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Em 2016, o escritor alemão Günter Grass publicou Beim Häuten der Zwiebel (Descascando a cebola, na edição da Casa das Letras), o primeiro de três livros de memórias. Não é frequente que uma vida devotada à escrita esteja recheada de eventos apaixonantes e capazes de atrair a atenção das massas, mas Descascando a cebola acabaria, ironicamente, por ser o livro mais falado de Grass. Tudo isto porque no relato sobre os seus anos de juventude, Grass revelou que tinha feito parte das Waffen-SS – e também, porque o ocultou durante toda a vida e só o admitiu aos 78 anos de idade.
A revelação contida em Descascando a cebola (antecipada numa entrevista na TV, pouco antes da saída do livro), suscitou uma onda de indignação à escala mundial, ajudada pela facilidade em proferir julgamentos morais que caracteriza esta nossa era de “redes sociais” e “fenómenos virais”.
Compreende-se a reacção inflamada contra Grass porque no imaginário do cidadão medianamente informado sobre o III Reich, um SS é um carrasco de uniforme negro, monóculo faiscante e rosto arrepanhado num ricto malévolo, soltando gargalhadas sádicas enquanto tortura judeus com tenazes em brasa. Sem dúvida que houve SS que corresponderam a este estereótipo, mas muitos dos que passaram pelas SS não foram mais sanguinários nem cometeram mais crimes do que os que cumpriram serviço militar na Wehrmacht – embora, qualquer dos ramos tenha construído um curriculum de infâmia e selvajaria, sobretudo na Frente Leste. Havia unidades SS especializadas no extermínio de judeus e outras minorias, na repressão dos territórios ocupados e na gestão dos campos de concentração. Mas o maior número de SS fez parte de unidades de combate, que inicialmente eram de elite e estavam bem equipadas, mas que com o crescente descalabro do III Reich degeneraram numa amálgama indescritível, uma Babel reunindo voluntários (e voluntários à força) de toda a Europa, restos de unidades destroçadas e miúdos recém-recrutados submetidos a instrução militar sumária, como Grass.
A verdadeira história da SS, publicado em 1989 por Robert Lewis Koehl e agora editado em Portugal pela Casa das Letras (tradução de Miguel Freitas Costa), promete revelar “a história completa da ascensão e queda da força militar e de segurança mais temida do século XX”.
A génese da SS
Nos seus primórdios, no início dos anos 20, o Partido Nazi ou NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei = Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães) era um entre vários grupelhos de inspiração nacionalista e anti-comunista que emergiu no tumultuoso cenário da Alemanha do pós-guerra. Sendo boa parte da política a este nível conduzida através da intimidação, da provocação e da arruaça e degenerando muitos comícios em pancadaria, o NSDAP dotou-se, logo em 1923, de um pequeno destacamento de homens de confiança (todos voluntários) cuja principal função era a protecção do líder – este corpo de guarda-costas teve inicialmente oito homens e recebeu o nome de Stabswache (“corpo de guarda”), sendo rebaptizada, pouco depois, como Stoßtruppe (“tropa de assalto”). O facto de Hitler ter sentido a necessidade de criar esta pequena elite de fiéis é reveladora da natureza de Hitler e do ambiente que se vivia no NSDAP: Hitler não confiava nas massas do partido e muito menos nos camisas-castanhas (as SA) de Ernst Röhm.
O fracasso do “putsch da cervejaria” e a subsequente detenção e julgamento de Hitler levaram à dissolução da Stoßtruppe, mas o corpo de guarda-costas foi reactivado em 1925, agora como Schutzkommando (“comando de protecção”) e as suas funções foram alargadas à segurança de toda a liderança nazi e das sedes do partido e à manutenção da ordem nos comícios, ganhando âmbito nacional. O nome da unidade seria, ainda em 1925, alterado para Schutzstaffel (“esquadrão de protecção”) e seria assim que entraria para a história.
Por agora, os membros da SS eram ainda uns vulgares arruaceiros, com constituição de armário e sempre prontos para rachar cabeças. Foi só quando Heinrich Himmler assumiu a liderança da SS, em Janeiro de 1929 (era o n.º 2 da hierarquia desde Setembro de 1927) que esta começou a ganhar relevância: em apenas um ano os efectivos passaram de 290 homens para 3000 e a SS ganhou estatuto autónomo da SA, ainda que, do ponto de vista formal, lhe continuasse subordinada. Foi também por esta altura que adoptou o uniforme negro, para se distinguir dos camisas-castanhas.
Outra mudança decisiva operada por Himmler prendeu-se com o nível social dos membros: a SS começara por ser um bando de rufias, mas o Reichsführer SS conseguiu aliciar “gente de qualidade” – nomeadamente aristocratas de velha cepa e oficiais com experiência – para as suas fileiras. E como pretendia formar um verdadeiro corpo de elite, Himmler impôs requisitos exigentes aos candidatos: como escreve Koehl, “não haveria […] rostos eslavos ou mongóis nas SS […] Os SS haveriam de tornar-se uma comunidade de sangue, os portadores do sangue da raça nórdica. O futuro oficial SS deveria ver exaustivamente investigados toda a sua família e antecedentes, pois se supunha que quando houvessem de tomar-se as decisões fatais só os mais puros dos puros poderiam agir sem hesitação […] São reconhecíveis aqui os valores de velha casta militar traduzidos para o racismo nazi”.
