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“Será sempre um episódio histórico fundamental para o nosso país”, escreve o jornal El Mundo uns dias antes de se completarem 60 anos do casamento entre Don Juan Carlos e Dona Sofia. A 14 de maio de 1962 a Grécia estava em festa com uma história de amor digna de contos de fadas, entre dois belos e jovens membros da realeza europeia. Na época, a família real espanhola estava no exílio e a grega viria a estar, mas durante aqueles dias em Atenas viveu-se a celebração e respirou-se o otimismo que os novos começos inspiram. Para a história fica um casal de reis que foi o farol e o símbolo da Espanha moderna e democrática. Uma verdadeira equipa vencedora em muitas frentes que, ao longo do tempo, perdeu a unidade, o brilho e o palco. Mas, como todas as antigas glórias com legado, a sua história continua a ser contada.
O primeiro encontro e o caminho até ao noivado
Em 1954 a rainha Frederica da Grécia (mãe de Sofia), organizou um cruzeiro de 11 dias pelo Mediterrâneo no iate Agamémnon. Na sua versão oficial, o objetivo deste evento era impulsionar o turismo na Grécia, mas na verdade a rainha grega estava a assumir um papel de casamenteira e resolveu proporcionar uma oportunidade para que noventa jovens da realeza europeia se conhecessem, já que durante a guerra não tinha havido grandes festas deste género. Foi aqui que Juan Carlos e Sofia se conheceram quando eram ainda adolescentes, ele tinha 16 anos e ela 15. No entanto, não houve chama entre os príncipes. Na verdade, para ele o cruzeiro até foi um tanto ou quanto desafiante. Não só foi atirado ao chão por Dona Sofia, por ter gozado com o facto da então jovem estar a aprender judo, como teve de ser operado de urgência com uma grave crise de apendicite que obrigou a uma intervenção, descreve Andrew Morton em “Ladies de Espanha”.
Antes de se comprometerem um com o outro, ambos tinham já as suas paixões. A princesa Sofia esteve para ser uma rainha escandinava, era a primeira de uma lista de princesas adequadas para casar com o herdeiro do trono da Noruega, mas este estava decidido a ficar com Sónia Haraldsen, que conheceu em 1959. Só viriam a casar em 1968, porque pelo meio muito aconteceu e este noivado não foi fácil. O facto do único filho varão estar apaixonado pela filha de um próspero comerciante de roupa terá deixado o rei Olavo V sem palavras, conta Andrew Morton. É que até no país, já na época liberal, a ideia de ter uma futura rainha plebeia não era bem aceite e também os súbditos se indignaram. Então os dois apaixonados passaram a manter uma relação discreta e o filho chegou a fazer um ultimato ao pai: ou tinha autorização para casar com aquela que dizia ser a mulher da sua vida ou permaneceria solteiro e, como sabemos, a continuidade da realeza depende de herdeiros. O casal só viria a ascender ao trono em 1991. Em 2017 a realeza europeia rumou em peso a Oslo para uma grande celebração conjunta dos 80 anos do rei e da rainha, ambos nascidos em 1937. Escreve Morton que a imprensa da época se entusiasmou com a possibilidade deste noivado entre duas casas reais, mas este conto de fadas não se concretizou.
Juan Carlos, por seu lado, já tinha tido namoradas famosas na época, como Olghina de Robilant, filha de um aristocrata italiano que conheceu em Portugal em 1956, e a princesa italiana María Gabriela de Saboya, mas como esta era filha do rei deposto de Itália, não era vista como uma candidata com futuro.
