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"Comecei a escrever o livro em 2012, antes de se falar tanto em violência doméstica. Não fazia a mínima ideia de que em 2020, quando o livro saísse, haveria tantas notícias e tanta celeuma à volta da violência doméstica, da alienação parental, das sentenças que saem todas as semanas nos jornais..."
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"Comecei a escrever o livro em 2012, antes de se falar tanto em violência doméstica. Não fazia a mínima ideia de que em 2020, quando o livro saísse, haveria tantas notícias e tanta celeuma à volta da violência doméstica, da alienação parental, das sentenças que saem todas as semanas nos jornais..."

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

"Comecei a escrever o livro em 2012, antes de se falar tanto em violência doméstica. Não fazia a mínima ideia de que em 2020, quando o livro saísse, haveria tantas notícias e tanta celeuma à volta da violência doméstica, da alienação parental, das sentenças que saem todas as semanas nos jornais..."

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Tânia Ganho: “Não escrevi uma história de amor. Isto é posse. Isto é poder”

Aos sete anos que geraram "Apneia", o seu novo romance, Tânia Ganho chamou "O Processo". Violência doméstica e psicológica num drama familiar: "Não se sai incólume de uma escrita destas", diz-nos.

Em 2017, o país arregalou os olhos para o acórdão da Relação do Porto onde se via “com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”. A “deslealdade e a imoralidade sexual” da queixosa eram água na fervura da culpa do arguido, que agiu — agredindo a mulher com uma moca — “toldado pela revolta”. Esta e outras prosas bárbaras — paráfrases mais ou menos elaboradas do tradicional “estava a pedi-las” — não são, no país onde, na última década, mais de 500 mulheres foram assassinadas em contexto de intimidade, raridades bibliográficas.

Nada disto está em Apneia, quinto romance da escritora e tradutora Tânia Ganho — embora tudo isto esteja lá de outra maneira. A realidade não ultrapassa a ficção, mas segue por ela adentro de forma a que não podemos deixar de dar pela sua presença. Quando Adriana e Alessandro — ela pintora, ele funcionário bem sucedido de uma multinacional — se separam, ainda só estamos no preâmbulo de uma guerra que tem pelo meio o filho Edoardo. E mesmo que, às primeiras páginas, não custe acreditar que “um divórcio litigioso é uma carnificina”, ainda estaremos longe de perceber a verdadeira dimensão do massacre.

Se nos é pedido que suspendamos a respiração durante quase 700 páginas (que lhe levaram 7 anos de escrita “penosa”), é porque é esse o tempo que Adriana, na luta pela guarda do filho, demora a vir à tona. Neste romance, que a autora dedica às “crianças à deriva nos tribunais de família e menores”, a rima com o presente não é involuntária. Apneia — diz Tânia Ganho em entrevista ao Observador — não podia chamar-se de outra maneira.

A capa de "Apneia", de Tânia Ganho (Casa das Letras)

É enorme a tentação de falar do livro em função das inúmeras relações com a realidade portuguesa que ele suscita [as sentenças de Neto de Moura, os programas bizarros do professor Francisco Aguilar, a morte de Valentina…]. Vê isso como um mérito do texto ou como um possível embaraço para o projeto literário?
Acho que é sempre útil falarmos sobre a atualidade. E se Apneia servir para ajudar ao debate, acho que é positivo — desde que, obviamente, não nos esqueçamos de que se trata de uma obra de ficção. Mas, realmente, tem paralelos que é impossível ignorar — com a realidade e com as notícias que nos entram todos os dias pela casa dentro. Referiu vários casos…

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E podíamos continuar. Os números da violência doméstica…
Sim. O número de femicídios cometidos todos os anos em Portugal continua assustador. E, muitas vezes, há sinais — são casos que já foram relatados e reportados às autoridades, e há uma inércia, uma certa apatia, da parte das instituições que deviam proteger os cidadãos e não o fazem.

E em que medida é que, unindo esses pontos da realidade, quis fazer deles uma obra de ficção?
Comecei a escrever o livro em 2012, antes de se falar tanto em violência doméstica. Não fazia a mínima ideia de que em 2020, quando o livro saísse, haveria tantas notícias e tanta celeuma à volta da violência doméstica, da alienação parental, das sentenças que saem todas as semanas nos jornais… Foi uma coincidência, mas muito positiva, porque significa que estamos a começar a falar sobre um assunto que até aqui era tabu. A violência doméstica era um crime que se sofria em silêncio, à porta fechada. Ninguém falava sobre ele.