Outra mudança ainda mais decisiva deu-se a nível ideológico: de guarda-costas de um agitador de cervejaria, os SS converteram-se em “combatentes ideológicos “ e executores dos desígnios nazis – incluindo os mais desvairados e sinistros. “Somos chamados a lançar os alicerces sobre os quais a próxima geração fará história”, proclamou Himmler.
E como, entre 1919 e 1922, Himmler tinha estudado agronomia e estagiara por uns tempos numa quinta, a ideologia nazi e a sua formação coalesceram no sonho de “um futuro anel de 200 milhões de agricultores nórdicos à volta da Alemanha, uma muralha intransponível contra o bolchevismo” (Koehl). Estes soldados-camponeses (Wehrbauer) teriam como local preferencial de implantação a Ucrânia e cultivariam os seus campos com a ajuda de escravos eslavos. Parte desta utopia malsã veio de Richard Walther Darré, outro agrónomo de formação e autor dos livros O campesinato como fonte vital da raça nórdica (1928) e A nova nobreza do sangue e da terra (1929), que ascenderia bem alto na hierarquia SS e se tornaria um dos principais teorizadores da ideologia Blut und Boden (sangue e terra), que enfatizava a relação do povo com o seu território ancestral e exaltava os valores da vida rural.
Na visão de Darré e Himmler, “os SS haviam de restaurar uma mítica idade de ouro de esplendor rural por meio de uma rigorosa auto-selecção, da selecção dos parceiros e de um renovado treino dos seus membros como futuros aristocratas da terra” (Koehl). Estes ambiciosos e desvairados desígnios nunca haveriam de produzir fruto: a verdadeira vocação das SS não estava nos pomares frondosos e nos canais de irrigação, mas na terra queimada e nas valas comuns.
Crescimento, diversificação, consolidação
A ascensão de Hitler a chanceler, a 30 de Janeiro de 1933, trouxe novo impulso à SS e à SA: entre Janeiro e Maio, as primeiras passaram de 30.000 para mais de 100.000 membros, as SA de 300.000 para 500.000. Ao mesmo tempo, a SS deixou de ser um grupo paramilitar e converteram-se num ramo do Estado nazi.
E se, até então, Hitler necessitara da SA para o seu projecto de tomada do poder, uma vez este conquistado, tratou de ver-se livre de uma organização que nunca lhe inspirara confiança e que agora via como potencial fonte de instabilidade, tanto mais que o seu número de membros ascendera em 1934 a 4.5 milhões e o seu líder, Ernst Röhm, manifestava publicamente ideias próprias quanto à condução da política na Alemanha e ambicionava até incorporar as Forças Armadas na sua organização.
A 30 de Junho de 1934, naquela que ficou conhecida como a “Noite das Facas Longas” (que se prolongou até 2 de Julho), foi desencadeada uma implacável, vasta e concertada purga por toda a Alemanha, cujo principal alvo foi a SA (mas que Hitler aproveitou para eliminar ou silenciar outros adversários, reais ou potenciais) e em que a SS desempenharam o papel de carrascos, executando sumariamente dezenas de líderes e figuras proeminentes – incluindo Röhm – e enviando muitas mais para campos de concentração. O pretexto da acção contra a SA foi o de esta estar a preparar um golpe de estado (“a pior traição na história mundial!”, na histérica descrição de Hitler), mas do qual nunca foram apresentadas as mais ínfimas provas – como escreve Koehl, “o crime das SA […] não foi o radicalismo e a indisciplina mas uma ambição por demais manifesta. Himmler e a liderança dos SS aprenderam melhor a manter o silêncio e esperar”.
Com efeito, a ambição de Himmler não era menor que a de Röhm, e nos anos seguintes logrou dilatar o poder e âmbito da SS, transformando-a num Estado dentro do Estado.
Ainda antes da “Noite das Facas Longas”, Goering transferiu o comando da Gestapo (Geheime Staatspolizei = Polícia Secreta do Estado), por ele criada em 1933, para Himmler, que ficou igualmente com controlo de todas as polícias do Reich (com excepção da Prússia).
Himmler colocou a Gestapo sob o comando de Reinhard Heydrich, um protegido seu que já tinha a seu cargo a chefia da SD (Sicherheitsdienst, o serviço de segurança da SS) e se tornaria um dos homens mais poderosos e sinistros do Reich – mais tarde ser-lhe-ia também confiada a direcção da KriPo (polícia criminal), que seria articulada com a Gestapo, numa entidade conhecida como SiPo (Sicherheitspolizei). Em Junho de 1936, o poder de Himmler robusteceu-se ainda mais, ao ser nomeado chefe de todas as polícias do Reich, bem como de todas as entidades responsáveis pela manutenção da ordem.
Entretanto, o universo concentracionário, que viria a ser uma das facetas mais tenebrosas do nazismo, tinha dado o primeiro passo com a criação, a 22 de Março de 1933, do campo de concentração de Dachau, originalmente destinado a opositores políticos alemães.