Depois do mítico cruzeiro, Sofia e Juan Carlos viriam a encontrar-se em anos seguintes em eventos internacionais. Um deles foi os Jogos Olímpicos de Roma, em 1960. Na altura o jovem espanhol usava bigode e, numa animada conversa, a princesa terá demonstrado o seu desagrado. Então, conta Morton, “depois de uma resposta divertida de D. Juan Carlos, Dona Sofia levou-o à casa de banho do iate, mandou-o sentar-se, colocou-lhe uma toalha à volta do pescoço e, como numa barbearia, agarrou numa navalha, levantou-lhe o nariz e rapou-lhe o bigode”. Terá sido aqui que se acendeu a chama. Nesse ano a família real grega convidou a família dos condes de Barcelona para passar o Natal com eles na ilha de Corfu. Em junho de 1961 os dois jovens voltaram a encontrar-se, publicamente, em Londres no casamento dos duques de Kent, e foi o próprio protocolo que fez deles um par, mas também terão ficado hospedados no mesmo hotel, o Claridge’s, e terão aproveitado para passear e jantar juntos.
O pedido de mão aconteceu a 12 de setembro de 1961 no hotel Beau Rivage de Lausane, na Suíça, a cidade onde vivia na altura a rainha Victoria Eugenia, avó do rei Juan Carlos. E foi neste cenário que aconteceu o famoso episódio do anel de noivado. Juan Carlos terá atirado a caixa com a joia à sua prometida e gritado “Sofi, apanha!”. Na caixa estava um anel de ouro com dois corações de rubi. Conta a Vanity Fair que, mais tarde, Juan Carlos terá dito: “Amo a princesa Sofia desde o primeiro momento em que a vi. É uma de das poucas mulheres que conheço capaz de usar com toda a dignidade uma Coroa Real”. No dia a seguir ao anúncio do noivado, o casal foi para Atenas e foi recebido por multidões em euforia.
Os obstáculos e, por fim, o casamento dos “três sins”
O pai e a avó do noivo, D. Juan e a rainha Victoria Eugénia, e a mãe da noiva, a rainha Frederica, terão dado uma ajuda para que este noivado se tornasse realidade, por isso o consentimento das famílias dos noivos não foi difícil, mas houve outros obstáculos a ultrapassar até à grande boda.
Primeiro foi preciso convencer Francisco Franco a aceitar a noiva, uma vez que preferia que fosse uma espanhola, mesmo que não tivesse linhagem real. Don Juan, o pai do noivo, certificou-se que Franco só soubesse quando estava já tudo bem encaminhado. Depois houve que resolver a questão do dote da princesa Sofia. O tópico precisava de aprovação no parlamento grego e alguns deputados não estariam convencidos com a união.
Por fim, mas não menos importante, era necessário lidar com o fator religião, uma vez que Juan Carlos tinha de ter um casamento católico romano e Sofia tinha de ter um casamento cristão ortodoxo grego, imposições das suas linhagens familiares. Era preciso que o papa João XXIII desse a sua aprovação, e deu, desde que houvesse duas cerimónias distintas. Para que todos ficassem contentes assim foi e no dia 14 de maio de 1962 Juan Carlos e a princesa Sofia da Grécia casaram-se.
A primeira cerimónia foi a católica, que aconteceu às 10h00 da manhã na Catedral Católica de S. Dionísio, toda decorada com uma série de flores amarelas e vermelhas, inspiradas pela bandeira espanhola. Seguiu-se logo a cerimónia ortodoxa, que aconteceu na Catedral Metropolitana de Atenas, e foi aqui que aconteceu o ritual que se vê em tantas fotografias com os noivos com coroas sobre as cabeças. Este casamento ficou conhecido como “o casamento dos três sins”, porque aos dois das cerimónias religiosas junta-se ainda o do registo.
Afinal, tratou-se da união de duas casas reais, e esta foi uma boda com pompa e circunstância. Assistiram milhares de convidados, entre eles cerca de 150 membros da realeza em representação de 27 dinastias, provavelmente a maior reunião de realeza desde a coroação de Isabel II, em 1953. Rainier e Grace do Mónaco também estavam entre os convidados e terá sido a estrela de Hollywood tornada princesa em 1956 quem recebeu a maior ovação do público.
