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Em mais de 30 anos de um percurso tão cheio e diverso, com PJ Harvey é como se o tempo nem sequer tivesse passado, como se nem sequer existisse, sinónimo de que a artista sempre soube respeitar o verdadeiro tempo: o dela
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Em mais de 30 anos de um percurso tão cheio e diverso, com PJ Harvey é como se o tempo nem sequer tivesse passado, como se nem sequer existisse, sinónimo de que a artista sempre soube respeitar o verdadeiro tempo: o dela

Marisa Cardoso

Em mais de 30 anos de um percurso tão cheio e diverso, com PJ Harvey é como se o tempo nem sequer tivesse passado, como se nem sequer existisse, sinónimo de que a artista sempre soube respeitar o verdadeiro tempo: o dela

Marisa Cardoso

SZA estratosférica, PJ Harvey numa vénia à eternidade e Mitski engolida por si mesma: assim foi o primeiro dia do Primavera Sound Porto

Num dia dominado por atuações e por um público no feminino, PJ Harvey mostrou que é eterna e SZA um trovão caído no coração da indústria pop. A desilusão da noite teve um nome: Mitski.

Há estrelas que se adivinham antes mesmo de se fazerem brilhar na sua plenitude. SZA deixou um indelével rastilho no céu quando lançou CTRL, em 2017 e, cinco anos depois, como se previa, explodiu com SOS. Foi nesta condição astral, e com parcerias com nomes como Kendrick Lamar ou Doja Cat pelo meio, que Solána Imani Rowe chegou ao Primavera Sound (que começou esta quinta-feira) para se estrear em Portugal. O que é que ela fez? Levou o estatuto à letra e garantiu um dos melhores momentos do arranque de mais uma edição.

Aparecendo num cenário tirado de um estúdio de Hollywood, no qual um grande navio ocupava toda a área de palco e se ia transformando consoante as projeções que o habitavam, SZA mandou todas as munições para jogo e deu um concerto que podia entrar numa qualquer final da superbowl. Ou seja, um concerto estratosférico.

Tudo ali foi estudado ao milímetro, começando desde logo pela narrativa. SZA entrou com a pujante Seek & Destroy, fez uma cavalgada em crescendo até Low (momento em que se agarrou a uma wrecking ball, qual Miley Cyrus), sentou-se no seu navio para as interpretações intimistas de Nobody Gets Me, Saturn”, single de avanço do novo álbum Lana, e Normal Girl, voltando a atear fogo em I Hate U e Kill Bill até ao grand finale de Good Days e o encore de 20 Something.

Marisa Cardoso

As entradas em cena de Ari”o”Neal, guitarrista trovejante conhecida como Ms Fender e companheira de palco da nada mais nada menos rainha Beyoncé, condimentaram uma atuação que não se poupou em excessos. Ms Fender foi ao chão em Garden (Say It Like Dat), num solo cheio de trejeitos de Guns N’ Roses, arrastando consigo SZA, para êxtase das raparigas que estavam atrás de nós gritando “so hot!”. O êxtase, aliás, foi geral, do início ao fim e até ficámos admirados como nenhuma fã explodiu de emoção naquela hora e uns quantos pozinhos de concerto. Se calhar, até explodiu, mas com tanto artefacto, passou-nos ao lado.

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Talvez SZA, que tem uma amplitude vocal impressionante e se apresentou com um figurino tão provocador quanto indecifrável, pudesse ter sido ainda mais estelar se tivesse poupado na parafernália de estímulos que trouxe até ao Porto. Algures a meio, sentimo-nos zonzos, como se tivéssemos caído numa garrafa de absinto ou no Spectacular Spectacular do Moulin Rouge. Mas não a censuramos, longe disso: ela atingiu o patamar que poucos atingem e agora está a lambuzar-se com isso. Quem nunca se atirou de cabeça a um lauto banquete?