Dachau foi colocado sob o comando do oficial SS Theodor Eicke, que, no ano seguinte, seria nomeado comandante dos SS-Totentkopfverbände (SS-TV), as tristemente célebres “Unidades de Caveira”, que ficaram responsáveis pela gestão de todos os campos de concentração nazis (que ficariam conhecidos como KL, de Konzentrationslager). Estes começaram por albergar cerca de 45.000 opositores políticos, mas, à medida que as políticas raciais do Reich foram sendo implementadas, passaram a acolher todos os “elementos racialmente indesejáveis” (uma designação lata que incluía judeus, homossexuais, ciganos ou emigrantes). Apesar da elevada taxa de mortalidade dos prisioneiros (que subiu vertiginosamente ao longo da guerra, devido à péssima alimentação, às pavorosas condições de trabalho e alojamento e aos maus tratos), a sua população total atingiu em 1945 os 715.000 e a sua arrepiante história foi recentemente alvo de um magistral livro de Nikolaus Wachsmann, intitulado KL: A história dos campos de concentração nazis (ver “Daqui só se sai pela chaminé“).
Os campos de concentração não só se tornaram num elemento crucial do sistema de terror nazi como viriam também a representar uma relevante fonte de financiamento, através do desenvolvimento de actividades económicas recorrendo a trabalho-escravo, deste modo “libertando os SS da dependência do partido e do Estado.
Em 1934 nasceu outro ramo das SS: as SS-Verfüngstruppe (SS-VT, “tropas de serviços especiais”), cuja vocação era o combate, por oposição às e às SS-TV (Unidades de Caveira), responsáveis pelos campos de concentração, e às Allgemeine-SS (“SS gerais”), onde se englobavam as unidades responsáveis pela segurança do Estado (SiPo e SD, ambas sob a direcção de Heydrich), as unidades regionais formadas por voluntários a tempo parcial, as estruturas administrativas e os reservistas. Estas distinções nem sempre foram claras ou permanentes e, para aumentar a ambiguidade, algumas entidades, embora estando sob controlo do Reichsführer SS não faziam parte das SS – foi o caso da polícia “corrente”, a Ordnungspolizei (OrPo). Claro que isto não impedia que houvesse membros da OrPo que, a título pessoal, estavam filiados nas SS e o mesmo acontecia com muitos outros alemães que não estavam ligados a unidades militares ou de manutenção da ordem.
Quanto aos tristemente célebres uniformes negros, desenhados em 1932 por Karl Diebitsch e Walter Heck, não eram tão difundidos como os filmes sobre o III Reich e a II Guerra Mundial dão a entender. Na verdade, com o início da guerra as Waffen-SS passaram a usar uniformes em tudo semelhantes às do exército regular, distinguindo-se pelas insígnias com as letras rúnicas “SS”. Mesmo as restantes unidades SS reservavam o uniforme negro para ocasiões formais, pois era pouco prático para o serviço quotidiano. Pouco a pouco, o uniforme negro ficou restrito aos reservistas da Allgemeine SS, que, por ironia, eram de todos os SS aqueles menos susceptíveis de sujar as mãos com sangue, de forma que a maioria dos uniformes negros acabou por ser remetida para os armazéns da intendência.
Muitos uniformes das SS (incluindo os negros) foram fabricados por uma empresa de Metzingen, cuja publicidade proclamava ser “fornecedora de uniformes nazis desde 1924” (um pequeno exagero: na verdade, só a partir de 1928) e cujo proprietário se fizera membro do Partido e várias organizações nazis, o que teve o condão de aumentar espectacularmente a sua carteira de encomendas. Com a guerra a aproximar-se do fim e a mão de obra a escassear, a empresa recorreu, como tantas outras na Alemanha, a trabalho escravo. Em 1946, o proprietário foi julgado na qualidade de apoiante e beneficiário do nazismo, de que resultou uma pesada multa e a interdição do exercício de actividade empresarial. Todavia, a sua firma prosseguiu e prosperou, embora abandonasse definitivamente o ramo dos fardamentos. Para os amantes das minudências históricas, aqui se deixa o obscuro nome do diligente fundador e proprietário da dita empresa: Hugo Ferdinand Boss.
As Waffen-SS
Himmler foi dilatando o número de unidades das SS-Verfüngstruppe, que viriam, a partir de Janeiro de 1940, a ser conhecidas por Waffen-SS (“SS “armadas”). Todavia, Himmler tentou imprimir-lhes um cunho elitista, impondo rigorosos parâmetros de admissão: os candidatos tinham de ter entre 17 e 23 anos, uma altura mínima de 1.74, visão de 20/20, ausência de obturações dentárias e um registo criminal limpo e tinham de apresentar um atestado de robustez física e provas da pureza ariana dos seus antepassados, remontando até ao ano 1800.