A imprensa grega viveu intensamente este conto de fadas. Em Espanha, conta o El Mundo, o regime tratou de silenciar o assunto, para que o povo não se entusiasmasse com a monarquia e, sobretudo, porque não queria que os espanhóis vissem imagens do conde don Juan no casamento do filho. Segundo a Vanity Fair, a TVE passou um documentário com o casamento durante uma madrugada. Contudo, o governo espanhol da época ofereceu como presente de casamento à noiva a tiara floral, que já vimos a rainha Sofia usar tantas vezes (que será a favorita de Letizia e que a infanta Cristina usou no seu casamento).
A noiva usou um vestido desenhado por Jean Dessès, um designer de moda nascido no Egito e filho de pais gregos que rumou a Paris para estudar direito e diplomacia, mas acabou por se apaixonar por moda e abriu a sua própria casa de Alta Costura na capital francesa em 1937. Para a princesa Sofia criou um vestido de conto de fadas, em renda com uma saia muito ampla, que a noiva completou com o véu que a mãe já havia usado no seu casamento e a tiara prussiana que pertencia à avó, a princesa Victoria Luisa da Prússia. Foi a mesma tiara que Letizia Ortiz escolheu para usar no seu casamento com o príncipe Felipe, em 2004.
O noivo usou um uniforme que, em tradução direta do espanhol será de tenente de infantaria do exército de terra. Dessès ficou também encarregue de criar os vestidos das oito damas que acompanhavam a noiva e seguravam o seu véu. Além dos vestidos brancos, usaram um colar de pérolas e, na cabeça, um tocado igual para todas. O cortejo de luxo era composto pela irmã da noiva, Irene da Grécia e também por Irene da Holanda, Alexandra de Kent, Benedicta e Ana Maria da Dinamarca (irmãs da atual rainha Margarida) Ana de França, a infanta Pilar (irmã do noivo) e Tatiana Radziwill.
O armador grego Stavros Niarchos não só ofereceu aos noivos a sua ilha privada, Spetsopula, para começarem a lua de mel, como também ofereceu o seu iate, Eros, para realizarem uma viagem de nove meses pelo mundo com paragens estratégicas. Em Washington foram recebidos pelo presidente Kennedy que, como conta a Vanity Fair, foi um encontro lido como a aceitação do casal real por parte do governo americano, em vez de Franco.
Na bagagem rumo à sua nova vida, a jovem princesa Sofia levava os preciosos conselhos da mãe, a rainha Frederica da Grécia, e da avó do marido, a rainha Victoria Eugénia, que terá dito: “Esta rapariguita tímida é na realidade uma grande personagem. Já verão como mais tarde, desempenha um papel muito importante”.
Em Espanha, o início do futuro
Depois da grande boda real que pôs a Grécia em festa e Atenas vestida de gala, muito aconteceu. Apenas dois anos depois, em 1964, o pai da princesa Sofia, o rei Pavlos, morreu e o príncipe Constantino tomou posse como rei. Nesse mesmo ano casou-se com a princesa Ana Maria da Dinamarca, irmã da atual rainha Margarida. A vida do novo rei Constantino II não foi fácil — em 1967 o golpe de uma junta militar obrigou a família real a sair do país e reinar no exílio até que, em 1973 a monarquia foi abolida no país.
O tratamento e a imagem da família real passou por momentos difíceis no seu próprio país. Em 1994, durante o governo então liderado pelo primeiro ministro Andreas Papandreu, foi retirado ao rei Constantino o passaporte grego, assim como também foi expropriado das suas propriedades gregas, incluindo o palácio Tatoi, a casa da família real, e a passagem do rei pelo seu país não era bem vista nem sequer para passar férias. A rainha Frederica morreu em 1981, sem presenciar estes acontecimentos. Só em 2019, o atual Primeiro Ministro grego, o conservador Kyriakos Mitsotakis, decidiu fazer as pazes entre a Grécia e a sua família real e deixou de renegar a sua história. Os Jogos Olímpicos de 2004 terão marcado um ponto de viragem que acabou com o exílio, no ano anterior o rei foi convidado a regressar à Grécia e a família começou a fazer férias e a frequentar o país, mas só em 2012 os reis Constantino e Ana Maria viriam a instalar-se definitivamente no seu antigo reino e a participar em atos públicos.
