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É a segunda vez que o marido está preso. Ambas por tráfico de droga. Da primeira, Elisa (nome fictício) não perdia uma oportunidade: ia à visita íntima uma vez por mês — o máximo a que qualquer recluso tem direito. “Faz falta a um casal”, justifica, em conversa com o Observador. Estava nervosa na primeira visita deste género — “claro” que estava, disse, arrastando a palavra — e sentia-se mais inibida: “É diferente. É um bocado complicado, mas depois, com o tempo e também devido a estar com ele, esquecemos isso. Acabamos por nos esquecer que está um guarda do outro lado da porta”.
O marido tinha sido condenado a cinco anos, mas saiu ao fim de dois anos e sete meses “por bom comportamento”. Agora, está em prisão preventiva há sensivelmente um ano: foi detido em plena pandemia e numa altura em que as visitas de todo o tipo já estavam suspensas, como medida para travar a propagação da Covid-19. Por isso, Elisa ainda não voltou a ter nenhuma visita conjugal. “Estou há um ano sem ter relações sexuais com o meu marido”, lamenta, revoltada.
Poucos dias depois de Elisa ter falado com o Observador, as visitas íntimas voltaram a ser permitidas. A decisão de as retomar foi tomada há pouco mais de um mês, a 7 de abril deste ano — mais de dois meses depois do alívio da maioria das restrições em todo o país. É, no entanto, necessário que os visitantes apresentem certificado de vacinação atualizado ou certificado de recuperação válido simultaneamente com um teste à Covid-19 negativo. Se é verdade que a pandemia foi um problema para este regime, também é verdade que outros problemas já vinham do passado. Desde logo, o facto de apenas metade das prisões terem quartos para visitas íntimas, mesmo passados mais de 12 anos da publicação da lei que as regulamentou. “Por que é que este regime ia funcionar se nada nas prisões funciona?“, ironiza Vítor Ilharco, secretário-geral da Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR), em entrevista ao Observador.
Apesar das queixas — visitas que acontecem todas à mesma hora em quartos sem isolamento sonoro ou uma cadeia inteira que fica a saber quem vai a estes encontros —, as visitas íntimas são um “escape” à prisão. Além disso, funcionam como uma motivação para o bom comportamento, uma vez que ao mínimo deslize é retirada aos reclusos esta concessão: “Se fizesse alguma coisa, a consequência era ser-me retirado esse privilégio.”
Algumas das medidas restritivas nas prisões vão ser aliviadas
“A guarda que me despiu depois vai cruzar-se comigo à porta.” Revista por desnudamento “é uma humilhação”
Sabe pelo marido o dia e a hora que o diretor da prisão marcou para a visita íntima. Na data combinada, dirige-se até ao edifício, levando consigo lençóis, toalhas e produtos de higiene para tomar banho — sabe que faz parte das regras: o estabelecimento prisional apenas fornece roupa de cama caso ambos os membros do casal estejam presos. Em todos os casos, dá preservativos e produtos de limpeza para o recluso poder limpar o quarto, no final da visita. “Chego lá, revistam-me e levam-me até ele”, resume Elisa ao Observador, acrescentando: “Normalmente, não nos despem, só se suspeitarem de que levamos alguma coisa“. A ela, garante, “nunca” lhe aconteceu.
Já o mesmo não pode dizer o marido — nem qualquer outro recluso ou reclusa. Não que haja qualquer suspeita em relação a ele, mas a lei assim o impõe: “Antes e após a realização da visita, o recluso é obrigatoriamente submetido a revista por desnudamento“. É um dos grande entraves para aderir a este regime e uma das principais críticas apontadas pelas 40 reclusas alvo de um estudo de 2019 realizado por Rita Pinto, mestre em psicologia de justiça, pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. “Ao virmos para dentro [depois da visita], até concordo, visto que tivemos contacto com a pessoa que veio de fora. Mas, antes de irmos, nós estamos a sair da ala! O que é que a gente está a levar para a visita íntima para nos obrigarem a tirar a roupa, fazer agachamentos?“, lê-se numa das respostas dadas nas entrevistas para o estudo.
Esta revista é encarada como um aspeto negativo, quer pelo grupo de 20 reclusas entrevistadas que fazem visitas íntimas quer pelas restantes 20 que, não estando inscritas neste regime, se tentam colocar no papel das que estão. “Eu ouço-as dizer que se sentem extremamente constrangidas na revista e eu acho que também me sentiria. É uma humilhação“, respondeu ainda outra. “No entender de ambos os grupos, é visto como humilhação. Em algumas reclusas que optaram por não ter visita íntima, era esta a razão apontada. Aquelas que tinham visita íntima, embora tivessem porque achavam que os prós eram superiores aos contras, assumiam que se sentiam muito desconfortáveis”, diz a psicóloga Rita Pinto ao Observador, recordando uma das respostas que ouviu: “A guarda que me despiu depois vai cruzar-se comigo à porta.”
