Depois do avô morrer, Stefan Hertmans descobriu na casa onde ele viveu quase toda a vida dois pequenos cadernos. Um era “pequeno e grosso, com as extremidades das páginas manchadas de vermelho”; o outro era maior, “quase formato A4”, e tinha “uma antiquada capa de cartão marmoreado, a a fazer lembrar o faux marbre com que ele próprio adorava pintar as paredes”. Durante 30 anos, o escritor flamengo, nascido em Ghent, na Bélgica, manteve-os fechados. Estava convencido de que sabia o que estava no seu interior, então decidiu que só os leria quando tivesse tempo e disponibilidade. Quando isso finalmente aconteceu, sentiu-se culpado: afinal, aqueles dois cadernos manuscritos descreviam apenas da guerra que sempre tinha ouvido o avô falar. Nas mais de 600 páginas que Urbain Martien deixou escritas, Hertmans encontrou a história de uma infância pobre, a morte precoce do pai, um simples pintor de igrejas, e um mundo que há muito tinha desaparecido. O mundo do seu avô.
O processo de escrita daquilo que viria a ser Guerra e Terebintina, publicado em Portugal no início deste ano, não foi fácil. Como poderia o escritor flamengo nas palavras do seu avô e transformá-las num livro? Foi só quando a sua editora lhe disse para parar de escrever o livro de Urbain Martien e começar a escrever o livro sobre Urbain Martien que Stefan Hertmans encontrou a forma certa de o fazer. O resultado foi um romance que não é bem um romance, e que é também um testemunho da Primeira Guerra Mundial, da História da Flandres, uma autobiografia e uma reflexão sobre o tempo e a passagem dele. Ao mesmo tempo que mostrou os horrores da “primeira guerra tecnológica” nos campos flamengos, onde soldados mal armados tentavam aguentar as trincheiras, Hertmans construiu uma espécie de tratado sobre o ser humano e a capacidade que este tem para superar todas as diversidades. E fê-lo enquanto tentava compreender o seu avô, sobre o qual achou sempre que sabia tudo e sobre o qual, afinal, não sabia quase nada.
O Observador falou com Stefan Hertmans durante a sua passagem por Lisboa, para apresentar Guerra e Terebintina, romance nomeado para o Man Booker Prize International em 2017 e alvo das melhores críticas por parte da imprensa estrangeira. O The New York Times chamou-lhe “um livro sério e digno” que é também “antiquado”, e que por isso parece ter sido “construído para durar”; o The Guardian não teve dúvidas: Guerra e Terebintina tem todos os ingredientes “de um futuro clássico”.
É preciso crescer para entender o tempo
Em Guerra e Terebintina conta a história do seu avô, Urbain Martien. Tem por base as memórias que ele deixou escritas em dois pequenos cadernos, que encontrou, por acaso, depois de ele morrer. Como é que foi esse encontro com as últimas palavras do seu avô?
Foi terrivelmente emocional. Mantive os cadernos fechados durante 30 anos porque achei que sabia o que é que lá estava. [Achei] que era sobre a guerra, e eu ouvi-o falar sobre a guerra durante todos os dias na minha infância. Quando comecei a lê-los, foi um choque muito grande. Percebi que ele tinha escrito sobre a pobreza, a juventude, sobre um mundo que desapareceu completamente. Sobre Ghent, na Flandres.
Agora, Ghent é uma cidade rica, está na moda, progrediu. Os prédios históricos foram restaurados, há Airbns em todo o lado como em Lisboa e os preços estão a aumentar. Na minha juventude, ainda estava cheia de carvão, tinha masmorras, havia pessoas com pequenos jardins cheios de couves. Era tão diferente! [Para escrever este livro,] vi que tinha de voltar ainda mais atrás e perceber como é que era em 1900. Tive de fazer muita pesquisa sobre como é que era naquela altura e ver essas camadas de tempo. [Fiz] um estudo sociológico sobre como as pessoas eram naqueles tempos. Fiquei muito surpreendido ao descobrir que, embora fossem muito pobres, adoravam cultura. Se pensarmos no populismo de agora, diz-se que a classe trabalhadora e os pobres só estão interessados em futebol e que a cultura — como a pintura e a música — é elitista. Naqueles tempos, aquelas pessoas pobres poupavam dinheiro durante um ano para que pudessem assistir a uma ópera de Verdi, porque a ópera era um símbolo de revolução. Hoje, é um símbolo da burguesia. Tive de reformular todas estas coisas para que pudesse compreender como é que aquele tempo era.
E depois houve ainda o facto de o pai dele ter sido um artista pobre e a mãe uma burguesa que abandonou a sua classe porque se apaixonou por um artista anarquista. Era um casamento muito apaixonado, depois ele morreu de tuberculose. E aqui estamos nós: no meio de um mundo sobre o qual eu não sabia que ele tinha escrito. A emoção que senti está também relacionada com o facto de ter ficado muito surpreendido. E senti-me imediatamente culpado.
Porquê?
Porque tinha esperado tanto tempo. Mas, por um lado, tinha mesmo de ter esperado tanto tempo. Um livro assim, sobre a passagem do tempo, não pode ser escrito quando somos jovens.