Estas regras, estabelecidas em 1934, seriam aligeiradas em 1938 – permitindo até seis dentes obturados. Em 1940, face às pesadas baixas sofridas pelas SS e tirando partido do domínio sobre parte da Europa, caiu o requisito da pureza ariana: primeiro foram admitidos “alemães étnicos” (minorias étnicas alemãs de países exteriores à Alemanha) e “germânicos não-alemães”, ou seja, com características raciais afins dos alemães – escandinavos, holandeses e flamengos.
A partir de Fevereiro de 1942 desapareceu a exclusividade do voluntariado, ao tornar-se compulsivo o alistamento dos alemães étnicos; a partir de 1944 a conscrição foi alargada aos naturais dos estados bálticos.
A fim de combater a tenaz guerrilha jugoslava, Himmler criou duas divisões de montanha SS – a 13.ª “Handschar” e a 23.ª “Kama” – formadas por voluntários bósnios muçulmanos, sob o comando de oficiais “alemães étnicos” naturais da Jugoslávia.
As pesadas baixas sofridas pelas SS, em particular na Frente Leste, acabariam por fazer evaporar as restantes restrições: passou a ser admitido nas SS quem quer que passasse no mais elementar teste médico de aptidão. As SS passaram a admitir voluntários de toda a Europa – espanhóis, franceses, belgas valões, checoslovacos, húngaros, romenos, búlgaros, croatas, albaneses, lituanos, letões e estónios – só deixando de fora dois povos: os judeus e os polacos, por serem “sub-humanos”.
Graças às sucessivas revisões dos critérios de admissão, as Waffen-SS aumentaram de três regimentos em 1939 a 38 divisões em 1945, tornando-se na mais numeroso segmento das SS. Pelas suas fileiras passaram cerca de meio milhão de estrangeiros, levando a que, ao invés da uniformidade ariana que Himmler promovera nos primeiros tempos, as Waffen-SS se convertessem numa United Colors of Benetton (em padrão camuflado), embora se privilegiasse o agrupamento de soldados da mesma origem numa mesma unidade, quanto mais não fosse por razões práticas (entre as quais estavam as da língua).
Os povos do Cáucaso e da Ásia Central também se fizeram representar nas SS, uns na qualidade de voluntários, outros recrutados à força entre os prisioneiros feitos ao Exército Vermelho, dando origem a unidades SS “exóticas”, formadas por tártaros da Crimeia (Tataren-Gebirgsjäger-Regiment) e turquestaneses (Osttürkische Waffen-Verbände)
Um dos casos mais insólitos e inesperados foi a Indische Legion, uma unidade recrutada entre estudantes indianos na Alemanha e prisioneiros indianos capturados no Norte de África e comandada por Subhas Chandra Bose, um ardoroso, obstinado e pouco esclarecido combatente pela causa independentista indiana (ver “Nazis de turbante e outros 10 episódios menos conhecidos da II Guerra Mundial“).
A elasticidade dos critérios para ingresso nas SS atesta que a ideologia nazi, em vez de uma construção racional, rigorosa e rígida, era uma amálgama de arbitrariedades e preconceitos que podia ser moldada ao sabor dos caprichos dos líderes e das vicissitudes do momento.
Os Einsatzgruppen
De todos os ramos SS, aqueles que mais justificaram a aura tenebrosa da instituição, foram as SS-Totentkopfverbände (“Unidades de Caveira”) e os Einsatzgruppen (“Grupos tarefa”). Estes últimos eram esquadrões de morte paramilitares cuja especialidade era o massacre de grupos considerados perigosos e indesejáveis. Não eram unidades de combate e as suas vítimas eram primordialmente civis e prisioneiros de guerra: judeus, antes de mais, mas também ciganos, a elite polaca e Comissários do Povo e quadros do Partido Comunista soviético. A sua supervisão estava confiada ao omnipresente e (tragicamente) eficiente Reinhard Heydrich.
Os Einsatzgruppen começaram a sua actuação, de forma embrionária, ainda antes da guerra, na Checoslováquia, mas foi em 1939, na Polónia, que “a tradição da ocupação SS teve a sua iniciação numa crueldade deliberada, no sadismo e nas mortes arbitrárias” (Koehl). A sua missão na Polónia teve por objectivo a destruição de todos os que pudessem ser vistos como repositórios da identidade polaca – políticos, altos funcionários, oficiais, professores, padres, intelectuais, aristocratas – e as listas de pessoas a eliminar começaram a ser coligidas seis meses antes da invasão de Setembro de 1939.
Mas era nos territórios sob controlo soviético que se concentrava o maior número de judeus: 1.35 milhões na Polónia Oriental (ocupada pela URSS em Setembro de 1939), 300.000 na Bessarábia e Bukovina (territórios romenos anexados pela URSS em Junho de 1940), 260.000 nos estados bálticos (anexados pela URSS em Junho de 1940) e dois milhões na Ucrânia e Bielo-Rússia. Quando da Operação Barbarossa, em Junho de 1941, a cada um dos quatro grupos de exércitos foi adstrito um Einsatzgruppe, que seguia na peugada das forças de combate.