“São sempre as mesmas guardas aqui na ala e lá. Já não consigo olhar para a guarda, porque sei que ela já me viu toda nua”, disse ainda outra das reclusas inscrita no regime de visitas íntimas, entrevistada para o estudo, acrescentando: “Não sei porque é que temos que fazer o strip à ida e à vinda. Se ao menos elas depois saíssem e nos deixassem vestir outra vez a roupa sozinhas…mas ficam ali especadas a olhar. Eu fico tão nervosa que parece que nem sei apertar o soutien“.
Visitas são “escape” à prisão. “Não parece ser uma cadeia. Sinceramente, ali não parece”
Depois de entrarem nos quartos, estes constrangimentos ficam do lado de fora da porta. Uma grande parte esquece até o facto de os guardas prisionais estarem, literalmente, do outro lado da porta. A verdade é que as visitas íntimas são um “escape” à prisão — outro dos argumentos apresentados pelas reclusas para justificar o porquê de aderirem às visitas íntimas. “Desde logo, o próprio quarto era muito semelhante a qualquer quarto que possamos ter nas nossas casas e, portanto, muito diferente dos restantes espaços na prisão“, refere a psicóloga Rita Pinto.
São quartos simples, mas o suficiente para se diferenciarem das celas da prisão. “São quartos normais com a estrutura possível”, conta ao Observador um guarda prisional que esteve responsável pela área dos quartos para visitas íntimas numa prisão da Área Metropolitana de Lisboa. Uma cama, duas mesas de cabeceira, uma mesa, duas cadeiras, uma colcha, um tapete, uma casa de banho e pouco mais. Ainda assim, “não parece ser uma cadeia. Sinceramente, ali não parece”, segundo uma das reclusas entrevistadas.
Mais do que a aparência do quarto que dá a sensação de escape, é a forma como passam as três horas que lá estão dentro que mais importa — três horas que também passam fora dos restantes espaços da prisão. “As reclusas referiram o afastamento do filho como uma dor de prisão muito forte e mencionavam que grande parte dessas três horas da visita era usada para falar sobre os filhos, o que também acabava por acalmar uma certa angústia que elas têm”, explica a psicóloga. “Conversamos sobre tudo, sobre como é que passamos o mês. Se tivermos discutido por algo, vamos esclarecer aquilo. Falamos sobre a nossa filha, depois falamos sobre como é que estamos, como é que não estamos, damos carinho, damos miminhos e então depois aí também temos relações sexuais”, mencionou uma entrevistada.
A gratificação sexual da visita era muito deixada para segundo plano, de acordo com as conclusões do estudo. “A gratificação efetiva sobrepunha-se”, refere a psicóloga Rita Pinto. “Eu se calhar dou mais valor a estar meia hora abraçada a ele e estar a conversar com ele, do que estar a ter relações sexuais”, lê-se na resposta de uma delas. Algumas entrevistadas referiram que nem sequer tinham relações sexuais durante essas três horas.
Não é o caso de Elisa e do marido, que deixam a conversa para as visitas semanais. “Na visita normal já falamos e metemos a conversa em dia”, contou ao Observador. “Mas na visita íntima também conversamos. Posso dizer que estamos juntos [sexualmente] e acabamos por falar de alguma coisa. É diferente: estamos mais à vontade”, acrescentou.
Visitas acontecem todas à mesma hora. “O guarda resguarda-se. Não ficamos ali. Uma pessoa vem até cá fora fumar um cigarro”
Nem sempre é fácil esquecer a realidade que está do lado de fora. “Eu acho que ninguém se sente à vontade ali. É uma cadeia! Acho que devia de ser uma coisa mais reservada”, comentou uma das reclusas entrevistadas. Uma delas refere mesmo que não consegue ignorar que “as guardas estão ali, a andar para trás e para a frente”.