Porque é preciso sentir e compreender a passagem do tempo?
É preciso tempo para compreender o que a vida faz connosco. O início do envelhecimento é uma fase muito importante porque todas as nossas definições mudam — a nossa definição de amor, das crianças, dos nossos pais. Quando temos 40 anos, começamos a compreender que somos tal e qual os nossos pais. Quando somos novos, podemos odiá-los [risos].
E pensar que nunca vamos ser como eles.
Exato. Mas quando chegamos aos 45, pensamos: “Sou tal e qual a minha mãe!” [risos]. Depois, quando chegamos aos 50, pensamos: “Coitada da minha mãe… O que é que eu lhe fiz?”. Entre os 20 e os 30, achamos que a nossa mãe é insuportável. É assim que as coisas são. É o que a vida faz connosco. E depois a nossa filha vai dizer: “Oh, a minha mãe! Não quero ser como ela”.
É um ciclo.
Sim, é um ciclo. Por isso foi bom ter começado a escrever este livro quando já tinha 60 anos. Tinha 59 quando comecei a escrevê-lo. Aos 59 anos, não me sentia velho. Para o meu avô, já era uma idade avançada. As minhas tias [irmãs do meu avô] eram idosas aos 40. Agora, as mulheres de 40 anos estão no ginásio, com os headphones nos ouvidos a fazer jogging. Portanto, tive de repensar estas coisas todas para conseguir entender o mundo dele. Essa foi a primeira emoção com que tive de lidar. A segunda emoção foi, obviamente, a guerra, e a terceira a sua paixão secreta. E aqui temos as três partes do meu livro, as três emoções iniciais que senti.
Quando é que decidiu transformar as memórias do seu avô num romance? No livro, dá a entender que não foi uma decisão fácil de tomar.
Comecei a escrever um dia depois de ter lido os cadernos, mas o que fiz primeiro foi tentar passá-los para o computador. Ele é que era o escritor — eu era apenas o datilógrafo. “É um testemunho tão importante, vou escrevê-lo”, pensei. Só que é preciso ter noção de que o flamengo e o holandês são línguas que se modernizaram muitíssimo. Mudaram muito na pronúncia, no vocabulário e nas expressões, e o flamengo do meu avô era muito antiquado. Ninguém o ia ler. Tive uma crise de lealdade porque queria publicar o documento do meu avô. Não existem muitos soldados que tenham escrito 600 páginas sobre a guerra, pois não? Ou sobre a sua juventude antes de 1900. Então pensei, ok, vou ter de ser eu a fazê-lo. Mas de que forma? Com que tom?
Comecei por escrever um verdadeiro romance biográfico. Comecei com o seu nascimento. Procurei efemérides do dia em que nasceu, 9 de fevereiro de 1891, e escrevi sobre o seu nascimento, sobre a mulher à espera do médico. Bla, bla, bla. Tinha 15 páginas antes de ele nascer. Tinha 200 antes de ele chegar aos de anos. Pensei que isto ia ser o Charles Dickens na Flandres [risos]. Ninguém precisa disso, então tive de arranjar uma forma de cortar o que não interessava. Não queria uma cronologia do nascimento até à morte porque isso não era interessante — era previsível. A minha editora disse-me para parar de escrever o livro dele. “Escreve o teu livro sobre ele.” Foi como se tivesse levado uma pancada na cabeça. “É isto que vou fazer!” Ela disse-me para começar com as primeiras recordações que tinha dele, e foi isso que fiz. O livro começa na praia de Oostende, que é uma espécie de paródia de um quadro, a Praia de Oostende, do [belga] James Ensor. Comecei com um momento que aconteceu quando ele tinha 65 anos mas depois voltei atrás, a quando ele era rapaz. Ao estragar a cronologia, tornei-me livre. Era o centro, estava a contar a história, era uma personagem no livro. Não queria ser o deus-autor, a escrever sobre uma história objetiva, queria ser subjetivo. Isso libertou-me imenso.
A terceira parte [do romance] é sobre o que ouvi sobre ele e sobre o que li sobre a sua juventude. São as duas coisas combinadas. Porque também havia rumores sobre as suas histórias. A sua paixão secreta, Maria Emelia, era um rumor sobre o qual ninguém falava — era demasiado doloroso. Tive de falar com pessoas e fazê-las lembrar de coisas. Falei com o meu pai, que viveu naquela casa e que era genro do meu avô. Na segunda parte, segui literalmente o que ele escreveu — o “eu” é “ele” porque não consegui apropriar-me disso. Hoje em dia há muita discussão sobre apropriação cultural, mas não consegui apropriar-me culturalmente dele. Era a parte dele, parte da guerra, [e é por isso que] não estou na segunda parte. Mas na primeira e na terceira estou lá para o apoiar, por assim dizer. Sou o neto que está a tentar compreendê-lo.
Foi fácil transformar o seu avô na personagem de um romance? Não se tratou de um processo de criação normal.