Em Espanha a vida tornou-se complicada para a monarquia mais cedo. Explica Andrew Morton que o rei Afonso XIII, avô de D. Juan Carlos, abdicou e partiu para o exílio em abril de 1931, na sequência de umas eleições vencidas por uma coligação anti-monárquica. Em 1945 o filho, D. Juan e conde de Barcelona, ter-se-á apresentado “à cabeça de uma monarquia parlamentar, como única alternativa viável para o futuro de Espanha”. Franco não gostou e ripostou com a Lei da Sucessão, que lhe permitia nomear um sucessor à sua escolha. Juan Carlos nasceu a 5 de janeiro de 1938 em Roma, onde a família residia na época. Mudar-se-iam para Portugal em 1946. O segundo dos quatro filhos dos condes de Barcelona e rapaz mais velho, foi um peão neste jogo entre Franco e Don Juan durante anos. Partiu para Espanha ao 10 anos e foi lá que fez a sua educação com uma infância e juventude controladas pelo ditador.
Depois da lua de mel, os recém casados Don Juan Carlos e Dona Sofia instalaram-se em Espanha e foram viver para o Palácio da Zarzuela, em Madrid. Não tinham propriamente um papel para desempenhar até 1969, quando Juan Carlos foi nomeado sucessor pelas cortes de Franco. Os reis tiveram três filhos, a infanta Elena nasceu a 20 de dezembro de 1963, a infanta Cristina nasceu a 13 de junho de 1965 e o príncipe Felipe, atual rei Felipe VI, nasceu a 20 de janeiro de 1968. A monarquia só viria a ser restaurada em Espanha em 1975 e Juan Carlos proclamado rei a 22 de novembro desse ano.
O casal de reis Don Juan Carlos e Dona Sofia foi fundamental para o sucesso de uma Espanha monárquica e democrática. Contudo, o afastamento entre os reis eméritos é conhecido entre os espanhóis há muitos anos. Se sessenta anos de casamento correspondem às bodas de diamante, a verdade é que já não celebraram as de ouro, há 10 anos.
Pilar Eyre, reconhecida jornalista espanhola e profunda conhecedora da família real (já publicou vários livros sobre os seus membros) lançou em 2021 o livro “Eu, o Rei” (Esfera dos Livros), uma biografia romanceada da vida de Don Juan Carlos, que vai da infância ao mais recente presente e resulta de uma investigação desenvolvida ao longo de 40 anos. Em entrevista ao Observador na altura, disse que o rei emérito “foi uma criança sem afeto, sem infância” e explicou: “Tudo isso fez com que D. Juan Carlos tivesse sido tão mulherengo — evidentemente que é genético, tanto o pai como o avô eram promíscuos sexualmente —, mas também deriva de uma necessidade de afeto”.
A autora também afastou a possibilidade de um divórcio. “No início não seria aceite. A sociedade espanhola era muito conservadora e na altura de Franco era impensável — havia uns serviços secretos destinados a vigiar a conduta de D. Juan Carlos. Naquele momento era impensável que o fizesse. Havia medo porque a sociedade espanhola era conservadora e um rei divorciado não podia acontecer”. E continuou, confessando: “Estou segura — conto isso no meu livro — que a partir de 2000 o rei quis divorciar-se da rainha, falou com ela e falou com o primeiro-ministro para se divorciar. Juan Carlos chegou a reunir-se com os três filhos num restaurante, em Madrid, para dizer-lhes que se ia divorciar para casar com Corinna… Felipe, o atual rei, disse-lhe ‘Papá, se queres matar a monarquia…’. Penso que Sofia nunca se quis divorciar, ela adora ser rainha.”