Abstrair-se do contexto é ainda mais difícil quando as condições do local não o permitem. “O sítio onde estive tinha três quartos contínuos, e não estamos a falar de paredes de 30 centímetros. São as paredes possíveis e o recluso de uma ponta ouve o da outra. Especialmente porque as visitas acontecem ao mesmo tempo: séries de três de manhã e três à tarde, se não, não dá vazão. Está sempre tudo ocupado”, conta ao Observador o guarda prisional. Em 2019, realizaram-se 7.165 visitas conjugais, das quais 914 dizem respeito a reclusos de prisões sem quartos para visitas íntimas e que tiveram de se deslocar a uma que tenha as condições necessárias. As mais de sete mil visitas realizadas em 2019 são mais do que as realizadas no ano anterior, mas bem menos que aquelas que aconteceram em 2020: devido à pandemia, só chegaram a concretizar-se 1.525.
Os guardas que estão designados para aquela zona também não conseguem ignorar o que se passa da porta para dentro. “O guarda resguarda-se. Não ficamos ali. Podemos ter uma secretária a dois ou três metros dos quartos, mas uma pessoa vem até cá fora fumar um cigarro”, refere um guarda prisional ao Observador.
No decurso do estudo, algumas das reclusas entrevistadas referiram a importância de haver algum som no quarto, fosse através de uma televisão ou de rádio, quer “para que o espaço ficasse mais acolhedor” quer para minimizar “o impacto do ruído vindo do exterior”, lê-se. “Ouve-se gente à volta ou máquinas a trabalhar”, referiu uma reclusa. O ruído impede que aquele espaço seja um escape à prisão precisamente porque lhes lembra que estão presas.
Visitas íntimas não passam despercebidas a ninguém e quem as faz é alvo de “comentários jocosos”
O barulho que entra nos quartos é “sentido como uma invasão do espaço físico onde decorre a visita íntima”, indica o estudo. Especialmente quando a falta de isolamento do som se torna objeto de “comentários jocosos” entre a população reclusa. Os reclusos tentam “passar a imagem de másculo”, explica ao Observador o guarda prisional responsável pela área dos quartos para visitas íntimas. O marido de Elisa, garante ela própria, “não admite” este tipo de comentários. “Ele não quer saber da vida dos outros, por isso não quer que ninguém se foque na dele”, afirma ao Observador.
Mas estes comentários acontecem frequentemente e de “várias maneiras”. “Muitas vezes, ouvia-os depois da visita a conversarem uns com os outros e a dizer: ‘Está calado, que do teu quarto nem se ouvia barulho’ ou ‘Estiveste lá a ler livros'”, exemplifica o guarda. As cadeias femininas não são exceção. “‘Já vem com andar novo’ foi um comentário que a grande maioria das reclusas entrevistadas mencionou”, indica a autora do estudo ao Observador.
A forma pouco discreta como a ida às visitas íntimas é feita contribui para este tipo de comentários. “De uma maneira ou outra, os reclusos acabam por saber quem vai e acabam por partilhar”, comenta com o Observador um guarda prisional de uma prisão no norte do país. Mas há cadeias onde, pela forma como estão construídas, é impossível resguardar quem vai à visita. “Há estabelecimentos em que a entrada das pessoas que vão à visita normal e das pessoas que vão à visita íntima é comum, especialmente nas casas mais pequenas”, conta outro guarda, acrescentando: “Há sempre os trabalhadores da limpeza que andam por ali, os reclusos faxinas, e toda a gente vê os visitantes que chegam e aqueles que trazem lençóis num saco. Vai à cadeia e não vai à visita no parlatório, toda a gente sabe o que ele ou ela vai fazer.”
O guarda, que já trabalhou numa cadeia feminina, afirma que, ali, este tipo de comentários “é pior ainda”. “Já presenciei alguns: ‘Fazia-te era já aqui e já nem ias à visita’. Têm outro à vontade, objetivam mais aquilo que pretendem”, justifica, comparando: “Os homens são mais reservados porque aquilo dá logo porrada. Se o recluso sabe que o outro mandou uma boca à mulher dele, dá logo pancadaria.”
A exposição duplica nos casos em que os dois membros do casal estão presos — é uma situação prevista pela lei: um dos membros do casal é levado em carrinhas da guarda prisional ao estabelecimento onde está o outro. “Nestes casos, há logo bocas à entrada porque toda a gente sabe que vai haver visita íntima naquele dia. Costumam usar uma expressão que é: ‘Lá vão os bois às vacas’. Isto é feito de uma forma que não tem dignidade nenhuma“, comenta o guarda anteriormente responsável pela zona dos quartos para este regime.