Não, porque metade [do livro] é ficção, claro. Tive de encontrar um equilíbrio entre a personagem literária do meu avô e a pessoa que eu conheci. Foi muito difícil antes de encontrar a forma, mas depois de ter encontrado esta forma tripla, esta hagiografia, esta paródia da vida dos santos, correu bem. Pude criá-lo e vê-lo novamente como ele era. E, ao descrevê-lo como ele era, tornei-o noutra coisa. A metamoforse num romance é uma coisa muito estranha… Portanto, existe este equilíbrio entre a minha imaginação e a realidade, que é muito complexo. Só quando estiver há muito tempo morto é que os cadernos do meu avô serão dados a um grupo de investigadores que poderá compará-los com o meu livro e ver a enorme diferença entre eles. Mas também poderá ver que tirei muitas coisas deles. Segui-o quase literalmente na segunda parte. É mesmo o que lhe aconteceu. No resto, segui a verdade da vida dele mas fiz a minha própria versão. É um romance! Há coisas na guerra sobre as quais ele escreveu apenas duas linhas e eu fiz uma cena inteira porque pensei que era incrível. A minha maneira de lidar com os cadernos dele foi semelhante a um acordeão — às vezes mexi-o muito, e fiz uma coisa mesmo espetacular, e noutros momentos comprimi-o. Perguntam-me, afinal de contas, o que é que é verdade? E eu digo que a verdade está na história. O mais importante é os leitores sentirem que há veracidade na história. Cerca de 80% das coisas aconteceram-lhe, e isso é suficiente.
O flamengo e a história esquecida da Primeira Guerra Mundial
Guerra e Terebintina não é apenas um livro sobre o seu avô, a sua história. É também um livro sobre si.
Sim, é um livro autobiográfico. É uma autobiografia, é um livro sobre arte, sobre paixão e amor, sobre o tempo…
… Sobre História.
Sim, sobre História.
A História da Primeira Guerra Mundial, a História da Bélgica…
E também sobre política, sobre o que aconteceu ao meu país [a Bélgica] durante a guerra. Porque no mosaico da literatura europeia, não havia romances sobre isso. Éramos a única língua que não tinha romances sobre o que aconteceu na Primeira Guerra Mundial.
Porquê?
Porque a situação do flamengo era muito complexa. A Bélgica foi fundada em 1830 como um país monolingue onde se falava o francês, mas 60% da população não fala francês, fala flamengo.
Isso acontece ainda hoje?
Sim. Mais de 60% [da população não fala francês]. Mas agora temos todos os nossos direitos, [a Bélgica] é oficialmente um país bilingue. No norte, fala-se holandês. O flamengo é uma versão do holandês. Temos o mesmo vocabulário, o mesmo dicionário, mas usamos as coisas de maneira diferente. É como o alemão da Áustria e o alemão da Alemanha. Existem menos diferenças do que entre o português de Portugal e o português do Brasil e são semelhantes às que existem entre o inglês britânico e o inglês norte-americano, que têm uma história completamente diferente. O flamengo foi esquecido, por assim dizer.
Com as guerras religiosas do século XVI, fomos dominados por Espanha. Houve a Reforma e fomos dominados pelo catolicismo. Mas o norte ficou sob o domínio do protestantismo, germânico e calvinista. É por isso que o povo holandês tem uma história totalmente diferente da nossa. No século XVII, já eram independentes, enquanto os flamengos foram esquecidos sob domínio dos zelotas e depois da Inquisição espanhola. Os espanhóis têm muito má fama na Flandres. Houve a Inquisição, houve terror. Mataram praticamente todos os intelectuais que estavam do lado dos protestantes e muitos fugiram para Amesterdão. Antuérpia estava dominada pela Inquisição [do Duque] de Alba. Depois caímos sobre o domínio dos Habsburgos. Maria Theresa [a única imperatriz da dinastia dos Habsburgos] queria arrastar-nos para o Iluminismo, mas ainda assim não falávamos flamengo. Ou melhor, [falávamos mas] era um dialeto, não era uma língua. Mais tarde, fomos dominados pelos franceses, e depois dos franceses tornámo-nos de facto belgas mas sem um reconhecimento da língua. A Primeira Guerra Mundial é um momento de crise, durante o qual os flamengos nas trincheiras diziam: “Estamos a morrer por um país que não nos reconhece. Nem sequer existem universidades com a nossa língua”. Foi por isso que começou a emancipação da Flandres. Isto aparece no meu livro, mas não queria enfatizá-lo demasiado. Não queria que torná-lo demasiado político.
Isso torna-se evidente nas cenas em que descreve, através das palavras do seu avô, como as tropas flamengas eram menosprezadas e até mal tratadas pelos oficiais belgas que falavam francês.
As elites falavam francês. Ainda temos um bocadinho essa situação em Bruxelas. Podemos entrar numa loja, pedir uma coisa em holandês e ouvir como resposta: “Je ne comprends pas” [“Não compreendo”]. Que se lixe o flamengo! Mas, no resto do país, estamos em paz. Podemos ler coisas muito más sobre a Bélgica, mas não é como na Jugoslávia. Portamo-nos bastante bem, até mesmo em Bruxelas. As novas gerações tentam falar as duas línguas, mas, ainda hoje, os bilingues são os flamengos. Falamos francês, mas quem fala francês não fala flamengo. É típico dos falantes do francês, não costumam falar outras línguas.