Ana Lua Caiano, Silly, Royel Otis e Amyl and the Sniffers: o primeiros naipes do festival

Horas antes, ao abrir das portas, a relva ainda estava farfalhuda, cheirando à chuva que caiu semanas atrás e à que há de vir, se a meteorologia não mentir. Relva onde Marta, Maria, outra também Maria e ainda a Margarida, quatro amigas entre os 19 e os 25 anos, se sentaram para bater umas cartas enquanto esperavam o furacão SZA. Montaram ali praça e dali não mais saíram durante todo o dia, para não perderem o lugar que lhes daria contacto privilegiado com a sua artista de eleição. Uns metros ao lado, um pequeno quadrado de relva vedado no recinto, à frente do palco, dizia-nos que ali só entrariam pessoas muito importantes, daquelas que têm uma zona só para elas nos festivais. Uma cena triste e tacanha que teima em se repetir neste género de eventos. O chão não devia ser vedado, o chão é das Marias, das Martas e das Margaridas que vêm de longe para ver as artistas que admiram e que as inspiram a serem donas delas mesmas, como cantaria Amaura umas horas depois, noutro palco sem mordomias.

Nisto, algo de bonito aconteceu: Silly entrou em cena, com toda a sua candura e firmeza no cantar. As quatro amigas continuaram a bater cartas, mas as canções de Miguela (2024), que lhes eram desconhecidas até então, deixaram-nas mais leves. O ar encheu-se de um zumbido de amor. Era o Primavera Sound a fazer soar os primeiros acordes da sua 11ª edição.

  • Ana Lua Caiano
    Marisa Cardoso
  • Silly
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Deixámos o palco principal e o jogo renhido de copas para trás, para ir espreitar Ana Lua Caiano na outra extremidade do recinto. Bem acompanhada por um público conhecedor das suas letras e maneirismos, Caiano apresentou-se segura, explicando como a sua música era construída por loops de bombos, adufes, teclados e sintetizadores; como a sua música, melodias montadas no silêncio do quarto, mas com manta estendida para servir o mata-bicho a meio da manhã, é também o loop da vida, daqueles que trabalham de cabeça colada ao chão e dos que acordam com ideias mal cozidas.

Um a um, os quatros palcos foram ganhando vida, como as flores ao despertar. O Plenitude foi habitado pela subespécie rara do R&B nacional, Amaura, abrindo o concerto com Nina Simone, e o Vodafone viu os Royel Otis dizerem que se sentiam muito bem diante a plateia numerosa que lhes calhara pela frente. Pelos gritos de quem abanava os cabelos nas primeiras filas, tornou-se evidente que os rapazes de Sidney têm uma considerável legião de fãs em solo nacional, alguns deles envergando tote bags da primeira edição do Primavera Sound, quando ele ainda se chamava Optimus e se autoproclamava o baluarte do indie. Nem de propósito, a música dos Royel Otis parece tirada dessa época. Fechando os olhos por uns breves segundos, tivemos flashbacks de uns The Rapture e de uns Black Lips, eles que aqui se apresentaram no preciso ano de 2012.

  • Os Royel Otis
    Marisa Cardoso
  • Marisa Cardoso

Ficámos mais uns minutos para ouvir outros australianos, os Amyl and the Sniffers liderados pela visceral Amy Taylor. A temperatura ia descendo, mas neste concerto só sentiu frio quem quis. Entrando no delírio da indomável Amy, que lambeu o chão sem pedir licença e dedicou palavras de empoderamento a todos os amigos trans, não binários, gays e às ladies que ali estavam, com bandeiras queer em riste, não foi difícil acabar o concerto em tronco nu. Muitos assim o fizeram e bem. Nós vestimos o casaco e seguimos para outro ritual.

PJ Harvey no tempo certo, Mitksi em desalinho

Quando o sol se começou a pôr no mar de Matosinhos, soaram, ao longe, os sinos e sons de um outro mundo. Era PJ Harvey a chamar por nós. Apareceu vestida toda de branco, elfa com ramos de árvores a tingirem-lhe a batina. Ela, chegando-se à frente, fitou a plateia e inclinou levemente a cabeça, num gesto de reconhecimento. O público, entendendo o sinal, fez silêncio, daqueles silêncios que arrepiam, que nos colocam diante a grandeza dos gestos simples e nos despem do que é supérfluo e vulgar. Estava honrado o momento, a cerimónia podia começar.