Os alvos dos Einsatzgruppen na URSS incluíam, além dos judeus, os Comissários do Povo do Exército vermelho e quadros do Partido Comunista, bem como todo o tipo de elementos indesejáveis” – a contabilidade da actuação do Einsatzgruppe A nos primeiros cinco meses nos estados bálticos inclui 136.421 judeus, 1.064 comunistas, 653 doentes mentais e 56 guerrilheiros. Depois de exterminada a maioria dos judeus, os Einsatzgruppen focaram a sua actividade na repressão da guerrilha soviética, que chegaria a congregar, em 1944, 650.000 homens.
Os Einsatzgruppen incitaram os habitantes locais a colaborar no extermínio de judeus, tirando partido do anti-semitismo presente em boa parte do Leste europeu (não é por acaso que o termo “pogrom” tem origem russa), um sentimento entretanto acicatado na Polónia que sofrera ocupação soviética, nos estados bálticos e na Ucrânia pela convicção de que os judeus tinham colaborado com as forças repressoras soviéticas. O incitamento encontrou frequentemente eco e pelo Leste europeu eclodiram pogroms levados a cabo por civis e pelas unidades auxiliares de polícia, geralmente sob o olhar aprovador de forças alemãs.
Os Einsatzgruppen foram também uma demonstração de como os estudos universitários, embora sejam eficazes na produção de gente bem-falante, poucos efeitos positivos parecem exercer sobre o carácter: três dos Einsatzgruppen eram comandados por doutorados – um deles, Otto Rasch, com um duplo doutoramento – e entre os 17 líderes das sub-unidades do Einsatzgruppe A, havia nove doutorados.
Um sobrevivente de um genocídio mais próximo de nós no tempo, o do Ruanda em 1994, haveria de chegar a conclusão análoga, quando observou que a instrução não torna “o homem melhor, apenas mais eficiente”. E quer os actos levados a cabo pelos Einsatzgruppen no terreno, quer os esmerados relatórios que deles davam conta, são um impressionante atestado de eficiência.
Apesar de, no imaginário corrente, o Holocausto ser invariavelmente associado às câmaras de gás, dos 6 milhões de vítimas, um terço dos judeus foi eliminado pelos Einsatzgruppen, em execuções em massa com armas ligeiras e metralhadoras pesadas. Os judeus eram conduzidos, em grandes grupos, para lugares relativamente isolados, e instruídos a despirem-se e descerem para uma vala ou perfilarem-se junto à sua borda, de forma a que os cadáveres tombassem para o seu interior, sem necessidade de intervenção adicional dos executores.
Em Agosto de 1941, Himmler decidiu inspeccionar in loco a monstruosidade que ele mesmo concebera e assistiu a uma execução em massa de judeus perto de Minsk, a cargo do Einsatzgruppe B comandado por Arthur Nebe. O espectáculo agoniou-o a ponto de o fazer vomitar, o que o levou a pedir “a Nebe que inventasse um método menos horripilante de execução em massa do que apenas fuzilar pessoas” (Adrian Weale, em A verdadeira história da SS).
Os campos de extermínio
Nebe acedeu ao pedido de Himmler e solicitou que Albert Widmann, do Instituto Técnico Criminal de Berlim, estudasse o assunto. O primeiro método ensaiado recorreu a explosivos, mas mostrou-se pouco eficaz e expedito (“um piquete de trabalho passou quase todo o dia seguinte a retirar partes de corpos das árvores e da vegetação rasteira nas imediações”, conta Weale). Passou-se então ao gaseamento, primeiro com camiões de mudanças modificados, em que os gases de escape do motor eram canalizados para o compartimento calafetado onde as vítimas eram amontoadas. O gaseamento por monóxido de carbono em “câmaras de gás móveis” revelou-se eficaz e teve ampla aplicação, continuando a ser usado nalguns campos mesmo depois de o gaseamento por ácido prússico (Zyklon B) em “câmaras de gás fixas” se ter tornado no método de extermínio preferencial.
Num total de 35.000 homens que desempenharam funções de guarda nos campos de concentração e extermínio, 1/3 não eram das SS e nem todos os SS eram das Unidades Caveira, já que a falta de efectivos levou a que, no fim da guerra, se recorresse a Waffen-SS feridos, inaptos para o combate.
A maioria dos guardas não-SS eram Hiwis (Hilfswilliger = ajudantes voluntários), designação dada a desertores e prisioneiros de guerra soviéticos que escolheram colaborar com os nazis, em unidades auxiliares (embora deva assinalar-se que a outra alternativa da escolha era a provável morte por inanição e exposição aos elementos nos campos de concentração para militares soviéticos). Os Hiwis que receberam instrução das SS no campo de concentração de Trawniki, na Polónia, para serem guardas de campos de concentração passaram a ser conhecidos por Trawnikimänner (“homens de Trawniki”) e foram eles a fazer o trabalho mais sujo nos campos de extermínio e no esmagamento da revolta do gueto de Varsóvia. Os Trawnikimänner, maioritariamente de origem ucraniana, não estavam imbuídos de qualquer ardor pela ideologia nacional-socialista, a maioria queria apenas escapar às pavorosas condições dos campos destinados aos prisioneiros de guerra soviéticos. As SS seleccionavam-nos em função do grau de anti-semitismo e anti-comunismo, o que explica que muitos dos episódios mais sádicos e brutais nos campos de extermínio tenham sido protagonizados por Trawnikimänner.