“Juan Carlos morrerá no exílio e com o nome de Corinna nos lábios”
Marta Cibelina é autora do recém publicado livro “Os Bourbons e o Sexo. De Filipe V a Filipe VI” (Esfera dos Livros e traduzido em português), cujo nome é, como a editora apresenta a “segunda personalidade de uma jornalista madrilena todo-o-terreno”, que partilha a sua visão com o Observador. No livro, cada rei tem o seu próprio capítulo e nas páginas que dedica a D. Juan Carlos identifica vários nomes de mulheres que fizeram ou terão feito parte da vida amorosa do agora rei emérito, mas acrescenta que a lista de amantes, a dada altura, era enorme e muito injusta. “A fama ele conquistou-a” e cita um ditado espanhol cuja ideia é bem semelhante ao português “quem sai aos seus não degenera”, para dizer que o rei segue uma linhagem de antepassados que tinham fama de conquistadores. Contudo, explica que nas décadas de 1970/80 ou 90 as indiscrições do soberano não prejudicaram, de forma alguma, a sua imagem. “As notícias sobre a vida privada do rei não eram publicadas, mas eram do domínio público as suas escapadelas com desportistas seus amigos.” A autora conta que o rei usava a mota para escapar à segurança e, com o capacete, ninguém o reconhecia. À fama de sedutor junta o facto de ser “gostado e respeitado”.
Um novo rei e dois caminhos separados
Há uns anos tudo começou a mudar. O caso Nóos, que envolveu os duques de Palma, a filha mais nova do rei e o seu marido: a infanta Cristina e Iñaki Urdangarin, foi o acender do rastilho. Desde uma manchete do jornal El Mundo em 2006 até junho de 2018, data em que o Supremo Tribunal espanhol condenou Iñaki Urdangarin a cinco anos e dez meses de prisão pelos crimes de prevaricação, peculato, tráfico de influência, fraude à administração e crimes fiscais, que o Nóos abalou a casa real espanhola durante praticamente uma década. Os duques de Palma perderam o título, a infanta Cristina foi afastada da família real e mudou-se com os filhos para a Suíça.
Em 2012 aconteceu o famoso caso do safari que expôs o rei Juan Carlos como nunca havia acontecido. Espanha atravessava uma profunda crise económica quando o rei decidiu ir caçar elefantes no Botswana. Contudo, o maior problema foi tornar-se público que uma das pessoas que o acompanhava era Corinna Larsen, e desde então esta personagem não só não saiu de cena como o seu papel no enredo foi crescendo. A escapadinha a África custou-lhe, também, uma fratura na anca e uma ida ao hospital já em Madrid, onde o monarca se viu obrigado a pedir desculpa aos espanhóis perante as câmaras de televisão à saída. “Estou desejoso de retomar as minhas obrigações. Sinto muito. Enganei-me, não voltará a acontecer.” Mas Corinna era muito mais do que uma amante do rei, era também uma personalidade com visibilidade pública.
Alpinista social ou mulher apaixonada. Quem é Corinna Larsen, a ex-amante de Juan Carlos?
Corinna é diferente de todas as outras mulheres a quem se atribuíram casos com Juan Carlos. “É muito mais inteligente, muito mais perigosa e infinitamente mais ambiciosa. Insaciável do ponto de vista económico”, diz ao Observador Marta Cibelina. E de facto a relação entre a sofisticada alemã e o rei emérito de Espanha azedou quando à polémica se juntaram milhões de dólares e uma acusação de assédio. “É curioso que tenha decidido processar Juan Carlos em Londres. Está lá a torre onde executaram a Ana Bolena. Noutro tempo ter-lhe-íamos cortado a cabeça. É a mulher que mais danos causou aos Borbón, à exceção de Madame de Montespan, a amante de Luis XIV e avó de Felipe V, o primeiro Borbón que chegou a Espanha. Fazia missas negras e envenenava as suas rivais.” Lembra que o rei sol tinha muito mais poder do que alguma vez teve Juan Carlos I, porque, apesar de tudo, abdicou do poder que herdou de Franco para instaurar uma democracia constitucional. “Creio que o caso Corinna apanhou o rei já mais velho, com a guarda baixa. Porque de tonto nunca teve nem um cabelo”. E mais, “sempre soube perfeitamente detetar as intenções das pessoas e pôr certas barreiras que lhe permitiam separar o contexto privado do seu papel como rei de Espanha”.