O primeiro ato do concerto foi dedicado a I Inside the Old Year Dying (2023), o mais recente álbum, escrito entre o inglês e o dialeto do condado de Dorset, reencontro de Polly Jean com as suas raízes, evocando as suas luzes, as suas sombras, uma mitologia só sua cheia de seres tão sedutores quanto obscuros. Foi esse o tom que marcou a criteriosa escolha do alinhamento, viajando pelo primeiríssimo Dry (1992), Rid of Me (1993), To Bring You My Love (1995), Is This Desire? (1998), Uh Hur Her (2004) e Let England Shake (2011).

Amy Taylor, dos Amyl and the Sniffers

Marisa Cardoso

A cada faixa introduzida por PJ Harvey, instalava-se a sensação de que aquilo que ela nos trazia era de um tempo muito antigo, independentemente de se tratar de uma Prayer at the Gate ou de uma Dress; de uma The Words That Maketh Murder, interpretada com um instrumento-centauro nas mãos, (metade lira, metade acordeão de botões), ou de uma The Desperate Kingdom of Love, dedilhada numa guitarra acústica. Que mais de 30 anos de um percurso tão cheio e diverso nos aparecessem agora como se o tempo nem sequer tivesse passado, como se nem sequer existisse, era sinónimo de que PJ Harvey sempre soube respeitar o verdadeiro tempo, o dela. Fazendo-o, manteve-se disruptiva, atenta e atual. Tocou o mundo dos mortos para se manter viva, tocou a sua intimidade para se fazer divina.

A atuação terminou com Down by the Water e To Bring You My Love e com PJ Harvey a agradecer a paciência do público nos momentos em que os problemas técnicos com a guitarra atrasaram a passagem entre canções. Pode não ter sido o melhor concerto da carreira. Há quem diga que sim, há quem diga que não, que o de 2016 neste mesmo recinto, com ela vestida de cisne negro, é que foi. Pouco importam as comparações. O tempo diluirá tudo isso e, no final, apenas ficará a imagem de PJ Harvey inclinando a cabeça para nós, fazendo uma vénia à eternidade.

A atuação terminou com "Down by the Water" e "To Bring You My Love", com PJ Harvey a agradecer a paciência do público entre problemas técnicos

Marisa Cardoso

Levitando nestes pensamentos, pusemo-nos a caminho de Mitski. Pensávamos que a cantora e compositora nipo-americana, que esteve quase para desistir da música em 2019, iria perpetuar a gravidade e leveza de PJ Harvey, mas estatelámo-nos violentamente no chão. Depois de 15 minutos a deambular pela relva, para arranjar um lugar com visibilidade (claramente, o cancelamento de Lankum deixou muito público órfão que, não se revendo na catalã Maria Hein, afunilou para Mitski), sossegámos finalmente numa clareira para presenciar a inimaginável bizarria: Mitski Miyawaki, exageradamente teatral, exageradamente sentimental, desviou a atenção do essencial, da beleza das suas músicas, para se tornar uma sátira de si mesma. De tão exagerados foram os seus gestos – como quem diz, “vocês pediram sofrimento, então aqui têm aos magotes e aos pinotes” – que foi praticamente impossível seguir o guião do espetáculo. Foi uma pena. Faixas como Geyser, Heaven, bem como as híper-populares My Love Mine All Mine e Nobody mereciam outra seriedade, embora os fãs — grande parte da Gen Z — tivessem cantado e chorado cada refrão. Do concerto, nem um registo fotográfico ficou: a cláusula que nos obrigaria a assinar a cedência gratuita de fotos fez-nos recuar. Não pode valer tudo, Mitksi, por muito que tudo isto não passe de uma encenação.

O Primavera Sound Porto continua esta sexta-feira, com Lana Del Rey como prato forte. Os bilhetes para este segundo dia, que terá também Justice, The Last Dinner Party e Lambchop, há muito esgotaram. Esperam-se 45 mil pessoas no recinto, faça chuva, faça sol.

 
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