Os icónicos uniformes negros das SS, que tinham deixado de ser usados pelas SS, acabaram por ser resgatados aos depósitos de fardamento: Himmler ordenou que fossem enviados para Leste para equipar os Trawnikimänner e restantes Hiwis (depois de removidas as insígnias das SS), pelo que tais fardas acabaram por ficar associados às mais terríveis atrocidades desencadeadas pelas SS, mesmo que através de interpostos agentes.
Toda a verdade
A verdadeira história da SS de Robert Lewis Koehl ostenta, na edição portuguesa, um título algo presunçoso, como se os outros livros sobre as SS difundissem falsidades ou como se o livro de Koehl trouxesse revelações sensacionais que poriam em causa as ideias aceites sobre as SS. Tal presunção contrasta com a modéstia do título original, The SS: A history, ou seja “uma história”, entre várias possíveis. A “verdade” parece ser uma obsessão dos editores portugueses, pelo menos no que respeita às SS, já que The SS: A new history (2010), de Adrian Weale, foi por cá editado em 2014, pelo Clube do Autor, com (quase) o mesmo título: A verdadeira história das SS.
Poderia pensar-se que o leitor português interessado na história do III Reich estaria razoavelmente bem servido com estas duas “verdadeiras histórias”, mas não é o caso. Para começar, ambos os livros comungam de uma mesma lacuna: não há mapas, quadros, organigramas ou qualquer tipo de infografia. E, no entanto, sem esse tipo de informação, a complexidade da história das SS, com as suas numerosas ramificações, repartições e departamentos e as sucessivas mudança de nomes e competências, não passa de um emaranhado inextricável.
Por outro lado, nenhum dos livros revela algo que não seja do domínio público há muito, nem estabelece novas e iluminadoras ligações entre factos já conhecidos (embora a capa do livro de Weale se ufane de ser “baseado em documentos inéditos e classificados”, o que a sua bibliografia não corrobora).
As SS: Uma perspectiva burocrática
O historiador norte-americano Robert Lewis Koehl (1922-2015), que durante a II Guerra Mundial integrou os serviços de informação do Exército dos EUA, para os quais realizou numerosas entrevistas na Europa libertada, e cuja tese de doutoramento, defendida em 1950, teve Himmler por objecto, até poderá ser das pessoas deste planeta que mais informação reuniu sobre as SS e o nacional-socialismo, mas o seu talento para a transmitir é, a julgar por este livro, muito limitado.
Talvez por ter passado a vida imerso na Alemanha dos anos 20-40, Koehl assume que os seus leitores estão perfeitamente familiarizados com o contexto histórico da República de Weimar e do III Reich e que conhecem detalhadamente os antecedentes, o posicionamento e a actuação de figuras como Ernst Röhm ou Erich Ludendorff, bem como todos os enredos da política nazi. Tome-se por exemplo a alusão feita, en passant, na pg. 195 à colaboração de Goering e Himmler no “tramanço de Blomberg”. É duvidoso que haja alguém fora do círculo de académicos cuja área de estudo é o III Reich que saiba que o “tramanço de Blomberg” – conhecido mais formalmente como o “caso Blomberg-Fritsch” – foi uma manobra conspirativa destinada a obter uma mais completa submissão das Forças Armadas alemãs ao aparelho nazi, que tirou partido da descoberta fortuita, pela polícia de Berlim, de que Erna Gruhn, que acabara de casar-se com o Ministro da Guerra Werner von Blomberg, tinha sido prostituta e posara para fotos pornográficas, facto que serviu para Goering e Himmler chantagearem Blomberg, que se mostrava algo relutante em conduzir o país para a guerra, obrigando-o a demitir-se.
É rara a página em que Koehl não faz intervir duas ou três figuras novas, pelo que, mesmo que sejam alvo de uma apresentação sumária, o que nem sempre acontece, é improvável que quando regressam, umas páginas à frente, o leitor tenha retido o seu nome, funções e antecedentes. É inevitável que o leitor se interrogue a todo o momento “quem é este Wagener? Já apareceu antes? Este Schneidhuber estava à frente da Repartição Central de Pessoal ou de um campo de extermínio?”
Koehl consegue o prodígio de tornar a história de uma das mais poderosas, maquiavélicas e sinistras instituições da história, que esteve envolvida nos mais dramáticos momentos do século XX, tão mortiça como a história da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas do Schleswig-Holstein. O que parece despertar mais o interesse do autor são os aspectos formais e burocráticos: que departamentos foram criados e quando, com sede onde, com que competências, com que chefias, prestando contas a quem, sujeitos a que regulamentos e jurisdições. O desfile de designações e siglas não só se torna ingerível pelo leitor (a não ser que possua memória elefantina) como constitui um tema soporífero (a não ser para aqueles que estão mesmo interessados em saber qual a relação entre a Hauptamt Sicherheitspolizei e a Reichssicherheitshauptamt). É uma história feita de gabinetes, papel timbrado, arquivadores, formulários e ordens de serviço, onde o elemento humano poucas vezes assume o primeiro plano.