Mas a aprendizagem do flamengo tem sempre de ser feita em casa. A língua não é ensinada nas escolas.
Não. Depois da Primeira Guerra Mundial, houve uma espécie de insurreição. Os inimigos alemães deram aos flamengos a primeira universidade flamenga. Isso foi complicado. Se alguém se sentia agradecido, era como se estivesse a colaborar. Era muito esquizofrénico. Na Segunda Guerra Mundial, muitos flamengos ainda se sentiam oprimidos pela burguesia que falava francês e voltaram a colaborar com os alemães. Mas colaborar durante a Primeira Guerra Mundial era quase como ser da esquerda progressista. Colaborar durante a Segunda Guerra Mundial era colaborar com os nazis e o Holocausto. É por isso que o movimento flamengo foi completamente desacreditado e que a minha geração é anti-nacionalista. Não queremos ter nada a ver com o nacionalismo. Somos internacionalistas. É também por isto que foi tão difícil para os escritores flamengos escreverem sobre a Primeira Guerra Mundial — era demasiado complexo. Havia uma espécie de trauma — um nacionalista flamengo não ia querer escrever sobre isso porque sabia que tínhamos culpa na Segunda Guerra Mundial e nós, do lado progressista, dizíamos “que se lixe a história flamenga, não estamos interessados”. Só que depois descobri as memórias do meu avô e disse: “Tenho de escrever sobre isto, tenho de me interessar sobre isto”. Por isso, também tive uma crise pessoal. “Será que devo escrever sobre esta história flamenga?” Claro que sim. Os alemães, os franceses e talvez também os portugueses, todas as grandes nações têm grandes romances sobre a Primeira Guerra Mundial. Nós não. Só agora é que temos grandes romances sobre a Primeira Guerra Mundial e sobre o que aconteceu nos campos da Flandres. É uma história horrível. O ataque dos alemães à Flandres foi um crime de guerra que nunca foi reconhecido. Nunca. O meu livro foi publicado na Alemanha, e este é um tema muito delicado lá.
Isso mostra como, passados tantos anos, existem questões relacionadas com a Primeira e com a Segunda Guerra Mundial que precisam de ser abordadas, discutidas. Não é um assunto que esteja encerrado, muito pelo contrário. E ainda existem tabus.
Porque é aquilo que define a nossa identidade. A Primeira Guerra Mundial é mais difícil de entender do que a Segunda. Na Segunda, havia um homem mau e tínhamos de escolher um lado. Na Primeira, toda a gente era uma espécie de idealista. De repente, isto começou a ficar desequilibrado por causa dos Balcãs. Ninguém o previu. Uma semana antes da guerra, o kaiser Wilhelm II enviou um telegrama, que estava muito na moda porque era novo na altura, para o czar [Nicolau II, que era seu primo] a dizer que não iam para a guerra. Uma semana depois, foi o caos completo. É mais interessante para nós, contemporâneos, porque se calhar não estamos outra vez a conseguir ver o que aí vem. O populismo, o Brexit, a economia, a migração, a ecologia e o clima… O que é que vai fazer com que as coisas percam o equilíbrio? A Europa é como um barco [que abana], não estamos estáveis neste momento. Não sabemos como é que isto vai acabar. É por isso que acho que é muito interessante neste momento ler sobre a Primeira Guerra Mundial.
O que aconteceu antes e depois da Segunda Guerra Mundial é muitas vezes referido a propósito do ressurgimento de todos estes movimentos nacionalistas dentro do espaço europeu. Apesar disso, considera que estamos muito mais próximos do que se viveu durante a Primeira Guerra Mundial?
Absolutamente. A Segunda Guerra Mundial foi um bom western. Havia o bom e o mau. E muito horror, claro. Não nos vamos esquecer que, por exemplo, na Hungria o antissemitismo voltou.
Como é que se explica que um país que sofreu tanto com o nazismo esteja a seguir nesse sentido?
É difícil de perceber, mas o que podemos dizer é que houve 50 anos de domínio comunista.
E essa realidade está mais presente do que a presença nazi, por mais terrível que tenha sido.
Sim. Viveram num mundo fechado durante muito tempo. Quando as portas foram abertas, isso criou um choque. Acordaram de um pesadelo e quiseram voltar à sua identidade. E o que é que é a identidade de alguém? É aquilo que não é a minha identidade. Porque, e basta saber um pouco de psicanálise, a identidade é uma ilusão, é alguma coisa que nos disseram que somos. É alguma coisa do exterior que foi impressa em nós, na qual nos tornámos e que interiorizámos. Na verdade, não existe nenhuma identidade profundamente verdadeira, mas essa é uma verdade que pode ser terrível. Quando essa ameaça surge, a primeira coisa a fazer é ir às nossas raízes e afastar o que é estranho. Na Bélgica, a primeira coisa que nos parece estranha são os muçulmanos. “Fora com os muçulmanos!”, dizem eles. A construção de identidade precisa de uma vítima.