A sucessão de escândalos estava a manchar a monarquia espanhola de tal forma que fez com que a 2 de junho de 2014 o rei Juan Carlos I de Espanha anunciasse a sua abdicação. Tomou a decisão de deixar o trono e o caminho livres para que o filho se tornasse no rei Felipe VI. “Uma nova geração reclama o papel protagonista para enfrentar com renovada intensidade os desafios”, disse o rei na mensagem em que anunciou a sua saída, pouco antes de completar 40 anos de reinado.
As críticas atingiam Juan Carlos vindas de diferentes direções e, no espaço de poucos anos as as notícias sobre as más escolhas do monarca, pareciam ter anulado da memória dos seus súbditos a imagem do rei herói que recuperou o prestígio do seu país. É por isso que Cibelina analisa: “Nós, os espanhóis, fomos injustos com o rei Juan Carlos, não pelos temas relacionados com a sua vida privada, mas sim por não reconhecer o papel que teve para a instauração da monarquia em Espanha e os valiosos serviços que prestou ao nosso país.” E acrescenta uma visão da qual talvez só os espanhóis tenham real noção: “A monarquia é a chave do cofre que suporta a unidade em Espanha. Não faz nenhum bem a Felipe VI que se desprestigie o trabalho do seu pai, sem assinalar as suas qualidades”.
A 19 de junho de 2014 o rei Felipe VI foi proclamado novo rei de Espanha. No seu primeiro discurso como monarca perante as Cortes espanholas, numa altura que o rei emérito Juan Carlos estava debaixo de fogo, lembrou o papel que também a rainha Sofia havia desempenhado até então e agradeceu-lhe a sua dedicação. Os presentes dedicaram-lhe um sonoro aplauso. “Permitir-me-ão senhorias, que agradeça à minha mãe, a rainha Sofia, toda uma vida de trabalho impecável ao serviço dos espanhóis. A sua dedicação e lealdade ao rei Juan Carlos, a sua dignidade e sentido de responsabilidade são um exemplo que merece um emocionado tributo de gratidão que hoje, como filho e como rei, lhe quero dedicar.”
O rei emérito retirou-se da vida pública em 2019 e em 2020 saiu deixou Espanha, achando que seria o melhor para o país e para todos, vive atualmente em Abu Dhabi. A rainha vive no palácio da Zarzuela, em Madrid. Dúvidas ainda houvesse, desde a abdicação ficou claro que o casal real seguia caminhos separados. Embora as filhas e alguns dos oito netos já tenham visitado Juan Carlos nos Emirados Árabes Unidos, não há ainda qualquer notícia de que Dona Sofia o tenha feito. Em março deste ano o rei emérito escreveu uma carta ao filho, o rei Felipe VI, na qual afirma que manterá a sua residência em Abu Dhabi e que voltará a Espanha “para visitar família e amigos”. Dona Sofia continua com o seu trabalho de serviço público e a abrilhantar determinadas causas e eventos com o seu carisma. Na passada semana santa a infante Elena, com a filha Victoria Federica, e a infanta Cristina com os seus quatro filhos visitaram o rei emérito e deixaram-se fotografar em grupo. Enquanto o rei Felipe visitou a rainha em Palma de Maiorca onde, tradicionalmente, a família real passava as férias de Páscoa.