Quando não há quartos íntimos, presos são levados a outras cadeias. “Fazem-se leis sabendo-se que são inexequíveis”
Além dos casos em que os dois membros do casal estão presos, há ainda aqueles em que o recluso ou reclusa está numa prisão sem quartos para visitas íntimas. E não são casos excecionais tendo em conta que atualmente, mais de uma década depois da aprovação da lei, apenas metade das cadeias em todo o país tem quartos para este regime. E sensivelmente metade desses quartos (43 num total de 87) só foi construído depois de 2017 — portanto, oito anos depois de aprovada a lei que define as regras para este regime.
O facto de ter de se transportar reclusos para cadeias com quartos íntimos para realizarem a visita é uma das “dificuldades criadas para diminuir o número de reclusos abrangidos por uma lei que em princípio seria para todos”, no entender de Vítor Ilharco, secretário-geral da APAR. “Todos os reclusos com uma relação com alguém que está no exterior têm direito a ter visitas íntimas. Só que sabem de antemão que, das 49 cadeias, a imensa maioria não tem possibilidades de ter sítios para visitas íntimas. Torna-se impossível”, afirma ao Observador.
E prossegue: o facto de os reclusos que tiveram uma saída precária há menos de seis meses não poderem usufruir de visitas íntimas. “Quando um recluso já está em condições de ir a casa, não pode ter visitas íntimas. Mas o recluso que não tenha o comportamento que lhe dá direito a saídas precárias pode ter uma visita íntima“, critica o secretário-geral, acrescentando: “Com a intenção de mostrar ao mundo que Portugal é um país tão evoluído como os restantes países da Europa democrática, fazem-se leis modernas, algumas até mais avançadas do que nos países evoluídos, mas sabendo-se de antemão que aquelas leis são inexequíveis, dadas as condições dos Estabelecimentos Prisionais”.
Quartos para visitas íntimas em 18 das 49 prisões portuguesas
Em Portugal, as visitas foram concedidas a casais heterossexuais a partir de 1999, de forma mais alargada — a prisão do Funchal foi a primeira a ter quartos para visitas íntimas, um ano antes —, sendo que até 2010 não existiam quartos nas prisões femininas: as reclusas só podiam ter estas visitas se os seus companheiros também se encontrassem presos. Em 2009, com a publicação da Lei n.º 115/2009, as visitas íntimas passaram a estar regulamentadas e também os casais do mesmo sexo começaram a poder usufruir deste regime — o que, para um guarda prisional que falou com o Observador, não passa de uma ideia no papel: “Na sociedade em geral, há mais abertura. Dentro da prisão, não. É tabu! Os reclusos homossexuais como é que fazem? É um grande grau de exposição. Está a admitir perante os outros reclusos: e, dentro de uma prisão, é muito complicado.”
“Eu penso duas vezes antes de fazer alguma coisa”. Reclusos ficam sem visitas íntimas se tiverem mau comportamento
“Houve alguma resistência [às visitas íntimas] no início”, admite um guarda prisional ao Observador, para depois acrescentar: “Com o tempo, verificou-se que foi bom para toda a gente.” Mesmo entre os reclusos, “no princípio era tudo muito estranho”. Em 2020, houve 813 reclusos a beneficiar deste regime — um número excecionalmente baixo devido à pandemia e que no ano anterior se situou nos 6.251. Isto significa que, em 2020, houve uma média de 1,88 visitas por recluso e, no ano anterior, mais de cinco visitas por recluso — um número muito inferior às 12 visitas íntimas a que um recluso tem direito por ano. O Observador pediu à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais dados de anos anteriores, mas este organismo remeteu para as informações públicas existentes nos Relatórios de Atividades e Autoavaliação que, quanto ao número de visitas realizadas, só fornecem dados a partir de 2019.
A verdade é que os reclusos “sentem” que a visita íntima “não é um direito, mas uma concessão”. “E é uma concessão sobre um princípio: quem se porta bem, beneficia, quem não se porta bem, não beneficia“, diz um guarda prisional de uma prisão do norte do país. Acaba assim por ser uma motivação para os reclusos que querem alcançar esta concessão e o próprio sistema prisional aproveita os efeitos secundários das visitas. “Baixa as tensões entre os reclusos e é mais uma motivação para conseguir alcançar estes propósitos”, afirma outro guarda.
A psicóloga Rita Pinto conclui, no estudo que realizou, que este é “um instrumento de gestão penitenciária, porque há uma motivação para o comportamento positivo”. “Houve uma expressão que uma reclusa usou: ‘Se não houvesse visita íntima, havia muita porrada‘. E no grupo das que usufruíam deste regime, uma delas referiu: ‘Eu penso duas vezes antes de fazer alguma coisa porque sei que, se fizesse, a consequência era ser-me retirado esse privilégio’.”