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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Sophia, o pelotão dos veteranos de guerra em Kiev. Reportagem numa pizzaria transformada em quartel-general (com mísseis anti-tanque)

Passaram a viver numa pizzaria, de onde partem para missões perigosas em carros da polícia. E estão prontos para matar os russos que entrarem na capital. Dos enviados especiais do Observador a Kiev.

Já matou algum russo?
Ainda não. Até tenho vergonha de não o ter feito, mas vamos tratar disso.

Deseja matá-los?
Of course [Claro]. É uma questão de justiça. Eles mataram cem crianças no meu país. Destruíram completamente duas cidades, Mariupol e Kharkiv. Vamos matá-los. No meu pelotão, não quero ter prisioneiros. Se os russos ficarem vivos depois da batalha, claro que não somos animais e vamos ajudá-los. Mas o principal objetivo é matarmos tantos quantos pudermos, porque o que está em causa é a nossa sobrevivência.

A antiga esplanada nas traseiras desta pizzaria no centro de Kiev foi transformada em campo de treino de combate. A cozinha passou a ser uma enfermaria, onde se armazenam medicamentos e se arrumam mísseis anti-tanque (N Law) numa prateleira ao lado do forno das pizzas. O espaço das mesas é agora uma espécie de camarata gigante onde se juntam 17 sacos-cama em colchões com veteranos de guerra ucranianos e outros voluntários.

E o pequeno escritório do dono da pizzaria, o ex-combatente Leonid Ostaltsev, tornou-se o posto de comando do Sophia, a partir de onde ele lidera o pelotão que junta os veteranos de guerra e alguns outros voluntários civis, para dar apoio direto à polícia de Kiev na defesa da capital. Detalhe inusitado no contexto: em cima de um armário, há uma boneca insuflável.

Ajudámos a retirar civis de Irpin. Nem todos sobreviveram. Alguns morreram, não comigo, mas morreram. Estamos agora na retaguarda, em Kiev, à espera dos russos. Não é a linha da frente, nem sequer é a segunda linha, it’s the fucking last line (é o raio da última linha).
Leonid Ostaltsev, comandante do batalhão Sophia

Para entrar na pizzaria, descem-se uns degraus, como quem entra numa cave, e a sala principal do restaurante tem logo caixas e caixas cheias de munições do lado esquerdo do balcão. Noutro canto, um veterano controla através de videovigilância todos os arredores e entradas do estabelecimento.

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Leonid Ostaltsev, 34 anos, está sempre a ser interrompido para atender chamadas ou responder a mensagens urgentes, mas tira uns minutos para falar com o Observador em inglês, enquanto fuma sem parar e nos deixa à vontade para fazer o mesmo no seu gabinete: “It’s a fucking war. You can do whatever you want”. [Estamos a meio do raio de uma guerra. Podes fazer o que quiseres]

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Ainda não tive combates com os russos, mas estamos à espera deles”

Na manhã de 24 de fevereiro, uma hora depois de Putin ter ordenado os primeiros bombardeamentos, o chefe da polícia ucraniana ligou a Leonid, de quem é amigo, e pediu-lhe para ajudar no patrulhamento do território, por não dispor de forças especiais suficientes. O dono da pizzaria dirigiu-se logo à sede da polícia.

Levou a arma?
Estou sempre com a arma.

O que lhe foi pedido que fizesse?
O chefe da polícia ucraniana pediu-me: “Forma o teu pelotão e ajuda-nos. Vais cumprir várias missões que te vamos pedir”. Agora tenho 109 pessoas sob meu comando. Metade são veteranos.

Que missões vos são confiadas?
Evacuações. Apoio aos serviços de informação. Apoio ao exército em zonas críticas perto de Kiev. E missões humanitárias. Por exemplo, ajudámos a retirar civis de Irpin [subúrbio de Kiev onde tem havido violentos ataques russos]. Nem todos os civis sobreviveram. Alguns morreram, não comigo, mas morreram. Estamos agora na retaguarda, em Kiev, à espera dos russos. Não é a linha da frente, nem sequer é a segunda linha, it’s the fucking last line (é o raio da última linha).

Já teve combates com os russos?
Ainda não, mas estamos à espera deles.

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O Panda que acerta em alvos a 800 metros. E o guionista que esteve no Afeganistão

Deitado num dos sacos-cama da antiga sala de refeições está o “Panda”, alcunha de um agora combatente de grande porte físico, praticante desportivo de tiro, preparado para atingir alvos a mais de 800 metros de distância. “Odeio Putin e a Rússia”, diz ele. Outro combatente, que nos faz a visita guiada pelo quartel-general, invoca uma guerra cultural para justificar “a decisão de matar estes bárbaros”.