Pronto, isto é o mundo em que vivemos, e isto está a estilhaçar a Europa. E porque é que a Europa está a estilhaçar? Porque os Estados Unidos da América forçaram-nos a criar esta grande Europa demasiado depressa, para trabalhar contra os países do antigo bloco de leste antes que fosse tarde de mais. E o que fez o Putin? Formou gangues. Há uma agenda específica de cada lado da Europa, e aí existem semelhanças com o que aconteceu há 100 anos. Acho que um escritor nunca deve ser um missionário. Não estou a pregar, não estou a moralizar. Acho que a literatura moralizante é má literatura. Posso moralizá-la numa entrevista, mas não estou a moralizar o meu livro.
Mas pode fazer com que os seus leitores pensem sobre determinados assuntos.
Sim. Posso contar uma boa história e fazê-los escutarem uma boa história. É isso que tenho de fazer, mas depois há aspetos dessa história que fazem pensar. Se fosse um escritor que oferecesse isso numa colher e dissesse “abre a boca e diz: aaah”, então leitores diriam “não, obrigado”. Mas se sentirem que as coisas vão acontecer, então vão pensar com a própria cabeça. É isso que a literatura deve fazer. É uma parábola, é sobre o que aconteceu. Na verdade, este é apenas um livro sobre um homem modesto, que não queria ser um herói, que não estava interessado em ser um herói, mas que o foi. Foi ferido cinco vezes. Só descrevo duas ou três porque é suficiente. Caso contrário, teria sido de mais. Voltou sempre e depois houve a morte daquela rapariga… Que ele não conseguia ultrapassar…
Voltando um bocadinho atrás, ao capítulo que dedica à Primeira Guerra Mundial. Além de ter mostrado como era a guerra na frente belga e como eram tratados os soldados flamengos, também descreveu, da perspetiva do soldado Urbain Martien, como era o dia a dia nas trincheiras. Também fala muito de como a população sofreu, de como as suas terras e propriedades foram devastadas pelos alemães e de como muitos belgas foram violentamente assassinados. Este é um lado que não costumamos ver.
Sim, suponho que sim. O mais horrível é que esta foi a primeira guerra tecnológica. Antes disso, era Waterloo, e Waterloo era como um jogo de futebol. Dez mil soldados de um lado, dez mil do outro. E uma das duas equipas ganhava. [Durante a Primeira Guerra Mundial, havia] muitas armas a entrar no país, havia zepelins. Devem ter borrado as calças quando viram um zepelim a deixar cair bombas pela primeira vez… Pensava-se que Antuérpia era invencível, mas demorou dois dias a ser conquistada. E [havia] as bombas de fragmentos, que não só explodiam mas que também lançavam centenas de pequenos pedaços que desfaziam caras, barrigas, abriam os soldados ao meio. Os alemães faziam cruzes nas balas para que elas não entrassem a direito e deixassem um buraco enorme nas costas. Era completamente novo, ninguém o podia ter previsto. É por isto que esta guerra foi um pesadelo tão grande. E em 1917 houve o primeiro ataque de gás [mostarda]. Aqueles pobres rapazes não faziam ideia do que se passava. Sabe o que é que eles faziam? Urinavam nos seus lenços e a urina era pressionada contra o nariz. Era a única coisa que se podia fazer por causa do gás, mas ainda assim morriam. O meu avô viu os rapazes com quem tinha brincado na rua a morrerem com as barrigas abertas e a chorarem pela mãe. E depois voltava-se desta guerra e não se podia contar nada disto às pessoas. Era impossível. A maioria dos soldados nunca falava sobre isso. Muitos leitores vieram ter comigo e disseram: “Tive um avô como o seu, mas ele nunca disse uma palavra. Nunca”. Por isso é que o meu é uma grande exceção.
O que é que ele costumava contar daquele tempo?
Isso é muito interessante. Ele falava da guerra todos os dias, mas eram as coisas triviais. Davamos-lhe uma chávena de café e ele dizia: “Oh, o café nas trincheiras era horrível”. Via um avião e dizia: “Os aviões dos alemães voavam muito baixo”. Estava sempre a falar da guerra, mas das coisas inocentes. Aquilo que ele escreveu nos cadernos não eram as coisas inocentes, eram os pesadelos. Acho que, quem passou por isso, sente-se culpado quando começa a falar disso.
Porquê?
Primeiro, porque sobreviveu. Isto é muito típico dos sobreviventes do Holocausto. Sentem-se culpados — a mãe morreu, a sobrinha morreu, o sobrinho morreu… “Porque é que eu sobrevivi?” Em segundo lugar, podem falar sobre isso, mas parece que estão a ser sensacionalistas. Se contarem o que viram, [as outras pessoas] vão dizer: “Oh, que horror!”. Quem realmente passou por isso, não quer essa reação. É demasiado difícil. Acho que é aqui que a linguagem para. É a isto que chamam “trauma” — é quando não existem palavras e não podemos ser curados porque não podemos falar sobre isso. [Naquele tempo,] não havia psicólogos. O meu avô recebeu eletrochoques nos anos 60, quase 50 anos depois [de ter estado na guerra]. Tinha episódios de paranoia, achava que a casa estava cheia de microfones. O médico disse aquele ele precisava de eletrochoques, mas nos anos 60 eram horríveis. Às vezes, as pessoas partiam as costas porque saltavam com os choques. Isto ainda é feito, mas é muito mais refinado. Ele voltou para casa e estava partido pela terceira vez — partido pela guerra, pela morte de Maria Emelia e pelos eletrochoques. E voltou a chorar sentado na sua casa de vidro no jardim. E voltou novamente a erguer-se com dignidade e a pintar.
