Está aprovado (na generalidade) o primeiro Orçamento do Estado do Governo de Luís Montenegro. Depois de meses de negociações tensas, sobretudo com o PS, o primeiro-ministro acabou por conseguir aprovar um Orçamento que, durante o debate na generalidade, o próprio Governo revelou ter dificuldade em apadrinhar. Mas ao mesmo tempo não quer que seja desvirtuado, no aviso mais significativo que, nestes dois dias, ficou para o processo que se segue na especialidade.
O debate foi longo, como é sempre, e o resultado final já era conhecido. Mas o debate serviu para dar pistas para o que aí vem. O processo de discussão e votações na especialidade ainda pode trazer dores de cabeça e o Governo mostrou estar ciente disso.
O resultado
Nos últimos meses foi a maior incógnita política: o Orçamento seria aprovado? Depois de longa negociação, o PS acabou por conceder a abstenção, viabilizando a proposta do Governo. Ou seja, o resultado desta votação já era conhecido ainda antes dela começar. PSD e CDS votaram a favor e os socialistas ficaram sozinhos neste apoio ao Governo, com todos os outros partidos a votarem contra.
A duração
É sempre uma longa empreitada: onze horas de debate parlamentar, divididas por um dia e meio. Nem mesmo o semáforo do presidente da Assembleia da República instituiu para controlar tempos encurtou este debate.
Os avisos
Com o Orçamento pré-aprovado, uma vez que o PS já prometeu a sua viabilização, o Governo virou-se para o próximo objetivo: garantir que a fase da especialidade, durante a qual se negoceiam as medidas em detalhe, decorre com o menor número de solavancos possível. Luís Montenegro abriu o debate a avisar que desvirtuar o documento seria uma “ofensa” aos portugueses que votaram nas últimas eleições; Paulo Núncio avisou os partidos de que o OE não pode acabar por ser uma “manta de retalhos” que resulte dos “conluios” da oposição; Hugo Soares insistiu que uma descaracterização do documento pelo mesmo partido que prometeu viabilizá-lo seria “inadmissível”. Ainda assim, o Governo acabou por ver uma nuvem no horizonte a surgir no fim do debate, quando Pedro Nuno Santos declarou que é preciso “continuar o esforço” de aumento das pensões em 2025, já depois de o Chega ter anunciado que apresentará uma proposta nesse sentido durante a especialidade. O primeiro obstáculo pode surgir daqui.
Os candidatos a líder da oposição
A líder parlamentar do PS fez uma intervenção tão crítica do Orçamento do Estado que, a dada altura, no PCP, António Filipe a subscreveu, provocando logo de seguida; por que razão o PS não votava contra? Os socialistas justificaram com a “responsabilidade” e tentaram, ao mesmo tempo, ir fazendo prova de que continuarão a ser oposição. Prometeram até, perante um desafio do Bloco, que “cá estarão” para votar contra a autorização legislativa para mexer na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas. E Pedro Nuno Santos, no discurso de encerramento, manteve em aberto a possibilidade de avançar com uma iniciativa para o aumento extraordinário permanente das pensões e ainda saiu do debate a dizer que concorda com o primeiro-ministro no “há vida para além do excedente”.
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Mas o facto de ter ficado sozinho na abstenção que permitiu aprovar o Orçamento foi aproveitada pelo Chega do início ao fim destes dois dias de debate. André Ventura insistiu sempre no novo bloco central e chegou mesmo a reclamar o posto de líder da oposição. Mas foi Luís Montenegro que colocou um travão a isso, afirmando que era uma questão “matemática” e que o maior partido da oposição era o PS. Numa altura em que a principal preocupação do Governo é com eventuais coligações negativas que possam travar as suas ambições orçamentais e acrescentar problemas à proposta inicial, a linha com o PS foi sóbria durante todo o debate.
O jogo das diferenças
É uma das grandes críticas de que o Governo tem sido alvo: este Orçamento, dizem e repetem partidos da IL ao PCP, podia ter sido apresentado pelo PS. Foi o argumento aproveitado por André Ventura quando quis anunciar que o país é agora governado por um bloco central, ou pela Iniciativa Liberal quando garantiu que até Joaquim Miranda Sarmento, na sua encarnação anterior como líder parlamentar do PSD, teria dificuldade em viabilizar este documento. O Governo dedicou boa parte do debate a desmentir que este seja um OE “socialista” e a tentar marcar diferenças. A mais repetida terá sido que este documento baixa impostos e não aumenta nenhum, uma “marca identitária” que a direita já ansiava por implementar desde 2015, como lembrou Paulo Núncio. A segunda é que, ao contrário do PS, este Executivo insistiu que não vê o excedente como um objetivo da sua política, enquanto “asfixia” os serviços públicos, as famílias e empresas. Não convenceu a maior parte da oposição, que passou o debate a colar os dois partidos do centro. E Hugo Soares até acabou o debate a citar, como António Costa costumava fazer, a canção de Jorge Palma: “Enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar”.