Olena Yanishevska, 25 anos, paramédica, já esteve na linha da frente na região de Donetsk, veio para Kiev estudar programação informática, mas agora com o regresso da guerra ensina primeiros socorros aos combatentes.

Um dos elementos mais experientes do grupo é Miro Popovich, que tem dupla nacionalidade, americana e ucraniana. É amigo de infância de Leonid, o comandante do pelotão. Viveu nos EUA, esteve em missão no Afeganistão, interrompeu um curso de guionismo em Los Angeles para voltar para a Ucrânia por causa da pandemia, e foi ele que avisou Leonid do primeiro ataque russo de 24 de fevereiro. Têm estado juntos desde então no pelotão Sophia, assim batizado em honra de Santa Sophia, que dá nome a uma catedral de Kiev.

Zelensky é bom. Muito bom. Não votei nele e não gostava dele antes da guerra, pensava que era fraco. Mas depois do primeiro bombardeamento, ele mostrou a todos os ucranianos que está aqui em Kiev e vai ficar aqui. E isto é muito inspirador: um humorista fraco transformou-se num homem forte, com tomates, que fica ao lado do seu povo contra o grande invasor.
Leonid Ostaltsev, comandante do batalhão Sophia

Leonid Ostaltsev já fazia pizzas antes de se alistar no exército ucraniano. Em 2014, passou um ano a combater no Donbass, a parte oriental do país reclamada pelos russos. Quando acabou o contrato militar, criou um restaurante que fazia discriminação positiva e contratava preferencialmente antigos combatentes, como ele, para trabalhar.

Toda a gente duvidou do plano de negócio. Tinha 50 dólares, a mulher estava grávida de 7 meses, mas não teve medo: “O perigo real é quando a artilharia te está a atingir e pensar: isto é o fim. Comparado com isso, lançar um negócio é fácil”. Acabou por ser um sucesso e transformou-se num franchising com 11 pizzarias e 9 cafés espalhados por toda a Ucrânia.

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“Se puderem, devem sair de Kiev. Se não saírem, é mais difícil para nós lutar com os russos”

Todo o pessoal dos restaurantes está a salvo. Mas os estabelecimentos em Mariupol, cidade arrasada pelos russos, foram destruídos. E as 3 pizzarias em Kiev estão encerradas. Nem sequer está a fornecer pizzas ao exército, mas Leonid Ostaltsev ajuda a alimentar algumas brigadas que enfrentam os russos nos arredores de Kiev.

O que acha que vai acontecer nos próximos dias? 
Acho que vão bombardear Kiev com a artilharia. Depois vão tentar entrar na cidade, mas vão enfrentar grande resistência nossa. Sem bombardearem edifícios, não têm qualquer hipótese.

Mas acha que vão conquistar Kiev?
Não. We’ll fuck them. [Vamos lixá-los]

E tem homens, armas e munições suficientes para resistir?
Tenho mais homens do que aqueles que posso usar.

Mas eles têm mais homens.
Ainda não. Nós temos uma situação estratégica melhor do que eles. É muito difícil para eles. Podem tentar fazer o que já fazem com Mariupol. Mas Kiev não é Mariupol. Vão tentar cercar. E tentar impedir que a comida chegue. Mas nós temos estratégias para isso.

Ontem entregámos aos serviços secretos um tipo, que só tinha uma garrafa de água e um passaporte ucraniano com data de 1999 - mas que parecia novo. No email tinha conversas com russos, em que tentava vender-lhes algo. Fomos falar com ele na rua, parecia suspeito e pedimos o passaporte. Não respondeu de onde era, nem para quem estava a trabalhar. Dissemos-lhe: “Let’s go”.
Leonid Ostaltsev, comandante do batalhão Sophia

Kiev tem comida para duas semanas.
O presidente da câmara diz isso. Mas isto não é sobre os militares. É sobre os civis, que são outra parte desta guerra. E a nossa primeira missão é protegê-los. A seguir… “our main task is to kill every fucking russian” [a nossa missão principal é matar todos os sacanas dos russos].

Como se protegem os 2 milhões de civis que ainda estão em Kiev?
Sobre isso o melhor é falar com o presidente da câmara.

As pessoas recusam-se a sair.
Sim, é muito mau. Eles querem resistir, querem ajudar, mas alguns deles são doentes, outros são idosos.