A morte de Maria Emelia
A morte de Maria Emelia foi a grande tragédia da vida dele.
Sim, não foi a guerra.
Ou a morte precoce do pai, Franciscus, vítima de tuberculose. Foi a morte de Maria Emelia.
Mas claro que a morte da rapariga foi acrescentada a tudo o resto. Em primeiro lugar, ele era um homem muito sentimental. Ele chorava quando ouvia Schubert, as lágrimas caíam-lhe pela sua cara.
E pintava.
Pintava, como o pai, para superar.
Foi assim que ele conseguiu lidar com todas as tragédias da sua vida? Foram muitas.
Sim. Acho que, para ele, a arte era transcendental e catártica. Sem dúvida.
Muito mais do que era para o pai.
Sim, o pai era um pintor de igrejas. Para ele, tornou-se transcendental.
Porque, no caso do pai a pintura era também um trabalho.
Sim, enquanto que para o meu avô tornou-se nalguma coisa existencial. Sim, está muito certa nisso. Depois havia a questão da rapariga [Maria Emelia] que era parecida com a sua mãe. Acho que estava apaixonado pela mãe, era edipiano. Mas ele não sabia nada de psicanálise. Ele adorava a mãe e quando o pai morreu, [ele, que era] o filho mais velho, que é sempre o substituto do pai, tornou-se o homem da casa. Trabalhou numa fundição de ferro quando tinha 13 anos. Era trabalho infantil.
Foi aí que ele assistiu à primeira morte. Não foi na guerra, foi no local onde trabalhava.
Sim. Na linguagem do cinema, chamamos-lhe um flashforward do que lhe ia acontecer. A fundição de ferro é uma metáfora da guerra. Foi muito bom poder construi-lo dessa forma [risos]. Mas não ter conseguido superar a paixão por Maria Emelia teve a ver com o facto de ela ser uma cópia da sua mãe. Os rapazes que estão apaixonados pela mãe muitas vezes apaixonam-se por raparigas que são uma versão mais nova dela. Foi o que ele fez. Quando Maria Emelia morreu [vítima de uma pneumonia], ele deixou de ter futuro no mundo. Existem histórias de soldados que, depois de voltarem da guerra, começavam a chorar quando viam leite a ser fervido numa panela. Era um sinónimo de felicidade, e eles não conseguiam suportar isso. Ou quando viam uma mulher a passar a ferro. Começam a chorar por causa daquele cheiro [a roupa engomada]. Por isso, quando se apaixonavam, eram horrivelmente sentimentais. Adoravam mulheres, mas sexualmente não eram emancipados. Sexualmente, o meu avô nunca foi um verdadeiro adulto. Nunca teve uma vida sexual adulta. A minha avó, Gabrielle, foi a sua segunda escolha.
Gabrielle era a irmã mais velha de Maria Emelia e os dois casaram por sugestão do pai das duas. Apesar disso, e de tudo o que apontou, parece que eles tiveram um casamento feliz.
E de certa forma tiveram, o que também é muito interessante. Se não fizermos sexo uma ou duas vezes por semana, pensamos que temos uma crise no nosso relacionamento. A sexualidade tornou-se num sinal de um bom ou de um mau relacionamento. Não era nada assim naquele tempo. Ele devia ter sentimentos sexuais, como é que lidou com eles? Certamente que nunca se masturbou, isso era impensável.
Há uma cena no livro em que ele o faz.
Nas trincheiras, mas inventei-a, porque acho que ele, pelo menos, há-de ter tido esses pensamentos. Sabemos que muitos dos soldados se masturbavam diariamente para lidarem com o pânico, mas obviamente que depois se sentiam culpados porque, naquele tempo, era pecado. Era o pecado mais horrível, ia-se parar ao inferno por causa disso. Imagine como era. Eles não tinham sequer como lidar com o pânico, a sexualidade era uma coisa má. Nem sequer podiam falar sobre isso — não havia linguagem, não havia noção, não havia psicanálise, não havia auto-análise. Não havia nada. Era tirar o chapéu, rezar e dizer: “Desculpa, desculpa, desculpa”. Por isso, consigo imaginar o meu avô a sentir-se muito à vontade com uma mulher que não tinha sexualidade.
Mas depois pintou o quadro de Velázquez.
A mulher nua com a cara da sua amada no espelho. É tão trágico… Gostava de poder pegar nele e de o abraçar. Coitado…
Imagino que deve ter sido difícil lidar com todas estas descobertas. No livro, diz que o seu avô era o seu herói.
Sim, e depois tornou-se num homem ferido.
Descobriu que ele também era humano?
