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Em 2019, nas ruas de Cartum gritava-se “Cai, só isso!” Era um aviso a Omar al-Bashir, que governava o Sudão há 30 anos com mão-de-ferro. Dois anos depois — já Bashir caiu há muito —, as ruas de Cartum voltaram a encher-se de palavras de ordem esta segunda-feira. “O povo está mais forte!”, gritaram os manifestantes que se opõem ao golpe de Estado consumado pelos líderes militares esta segunda-feira, que retirou de vez o poder das mãos dos civis.
A página de Facebook do ministério da Informação do país, uma das fontes ligadas ao governo deposto, confirmou que o Exército respondeu aos protestos disparando munições reais. Eric Reeves, ativista que tem alertado para as violações de direitos humanos no Sudão há vários anos, diz esperar uma escalada de violência para os próximos dias: “O povo do Sudão sente que lhe foi roubada a sua revolução. A raiva que era tão visível em 2019 vai certamente reemergir”, diz ao Observador. “E irá quase de certeza enfrentar uma repressão violenta do Exército e das forças paramilitares.”
Ao final do dia de segunda-feira, mais de 25 pessoas tinham sido feridas e duas morreram. Ali Verjee, especialista no Sudão que fez parte de missões europeias no país, garante ao Observador que o número irá quase de certeza subir: “Ainda estamos numa fase muito inicial. Se os protestos se alastrarem a outras cidades para lá de Cartum, a resposta das forças de segurança deverá ser ainda mais brutal.”
Uma transição marcada desde sempre pela influência militar
O tumulto iniciou-se na manhã de segunda-feira com a detenção do primeiro-ministro, Abdalla Hamdok, e da sua mulher, ambos estando ainda em parte incerta. O golpe de Estado consumou-se com a conferência de imprensa do general Abdel Fattah Abdelrahman Burhan, onde este assumiu a intervenção militar, justificando-a com as divisões internas no país: “As Forças Armadas vão continuar a completar a transição democrática”, prometeu Burhan, antes de anunciar que o estado de emergência entrava em vigor a partir desse momento.
Transição é a palavra-chave. O Sudão vivia ainda esse momento desde o derrube de Bashir, em 2019, quando uma vaga de protestos populares levou à queda do regime.
Sudão. Retrato de um país que expulsou um ditador, mas não ficou com o poder
Na sequência da revolução, foi criado o Conselho Soberano, que unia por um lado forças militares e, por outro, grupos políticos e sociais. O Conselho geria os destinos do país até às primeiras eleições livres, apontadas para 2024, tendo Hamdok sido nomeado como primeiro-ministro interino. Mas as tensões entre civis e militares dentro daquele organismo eram evidentes já há muito. “A transição nunca foi fácil”, resume Verjee. “Duas pessoas oporem-se a algo — neste caso a Bashir — não é necessariamente o mesmo que estar unido no mesmo desejo de futuro para o país.”
O Exército, diz o analista, sempre teve um propósito muito particular no derrube de Bashir: “Manter o controlo sobre uma parte significativa do Estado.” Agora, ao fim de dois anos de transição marcados por tensão com os seus parceiros civis, os militares decidiram agir para manter esse mesmo controlo.
A ação surgiu depois de meses particularmente tensos. Em setembro, as autoridades sudanesas confirmaram uma tentativa de golpe de Estado por forças “próximas a Bashir”. Ao mesmo tempo, na passada semana, realizaram-se no país os maiores protestos desde a queda do antigo líder, com os manifestantes a deixarem claro que queriam evitar uma tomada do poder pelos militares.
Uma situação que, para Reeves, deverá ter assustado o próprio Exército, que temeu ser definitivamente afastado do poder. Mas, como relembra Verjee, este não é um dado novo: “O que aconteceu nestas 24 horas é indicativo de uma realidade mais profunda”, afirma ao Observador. “A de que os militares querem ser o ator mais importante no aparelho do Estado.”
É precisamente por isso que analistas como Eric Reeves dizem não estar surpreendidos com os acontecimentos desta segunda-feira: “Já há muito que temia a possibilidade de um golpe de Estado. Era uma situação que estava a crescer desde agosto de 2019, quando foi assinada a declaração constitucional”, diz o ativista, referindo-se ao documento que previa o estabelecimento de um regime completamente civil no Sudão.
