deitar de outra maneira. É como quem vai correr todos os dias e precisa de ir, como quem vai ao ginásio e sabe que se não for, não vai estar bem. Eu tenho a música”.
As canções, assim, interessam mais a Slow J quando são uma terapia mas também uma forma de aproximação entre músico e ouvinte, uma conversa em que quem ouve pode identificar-se com a vulnerabilidade que quem canta expõe no que diz: “É como quando tens uma conversa muito pessoal com alguém”, exemplifica, concluindo de seguida: “Sempre que uma pessoa te mostra o que está dentro dela”, sem armaduras nem defesas erguidas, “há algo que tu identificas na tua vida de que se calhar não foste capaz de falar até ali. Mas compreendes e identificas-te. É um momento libertador e inspirador”.
“Johnny boy onde é que estás agora?
Tu só querias ser feliz.
Tanta coisa que tu tens agora,
diz ao mundo se estás triste,
deixa o mundo saber disso.
(…)
Voltei para onde aprendi
que até o que é perfeito pode ainda não funcionar
e agora é tão claro que era só eu ver:
era eu próprio quem eu tinha de encontrar.”
(“Onde É Que Estás?”)