Sim, foi isso que aprendi.
E que não era nenhum super-herói.
Não era, mas para mim claro que era. O nosso pai ou a nossa mãe são sempre, de certa forma, super-heróis. Até aos nossos dez anos, depois isso começa a mudar. É também por isso que este livro é sobre o tempo e sobre como o tempo faz com que nos tornemos mais aberto, mais tolerantes, como aconteceu com aqueles que vieram antes de nós. E claro que a alegoria central do livro é o relógio. Para mim, tudo gira em torno de ter deixado cair o relógio [que o meu avô me deu e que tinha pertencido ao seu pai] porque é um símbolo de como deixamos cair a vida dos nossos avós e pais. É muito difícil pensar neles como jovens de 22 anos a fazer amor. É muito difícil, e não queremos saber isso. Mas foram, e se começarmos a pensar neles assim, enquanto jovens, começamos a percebê-los um bocadinho melhor.
O seu avô não era um super-herói mas era um homem muito forte.
Era um homem terrivelmente forte. E sozinho. Mesmo entre a família, estava sozinho. Mas, ao mesmo tempo, era o homem que cantava para mim, caminhava comigo, brincava comigo, sonhava comigo. Por isso, [este livro] também é uma homenagem à força do ser humano e a um género de ser humanos que estão a desaparecer. Ele estava sempre a dizer :“Oui, mon commandant, oui mon commandant” [“Sim, meu comandante, sim, meu comandante”]. Para aquela geração, não havia “não”. Para a nossa, ser corajoso é dizer “não”. Ser corajoso, naquela geração, era dizer “sim”. Aprendi muitas destas coisas ao escrever este livro.
A rapariga judia de ascendência viking que atravessou o Mediterrâneo
Já escreveu outro depois deste, A Convertida, recentemente publicado em França.
Sim, está a ter algum sucesso em França e agora vai ser publicado em inglês.
E pode desvendar um bocadinho sobre o que é que trata?
Sim, com grande prazer. Comprei um casa numa pequena aldeia da Provença, nas montanhas. Uma casa antiga que tive de restaurar, num vale com lavanda e tomilho. É o paraíso. Alguns anos depois, ouvi pessoas na aldeia falarem sobre um antigo tesouro escondido nas rochas. Chamam-lhe o “Tesouro de Monieux”. A aldeia chama-se Monieux. Também havia um cemitério judeu ali. Um amigo, deu-me um artigo científico escrito por um investigador de Chicago que, em 1966, analisou um manuscrito traduzido que fala sobre uma rapariga da nossa aldeia. Foi escrito por um rabi em 1096, e fala sobre uma rapariga cristã que se apaixonou pelo filho do rabi mais importante em França. Eles fugiram juntos. Demorei dois anos até descobrir de onde é que ela era — era do norte, e provavelmente de descendência escandinava porque em Loré havia vikings. Depois de esta rapariga se converter ao judaísmo, [ela e o rapaz cristão] viveram em Narbonne durante seis meses. Os cavaleiros do pai foram à procura dela. Ela devia pertencer a uma família muito importante para o pai dela ter dinheiro para enviar seis cavaleiros à procura dela e os mandar percorrer 900 quilómetros. O rabi enviou-os para a minha pequena aldeia, na Provença. Viveram lá felizes durante seis anos até à chegada dos cruzados, que mataram todos os judeus, o marido dela e levaram os dois filhos deles. Isto está escrito no manuscrito, e onde é que este foi encontrado? Numa sinagoga no Cairo, no século XIX, juntamente com mais de dois mil documentos, que estão na Universidade de Cambridge. Fui lá, tive o manuscrito da rapariga no meu bairro nas minhas mãos. Foi muito emotivo. Depois pensei: uma rapariga cristã, de descendência viking, loira, com olhos azuis, tornou-se numa judia sefardita no Egito. Atravessou o mar Mediterrâneo como refugiada porque os cruzados cristãos estão a fazer uma jihad. Ela fugiu do ódio dos cristãos porque se tinha tornado judia. Os pogroms [ataques violentos contra judeus] começaram durante a vida dela. Ela era uma refugiada como os que temos agora, a atravessar o Mediterrâneo. O livro tem duas camadas. Primeiro descrevo, o que lhe aconteceu. Foi preciso muita pesquisa. Entrei em contacto com aquele professor em Chicago. Ele ainda está vivo, tem 86 anos, e está completamente perplexo que um escritor belga esteja a escrever sobre a rapariga dele de Monieux. Na segunda camada, é que começo a fazer a sua diáspora. Fui ao Egito, fui a Espanha porque ela foi condenada à fogueira em Espanha.
A maioria das pessoas que leram este livro [Guerra e Terebintina] e que leram o que escrevi a seguir, dizem que o último é ainda mais forte porque presto homenagem a uma mulher forte. Há 40 anos que estou obcecado pela Antígona [figurada mitologia grega, filha de Édipo, e personagem principal de uma tragédia de Sófocles], a mulher que diz não ao seu futuro. As mulheres nos meus livros são sempre uma espécie de Antígona. São Antígonas que se erguem contra o seu destino. Há um aspeto feminista ai que me interessa muito. Li todas as grandes filósofas do feminismo — Rosi Braidotti, Luce Irigaray, Judith Butler. Li todas as teorias sobre o papel das mulheres e isso interessa-me muito. [A Convertida] é uma grande história, que começou com a rapariga do meu barro na minha aldeia na Provença. Acho que até encontrei as ruínas da antiga sinagoga, nas montanhas. É [um livro] sobre a Europa antiga, guerras religiosas.