Os frenemies
Os partidos mais à esquerda chegavam a este debate com duas opções: atacar o PSD pelo Orçamento que apresentou ou atacar o PS pelo Orçamento que viabilizou. E cada um escolheu um caminho. Mesmo disparando contra o Governo, o PCP conseguiu nunca tirar os olhos dos socialistas: começou o debate a acusar o PS de deixar este OE passar porque, na verdade, o documento até mantém as políticas da maioria absoluta socialista; acabou a dizer que, com tantas críticas vindas do lado do PS, não percebia como é que o texto acabou aprovado. “Muita conversa e muita agitação”, resumiria a líder parlamentar do PCP, Paula Santos, mas na hora da verdade o PS viabilizaria o documento – e os comunistas concluiriam que o PS e o PSD estão igualmente confortáveis em governar com os respetivos orçamentos. O centrão acabava metido no mesmo saco.
No Bloco, a estratégia foi diferente: as “armadilhas” deste OE foram sendo elencadas pelos deputados bloquistas, que aproveitaram para puxar pelo PS e tentar provar que a esquerda consegue mostrar-se em sintonia. Aconteceu quando Joana Mortágua desafiou diretamente o PS a votar contra várias normas orçamentais, incluindo a autorização que o PSD pediu para mexer nas lei do trabalho em funções públicas. Conforme o Observador adiantou, o PS deverá fazer-lhe a vontade.
Os tabus
Os deputados (e os funcionários públicos) chegaram ao debate sem saber, ao certo, o que quer o Governo mudar na lei geral do trabalho em funções públicas quando inscreveu no Orçamento um pedido de autorização legislativa para alterar os regimes de doença, greve e férias. E saíram com as mesmas dúvidas. O mesmo sobre a regra de uma entrada por uma saída.
Bloco, Livre, PCP e PS insistiram nestes dois tabus mas receberam respostas vagas, nos dois dias de debate. Miranda Sarmento apenas adiantou que serão mudanças “mais administrativas e burocráticas” que incluem mexidas na comunicação — “comunicação!”, frisou — de greves, nas regras de mobilidade e para o “aperfeiçoamento” do sistema de avaliação. Alexandra Leitão (PS) admitiu mesmo travar a medida na especialidade dado que “não confia” no PSD nesta matéria e sugeriu até que a norma com o pedido de autorização poderia ir contra a Constituição.
Sobre a regra “uma entrada por uma saída”, a Esquerda fez várias vezes soar os alarmes (acusou o Governo de “falta de transparência”) e insistiu em saber como é que a medida se conjuga com a falta de trabalhadores em vários serviços públicos. “Onde vão cortar?”
O compromisso
Os deputados questionaram várias vezes o Governo sobre a taxa de carbono para esclarecerem: vai ou não aumentar em 2025 e, com ela, os preços dos combustíveis? Foi Graça Carvalho, ministra do Ambiente e Energia, a deixar o compromisso: a taxa “não vai aumentar” no próximo ano.
A garantia, no entanto, contraria o entendimento da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) que olhou para a subida da receita prevista na taxa de carbono no OE, de mais de 500 milhões de euros. E concluiu que esse valor é, em parte, explicado pelo aumento da procura, como o Governo tem dito. Mas outra parte, a maior, é explicada pela atualização anual da taxa cobrada nos combustíveis. Só assim o Estado poderá aumentar a receita desta taxa para o valor previsto, na leitura dos técnicos parlamentares, como escreveu o Observador.
O puxão de orelhas
Foi a expressão “ladrão” que provocou os protestos de vários deputados no hemiciclo. Na intervenção final pelo Chega, André Ventura fez a sua caracterização do OE: devia dar um “sinal” aos portugueses, mas se anunciou “dar com uma mão”, “tirou” com a outra. Traz “mais multas de trânsito, mais impostos sobre o consumo”. “É um Governo que é tão ladrão” quanto o anterior, disse mesmo. A expressão levou vários deputados a protestar — um deputado do PSD chegou mesmo a levantar-se e, apontando o dedo a Ventura, gritou: “És um mal-criado, pá!” Hugo Soares, líder parlamentar do PSD, pediu-lhe calma.
E José Pedro Aguiar-Branco viria a apelar à serenidade de todos. Já depois do fim da intervenção, renovou o apelo: disse ter ouvido das bancadas palavras como “escumalha” ou “miseráveis” e gestos que “não são apropriados”; lembrou que há escolas a assistir e que aquele não era um “exemplo de cidadania”; apelou à “contenção” em relação ao “vocabulário inapropriado”; pediu que se tratasse os adversários com “urbanidade” e que se cumprisse o Código de Ética. “Assim, estaremos a prestigiar a Assembleia.”