Os militares sempre mantiveram uma influência profunda no governo interino ao longo destes dois anos. Em Porto Sudão, no leste do país, manifestantes têm tentado bloquear a atividade económica ligada ao Mar Vermelho — uma ação que os líderes civis acusam de ser fomentada pelos militares. Mas a influência é também mais direta, como apontava um relatório do European Council of Foreign Affairs de 2020: os dois generais mais poderosos do país, Burhan e Hemedti, lideraram negociações com grupos rebeldes, conduziram todas as iniciativas de Defesa à margem dos líderes civis do Conselho Soberano, e dominam uma série de comités que lidam com questões como o combate à Covid-19, a luta contra a corrupção e a situação de emergência económica. Este último comité é um exemplo claro do domínio discricionário dos militares, tendo o general Hemedti chegado a canalizar 200 milhões de dólares do seu próprio bolso para o Banco Central do país na qualidade de presidente do dito organismo.
O controlo do Exército é evidente: o primeiro-ministro já admitiu que 80% dos recursos públicos do país estão “fora do controlo do ministério das Finanças”, o que, explica o Daily Sabah, significa que estão nas mãos dos militares.
Ocidente quer garantias democráticas, países do Golfo e Egipto manter-se-ão “discretos”
São também as motivações de enriquecimento pessoal que estão na origem da ação dos militares, crê Eric Reeves: “Eles querem manter o poder real, ou seja, continuar a enriquecer. E, ao mesmo tempo, apresentar a nova junta militar como um fait accompli à comunidade internacional”, declara o ativista.
Num país com uma crise económica tão profunda como o Sudão, a reação da comunidade internacional reveste-se de particular importância. Os EUA e outros países ocidentais têm enviado milhões de dólares em ajuda humanitária para o país, na tentativa de manter o Sudão no rumo democrático. Ainda no início de 2021, como relembra o Wall Street Journal, o FMI anunciou um programa de perdão de dívida ao país que eliminará mais de 50 mil milhões de dólares de dívida — mas que, em troca, exigia uma série de reformas económicas impopulares.
Com a concretização da transferência de poder para as mãos dos militares, o apoio ocidental pode esfumar-se, avisa Ali Verjee: “Estes países querem uma transição democrática e o seu apoio está ligado a essa condição”, avisa. O governo norte-americano já reagiu aos acontecimentos das últimas horas dizendo-se “muito alarmado”. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, também já condenou publicamente o golpe de Estado, pedindo “respeito pela declaração constitucional, a fim de proteger a transição política conquistada”.
I condemn the ongoing military coup in Sudan. Prime Minister Hamdok & all other officials must be released immediately. There must be full respect for the constitutional charter to protect the hard-won political transition. The UN will continue to stand with the people of Sudan.
— António Guterres (@antonioguterres) October 25, 2021
Ao mesmo tempo, outros países “para quem a natureza da transição não é assim tão importante”, segundo Verjee, mantêm-se atentos. É o caso da chamada “troika árabe” — Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Egipto —, que aproveitaram a saída de Bashir, até então apoiado pelos rivais Turquia e Qatar, para cooperar com o Sudão. “Creio que estes três países serão muito mais discretos [na sua condenação]”, diz o analista. E, possivelmente, continuarão a apoiar economicamente o país.
Na sua declaração pública, o general Burhan garantiu esta segunda-feira que a transição terá um fim, que o objetivo de entregar o poder aos civis mantém-se e que o Sudão irá a eleições ainda mais cedo do que o previsto, já em 2023. Reeves tem dúvidas de que essa seja uma intenção genuína: “Isto é só uma SOP para a comunidade internacional, não é um compromisso real”, afirma, recorrendo à sigla de Standard Operating Procedure, um termo emprestado do mundo dos negócios para se referir a procedimentos obrigatórios que cumprem uma série de princípios.
Ali Verjee também alimenta dúvidas: “Qualquer um pode realizar uma eleição. A questão é como será a qualidade dessa eleição”, alerta o especialista. “O facto de o ato eleitoral ser antecipado pode indiciar que aqueles que estão no poder agora querem preparar-se para continuar o poder. Talvez até façam como o próprio Bashir: depois do golpe de Estado de 1989, despiu a farda e concorreu à presidência. Quem sabe se não será igual?”