Já que o livro se centra em aspectos organizacionais, seria indispensável providenciar um quadro de equivalências de patentes militares entre as SS, o Exército alemão e os exércitos aliados (quantos leitores saberão distinguir um SS-Sturmscharführer de um SS-Standartenführer?) e um índice com as principais figuras da hierarquia das SS e do Estado alemão, mas o leitor terá de contentar-se com um glossário e um índice de abreviaturas.
A holding SS
O império económico criado pelas SS, em boa parte à custa de trabalho escravo e de unidades fabris confiscadas a judeus, é um dos aspectos mais fascinantes da história do III Reich – quanto mais não fosse pela assustadora combinação de ambição e incompetência de que se revestiu – mas Koehl despacha o assunto em menos de uma página e nem sequer refere a DWB (Deutsche Wirtschaftsbetriebte = Empresas Económicas Alemãs), que funcionava como holding das numerosas indústrias SS, muitas delas explorando trabalho-escravo, e que incluíam pedreiras de granito, fábricas de tijolos e telhas, fundições, padarias, vidreiras e fábricas têxteis.
O império económico SS é o espelho da insensatez, incongruência e inconstância de Himmler: a lógica brutal do “extermínio através do trabalho” (na verdade também através dos maus-tratos e das privações) colidia com a desesperada falta de mão-de-obra que afligia a Alemanha; a direcção das empresas era confiada a SS sem qualquer experiência ou inclinação para a gestão; as actividades económicas detidas pelas SS eram uma manta de retalhos sem qualquer nexo, que incluía agências imobiliárias, engarrafamento de água mineral (em 1944, 75% da água mineral produzida na Alemanha estava sob controlo da DWB) e a Fábrica de Porcelana Allach, que operava num sub-campo de Dachau e cuja principal produção eram “objectos de culto nórdicos” (quinquilharia associada às fantasias nazis envolvendo a mitologia nórdica). Não é de admirar que, mesmo não tendo de pagar mão-de-obra, a maior parte destes negócios desse prejuízo.
Se pouco diz sobre as indústrias detidas pelas SS, Koehl também não se detém sobre outra fonte de rendimento para as SS: o aluguer dos “seus” prisioneiros a empresas alemãs.
Apuramento de responsabilidades
Koehl considera que um pequeno grupo de SS, talvez uns 10.000, entre os muitos que foram destacados para a Frente Leste, “constituíram a força repressiva que tanto fez para que os alemães fossem odiados […] na União Soviética”. Neste número incluem-se os Einsatzgruppen, “as unidades anti-guerrilha, as administrações dos campos de concentração de Riga, Kaunas e Minsk, a rede de funcionários da Polícia da Ordem e da SiPO-SD, os administradores SS de quintas, minas e fábricas e os chefes superiores das SS e da Polícia e os seus subordinados regionais”. Entre estes, “umas quantas centenas de oficiais [das SS] com o posto de major e acima foram os meios letais que tanta devastação operaram. Das sinistras matanças de 1941 [pelos Einsatzgruppen] até à execução rotineira de prisioneiros de guerra, da liquidação de todos os habitantes de aldeias de ‘guerrilheiros’ ao sequestro de centenas de milhares de trabalhadores escravos, da pilhagem sistemática dos tesouros artísticos e dos museus soviéticos à brutal destruição de todas as instalações produtivas e de toda a vida antes de retirar – o corpo de oficiais SS […] deixou-se representar por uma fracção dos seus membros. Mas essa fracção foi condenada pela sua instrução, a sua selecção e as condições de uma guerra sem tréguas a ser a própria encarnação do demónio”.
Sem dúvida que numa hierarquia militar os soldados fazem o que os seus superiores ordenam, mas é excessivamente simplista atribuir a responsabilidade apenas aos oficiais – houve quem matasse por gosto, bem além do que lhe fora pedido ou até por iniciativa própria. Por outro lado, se é verdade que foi na Frente Leste e pela mão das unidades e entidades acima nomeadas por Koehl que os crimes mais tenebrosos foram cometidos, este parece esquecer-se de que também as Waffen-SS cometeram atrocidades – e algumas delas na Europa Ocidental, portanto sem a “atenuante” de estarem a travar uma guerra contra um “inimigo sub-humano”.
Não se compreende que um livro de 350 páginas sobre as SS deixe de fora os massacres cometidos pelas Waffen-SS em Wormhoudt, na Bélgica, logo em Maio de 1940 (80 prisioneiros de guerra britânicos e franceses), Malmedy, na Bélgica, em Dezembro de 1944 (84 prisioneiros de guerra americanos), Tulle, em França, em Junho de 1944 (213 civis, numa acção que envolveu também tropas da Wehrmacht), Oradour-sur-Glane, em França, em Junho de 1944 (642 civis, pela mesma 2.ª Divisão Panzer SS “Das Reich” que passara dias antes por Tulle), Marzabotto, em Itália, em Setembro de 1944 (770 civis) e Sant’Anna di Stazzema, em Itália, em Agosto de 1944 (560 civis, incluindo 130 crianças, em represália pelo apoio à guerrilha, tal como em Marzabotto).