Durante a II Guerra Mundial, Dona Sofia e a família real grega estiveram no exílio e a princesa passou parte da infância entre o Egito e à África do Sul. Os estudos passaram pela Alemanha, por África e terminaram em Atenas. Em “Ladies de Espanha” (Esfera dos Livros), Andrew Morton descreve a rainha emérita como “uma mulher bastante austera, dotada do mesmo âmago de ferro que a sua mãe, mas animada por um inteligente sentido de humor, consciente do seu elevado estatuto”, acrescentando que a mãe, a rainha Frederica, lhe terá dito “Tu pertences à realeza. Pode ser que te divirtas menos que os outros, mas foste escolhida — talvez por Deus –, por isso orgulha-te disso”. E, de facto, a rainha Sofia tornou-se uma figura respeitada e amada, dentro e fora de Espanha. Além da elegância e postura, a rainha dedicou a sua vida ao serviço público de um país que não era o seu, mas que escolheu como seu.
Sofia Margarida Vitória Frederica, a primogénita dos três filhos dos reis da Grécia nasceu a 2 de novembro de 1938, em Atenas. “Sofia sempre foi muito consciente do seu papel de rainha, mas uma bisneta do kaiser Guilherme II como Dona Sofia, filha de reis, se não está apaixonada e encara o seu trabalho como uma rigorosa profissional”, diz Marta Cibelina, não pode agir por impulsos. E continua, partilhando um episódio que terá acontecido há já muito tempo: “Não se deixa levar pela cólera depois de apanhar o marido em flagrante, nem parte de Espanha com os filhos para a Índia para se refugiar com a mãe, que na altura vivia com um guru… Juan Carlos ligou-lhe e disse: ’Tens de voltar porque és a rainha’. E a sua mãe, Frederica da Grécia disse-lhe: ‘a uma rainha nunca ninguém põe os cornos, e se lhos põem não chega a inteirar-se disso’. E a rainha voltou”.
A autora acrescenta que Dona Sofia “gostou dele e muito, mas tudo tem um limite…”. A rainha emérita “tem um elevado conceito de dignidade: também sofreu muito quando foram tornados públicos pormenores muito concretos da relação do rei Juan Carlos com Bárbara Rey em 2017” e acrescenta ainda que o mesmo acontece quando algo é publicado sobre Marta Gayá e “quando os espanhóis conheceram a existência de Corinna”.
Segundo Andrew Morton, “esta crise vê-se exacerbada devido à curta história da atual Casa Real espanhola. De facto, os Rolling Stones, o grupo rock, está junto há mais tempo do que a monarquia espanhola na sua atual encarnação”.
Dom Juan Carlos dizia que a monarquia tinha de ser útil. E os seus atuais protagonistas têm trabalhado muito para mostrar que a instituição se mantém ao serviço dos melhores interesses de Espanha e dos espanhóis. Sem dúvida, o tema continua a atrair interesse e curiosidade. Talvez seja o facto de vidas tão privilegiadas conviverem com alguns dos problemas dos seus comuns súbditos. Ou talvez seja porque ainda vemos os membros da realeza como personagens de histórias e da História.
Por Espanha prepara-se o que tem vindo a ser chamado de “The Crown espanhola”, ou seja, uma série que conta a história de Espanha através da vida do rei Juan Carlos. Serão três temporadas com 10/12 episódios cada uma e, em julho de 2021, estava quase toda planeada, contava o jornal El País. A série “El Rey” será uma produção Globomedia como parte do The Mediapro Studio. O projeto é uma aposta do realizador e argumentista Javier Olivares, que disse ao jornal ter encontrado “uma mina de ouro” no livro de Pilar Eyre, “Eu, o Rei”. Contudo, na altura não se sabia onde será transmitida nem quem interpretaria as personagens, e, apesar da notícia ter chegado ao título da especialidade, Variety, não há novos desenvolvimentos conhecidos. Entretanto, a história continua a escrever-se todos os dias.