É curioso como são as histórias que vão ao seu encontro e não o contrário.
Elas entram no meu casaco e dizem “escreve-me”. Não sou um escritor que anda à procura de histórias. As histórias veem ter comigo e dizem: “És o meu escritor, tens de me contar”. Adoro isso. Estou a escrever um livro sobre a casa onde vivi há 20 anos e onde, aparentemente, viveu uma dos maiores nazis da Flandres. E no segundo andar, havia uma rapariga comunista que escondia judeus.
Enquanto ele vivia no mesmo prédio?
Não, enquanto ele estava na prisão. E ela escondeu uma rapariga judia que era namorada de Gustav Klimt. Na minha casa. Chamo a estes três livros uma trilogia, a minha trilogia documental, na qual tento fazer romances híbridos, que têm uma parte de jornalismo, de história, de imaginação e de autobiografia.
Este romance não é de facto um romance típico. É uma mistura de diferentes géneros.
Não, não. Para mim é muito importante, enquanto escritor, que se altere o romance e que o romance seja também um meta-romance. Que o romance também seja sobre o que um romance possa ser. Perguntaram ao Julian Barnes sobre o seu último livro, que era de luto pela mulher que tinha morrido: “Sr. Barnes, isso ainda é um romance?”, e ele disse: “Um romance é o que escrevo”. Isso é muito interessante. Nós é que decidimos o que é um romance, não são as universidades. As universidades tem de nos seguir a nós. Nós é que o fazemos. Para mim é muito fascinante não escrever apenas um romance, mas mudar a definição do que é um romance.
Até porque não existem nenhuma lei que obrigue a que a literatura seja de determinada forma.
Não, apenas temos de escrever e ousar. Ousar estar sozinhos. porque quando começamos a escrever numa outra forma, estamos sozinhos. Sou um grande admirador de pintores como William Turner. Ele devia sentir-se tão sozinho a fazer o que fazia! Toda a gente achava que ele era maluco. James Joyce estava completamente sozinho, não havia nenhum modelo para o que ele estava a fazer. Isso é bom, inventar o nosso próprio modelo.
Isso significa que é preciso estar-se sozinho para criar?
Sim, acho que sim. nem a minha mulher lê o que estou a escrever. ela lê quando esta a ser impresso. tenho um casamento perfeito, adoro a minha mulher, mas ela não pode ler o que estou a escrever. às vezes quando ela chega a casa, e eu estou na cozinha a fazer o jantar, ela percebe que estou distraído e que aconteceu alguma coisa no meu livro. às vezes digo-lhe: “Foi um dia estranho… Uma das personagens morreu. Estou surpreendido, não o tinha previsto, mas morreu”.
Então a criação de personagens é um processo muito emocional. Pessoal, até.
Sim, claro. Eu criei-as e matei-as. Sou eu também. A minha editora, uma mulher fantástica que vive em Amesterdão, disse-me em relação à Covertida: “Stefan, só há uma maneira de contar a história desta rapariga de há mil anos. Apaixona-te por ela”. É verdade, tive de me apaixonar por ela para conseguir escrever como ela era. Isso é interessante. Quando ela morre, eu sinto-o. Fui eu que decidi que ela ia morrer, ou então foi o livro que decidiu que chegou a hora. É uma coisa estranha, as personagens vivem. Não digo que o meu avô fosse exatamente como está no livro, eu tornei-o naquilo. Muitas vezes perguntam-me o que é que o meu avô diria. Foi traduzido para chinês, japonês, árabe, hebraico, grego, turco, persa…
É famoso.
É conhecido em todos os cantos do globo. O que é que diria? Geralmente respondo que acho que ele ficaria muito zangado. Em primeiro lugar, porque traí os seus segredos sexuais, dos quais não podiam falar. Talvez me chamasse um traidor. Talvez ficasse orgulhoso, mas acho que não. Acho que ficaria horrorizado por saber que os japoneses estão a ler sobre ele. Era um homem modesto. Dois anos antes da sua morte, o rei da Bélgica tornou-o cavaleiro, por isso passou a pertencer à pequena nobreza. Sabe o que é que ele fez com o título? Olhou para ele, guardou e disse que não estava interessado. Meteu-o no sótão debaixo dos brinquedos das crianças. Nunca falou sobre isso. Quando estive em Berlim há uns anos, estive nos túneis e vi um slogan publicitário muito bonito: “Os heróis verdadeiros não se parecem com ele”. Temos uma imagem tão kitsch dos heróis, mas um verdadeiro herói é aquele que se atira para dentro de água por causa de uma criança quando ninguém o previa que fizesse. Isso é que é um herói de verdade e ele era assim.