Que conselho lhes dá?
Digo sempre que, se puderem, devem sair de Kiev. Têm de sair de Kiev. [A mulher e o filho de Leonid estão a salvo noutro país europeu]. Se não saírem, é mais difícil para nós lutar com os russos. Os russos não querem saber dos civis. Nós queremos. Isto não é bom para nós por razões estratégicas. Temos de pensar se há alguém no edifício ou não, se podemos disparar perto de um edifício ou não. E isto não é bom. É uma desvantagem.

E como vê o papel de Zelensky?
Ele é bom. Muito bom. Não votei nele e não gostava dele antes da guerra, pensava que era fraco. Mas depois do primeiro bombardeamento, ele mostrou a todos os ucranianos que está aqui em Kiev e vai ficar aqui. E isto é muito inspirador: um humorista fraco transformou-se num homem forte, com tomates, que fica ao lado do seu povo contra o grande invasor.

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O vocalista pop star que cancelou a digressão da banda para se transformar em soldado

A conversa com Leonid é interrompida pela entrada no gabinete de um ucraniano de elevada estatura, que vai buscar uma arma. “É a nossa pop star”, apresenta-o o comandante. Trata-se de Andriy Khlyvnyuk, o vocalista de uma banda rock ucraniana, os Boombox, que têm 414 mil ouvintes por mês no Spotify.

Há duas semanas, tornou-se viral um vídeo de Andriy a cantar uma música folk ucraniana nas ruas de Kiev, de arma ao ombro. Uma versão remix da música atingiu já 2,2 milhões de visualizações.

Depois de dar uma entrevista para um documentário que está a ser filmado em Kiev pela Netflix sobre a resistência ucraniana, começou a responder ao Observador enquanto desmontava e limpava as armas em cima da mesa. “Sim, percebo de armas, aprendi a usar quando era mais novo, é normal na Ucrânia”.

Como é que veio parar aqui?
A minha vida mudou completamente no dia 24 de fevereiro, quando o meu país foi atacado pela Rússia de Putin. Estava em tournée pela Ucrânia. Tinha acabado de dar um concerto em Melitopol. Na estrada para Kiev, acordei no autocarro da banda quando o guitarrista disse: “This is it” [Está a acontecer] Começaram.”

O que é que fez?
Comecei logo a pensar em retirar a minha família daqui, tenho filhos de 11 e 9 anos. A digressão da banda pela América e pelo Canadá foi cancelada para me juntar ao exército. Costumava vir aqui às quintas-feiras beber um copo enquanto esperava que a minha filha saísse de uma aula de dança aqui perto. Conhecia o dono, vi um post dele no Facebook a iniciar o que fazemos agora e perguntei-lhe: “Posso juntar-me?” Ele não disse que não. Fui a um centro de defesa territorial, peguei na arma que me deram, no uniforme e nos sapatos, vim para aqui e comecei a ser um soldado.

Como é que a família reagiu?
A minha sogra começou por ser contra. Mas depois toda a gente compreendeu e aceitou e agora dizem-me: “Obrigado por nos defenderes”. Quando o perigo chega tão perto, não tens dúvidas…

A conversa é interrompida abruptamente quando outro combatente lhe segredou algo ao ouvido. “Desculpem. Tenho de ir”, avisa o cantor. Acaba de montar a arma, equipa-se e acompanha o comandante Leonid e outros dois combatentes, todos fortemente armados e protegidos por coletes à prova de bala. Dirigem-se para dois carros da polícia estacionados à porta e saem a alta velocidade.

O comandante acabaria por dizer mais tarde que a missão correu bem, mas preferiu não desvendar o que foram fazer. Instantes antes, tinha revelado ao Observador como na véspera tinham detido um alegado sabotador russo no meio da rua.

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Este recolher obrigatório alargado a 36 horas tem um objetivo estratégico?
Sim, vai ajudar-nos. Temos muitos inimigos infiltrados, russos disfarçados. Ontem entregámos aos serviços secretos um tipo, que só tinha uma garrafa de água e um passaporte ucraniano com data de 1999 – mas que parecia novo. No email tinha conversas com russos, em que tentava vender-lhes algo. Fomos falar com ele na rua, parecia suspeito e pedimos o passaporte. Não respondeu de onde era, nem para quem estava a trabalhar. Dissemos-lhe: “Let’s go” [Vamos embora].

Em Irpin colocaram sabotadores russos nus agarrados a um poste.
Não eram russos. Eram ucranianos saqueadores. Deixaram-lhes o rabo a sangrar e ficaram ali algum tempo.

Não é o que fazem aos russos?
Não. Os russos devem morrer.

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