Os cômputos globais de vítimas pouco dizem sobre o que realmente se passou nestes massacres e a natureza e disposição de quem os perpetrou. Ajudará saber que em Oradour-sur-Glane, depois de abatidos todos os homens da aldeia, chegou a vez das mulheres e crianças, que foram fechadas na igreja da aldeia, à qual foi ateado fogo, tendo as que tentaram escapar pelas janelas sido ceifadas pelas metralhadoras; que em Marzabotto, entre os 770 “bandidos” – assim rotularam as autoridades alemãs as vítimas da sua operação de limpeza – havia 45 com menos de dois anos de idade; e que em Sant’Anna di Stazzema o ventre de uma mulher grávida foi aberto com uma baioneta e o feto retirado e morto e que o propósito de suprimir toda a vida da aldeia foi estendido até à última cabeça de gado.
Parece seguro que estes actos não foram obra de demónios, mas de homens, capazes de sentir cansaço e fome e, eventualmente, sentimentos mais elaborados, o que é atestado pelo facto de os soldados da 16.ª Divisão Panzergrenadier SS que apagaram do mapa Sant’Anna di Stazzema, extenuados por três horas de matança, pilhagem e destruição, se terem sentado, à vista da aldeia em chamas, e terem aberto os seus farnéis e almoçado.
Epílogo: A guerra de cada um
Que tipo de SS terá sido Günter Grass?
Logo à partida, a tenra idade que tinha e a fase em que a guerra entrara quando fez parte das SS não eram conducentes a que desempenhasse o papel de carrasco. Tinha nascido em Danzig (hoje Gdańsk, na Polónia) em 1927, aos 15 anos prestou serviço, como outros rapazes da sua idade, como auxiliar da Luftwaffe, guarnecendo um canhão anti-aéreo que não terá tido muito uso, já que os principais raids aliados tinham outras cidades por alvo. Pelo meio, tentou, sem sucesso, oferecer-se como voluntário para os submarinos, impelido por uma concepção heróica (alimentada pela propaganda) da vida desses marinheiros e pela necessidade de escapar ao sufocante ambiente familiar e à relação tensa com o pai (a fiarmo-nos no que escreveu em Descascando a cebola).
Em 1944, com 16 anos, foi chamado para a Reichsarbeitsdienst (RAD, Serviço de Trabalho do Reich), que funcionava como uma ante-câmara do serviço militar.
No Outono desse ano, pouco depois de concluído o período no RAD, Grass recebeu uma convocatória para se apresentar em Dresden. Só quando chegou ao destino soube que seria incorporado na 10.ª Divisão Panzer SS “Jörg von Frundsberg”; antes recebeu treino ao longo de alguns meses como artilheiro de tanque. A 10.ª Divisão Panzer SS tinha sido bastante maltratada na Frente Ocidental e, após ter sido reconstituída, regressou ao combate na Alsácia, em Janeiro de 1945. Foi em seguida enviada para Leste, primeiro para a Pomerânia e depois para a Lusácia, para tentar conter uma brecha aberta pelo Exército Vermelho, entre Forst e Muskau, a sudeste de Berlim. Foi nesta altura que Grass se lhe juntou. Tinha 17 anos.
Sempre segundo Descascando a cebola, o baptismo de fogo de Grass teve lugar no início de Abril de 1945, quando a sua unidade foi sujeita a um demolidor bombardeamento por lança-foguetes soviéticos – os célebres “órgãos de Stalin”. O seu comportamento esteve longe de ser heróico – escondeu-se debaixo de um tanque e “morto de medo, mijei as calças” – mas ao seu lado, acaçapado sob o mesmo tanque, estava um oficial SS, de alta patente e ostentando uma Cruz de Cavaleiro, cujos dentes batiam como castanholas.
Nos dias seguintes, Grass participou nalguns combates, em grupos desgarrados de soldados, que não correspondiam a nenhuma unidade formal e tentavam, atabalhoadamente e de forma errática, conter o avanço do Exército Vermelho. Os esforços foram vãos e Grass acabou a fugir como pôde dos soviéticos e a tentar reunir-se à sua unidade (a pena para os desertores era o fuzilamento). Um outro soldado desgarrado, mais velho e experiente, que se tornou seu parceiro na fuga, deu-lhe um conselho: “Escuta miúdo, se os russos nos apanham, estás feito. Eles olham para esses ornamentos no teu colarinho [as runas SS] e dão-te um tiro no pescoço e nem sequer fazem perguntas”. O companheiro arranjou-lhe um uniforme da Wehrmacht, Grass desfez-se do seu e prosseguiram a fuga. A 20 de Abril, Grass foi ferido em mais um ataque soviético e a guerra terminou para ele. Terminaria para todos, poucos dias depois: Hitler suicidou-se a 30 de Abril, a Alemanha rendeu-se incondicionalmente a 7 de Maio. Uns dias depois, Himmler, que empreendera uma tentativa de fuga trapalhona, a coberto de falsa identidade, foi preso por militares britânicos e não demorou que se apurasse quem realmente era. Suicidou-se a 23 de Maio, trincando uma cápsula de cianeto que tinha oculta entre os dentes.