Esta começa por ser uma uma história sobre o fim do amor [nas primeiras páginas, Adriana pergunta-se “quando é que perderam a cumplicidade”]. Torna-se, pouco depois, na história de uma separação com inclinação para correr mal. Mas as coisas rapidamente se descontrolam, num caminho sem volta que desce ao inferno privado de Adriana na sua luta pela custódia do filho. Qual é o centro disto?
É o filho. Se me perguntar o que destaco no livro todo, é a criança. Edoardo é o exemplo de muitas crianças que sofrem violência doméstica. Quis escrever sobre isso. Para mim, essa é a parte mais importante — mais do que o fim do amor. Até porque a questão que me coloco desde o início, quando comecei a escrever o livro, é se isto é uma história de amor que correu mal. Acho que isto não é, sequer, uma história de amor. Uma relação pautada por ciúmes, por posse, não é uma relação de amor. Não escrevi uma história de amor. É uma relação de posse, é uma relação de poder. Nesse sentido, não posso dizer que a relação de Adriana e Alessandro seja uma relação de amor. Foi uma relação que, à partida — como ela diz, os sinais já lá estavam todos –, era uma relação malsã, tóxica, doentia. O que me interessa aqui realçar é o efeito que isso tem sobre as crianças.

"Passei estes anos mergulhada neste ambiente, a ler tudo o que fosse artigo de jornal, a colecionar recortes, a ler sentenças e acórdãos, a ouvir histórias de pessoas... E as pessoas, a dada altura, já vêm ter connosco e contam-nos coisas. Foi difícil lidar com toda esta violência durante tanto tempo. Não é um tema fácil. Não se sai incólume de uma escrita destas."

A ideia de posse não faz sempre parte da definição do amor?
Acho que esse é o grande problema. Mesmo as novas gerações continuam a pensar que é isso o amor, que um bocadinho de ciúme até apimenta as relações. Não acho que o sentimento de posse ou os ciúmes sejam uma mais-valia para nenhuma relação. As pessoas estão connosco porque querem estar. E, quando não estão, não devem ser obrigadas a estar. Ninguém é de ninguém — e isto, que parece um conceito muito simples, é muito difícil de digerir. E eu vejo que mesmo os adolescentes — tenho conversado muito com adolescentes — continuam com esta noção de que “se tem ciúmes, é porque gosta”. Não necessariamente.

Depende da maneira como esse sentimento é transmitido ao outro…
Sim, é natural que, quando gostamos, queiramos que a pessoa esteja connosco, e que seja honesta connosco. Mas, depois, tudo funciona na base da confiança. Quando gostamos de alguém temos de fazer um ato de fé. É um mau ponto de partida pensar que a posse é um elemento que faz parte da relação. Vai dar azo a que, com as tecnologias, andemos a verificar onde é que as pessoas estiveram, com quem falaram, o que puseram online, que fotografias tiraram… É terrível! Isso é uma canseira; isso não é amor.

Há outras personagens no livro: familiares, vizinhos, amigos, amantes, colegas de escola, advogados, psicoterapeutas… Mas não chega a perder muito tempo com quase nenhum deles [a maioria não tem sequer nome próprio]. Porque se quis concentrar tanto no triângulo Adriana, Alessandro, Edoardo — a “tóxica trindade”?
Para tornar o livro mais íntimo. E para criar no leitor esta sensação de apneia, quase de claustrofobia. Para mostrar até que ponto uma relação que é tóxica, de dependência e de posse, é uma relação que nos sufoca. Quis transmitir isso ao leitor. E, portanto, concentrei-me nas três personagens; não dei nomes às vizinhas, dei a um pedopsiquiatra (não dei aos outros terapeutas). Precisamente, até, para mostrar que há uma espécie de amálgama entre todos os técnicos que gravitam à volta destes casais e destas crianças.

Serve-se, a dada altura, da imagem do julgamento de Salomão na Bíblia: “Trazei-me uma espada”, ordenou Salomão (…) para resolver a contenda entre duas mães que reclamavam o direito a uma criança. “Cortai o menino vivo em dois”, disse o rei, “e dai a cada uma a sua metade.” É uma imagem especialmente indicada: verdadeiramente, ninguém sai daqui inteiro…
Acho que esse ponto deve mesmo ser alvo de reflexão. Estamos a fazer muito a apologia da guarda partilhada com a residência alternada. Acho uma ideia excelente — quando as relações são pacíficas entre os pais. Mas, quando há um conflito tão grave como aquele que descrevo entre a Adriana e o Alessandro, quase que se pede que pai e mãe dividam a criança ao meio. O pai pede-lhe lealdade; a mãe pede-lhe lealdade. Descrevo isso no livro em pequenos pormenores — por exemplo, quando Edoardo começa a chorar numa cena em que volta de casa do pai. Caiu-lhe um dente, e ele começa a chorar porque caíram mais dentes em casa da mãe do que em casa do pai. A própria criança interiorizou a ideia de que tem de ser tudo em tempos iguais.

"Quis mostrar até que ponto uma relação que é tóxica, de dependência e de posse, é uma relação que nos sufoca. Quis transmitir isso ao leitor"

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

O problema da violência psicológica tem várias declinações no romance. A questão de não deixar marcas físicas torna-a difícil de provar — e também de ser levada a sério…
É por isso que tantas pessoas acabam por não apresentar queixa, ou não levar os casos a tribunal, ou não procurar as autoridades. À partida já é muito difícil provar que se é alvo de violência quando não há marcas físicas. Sobretudo quando já se parte com a ideia de que há muitas pessoas que inventam falsas acusações de abusos ou de violência doméstica. É um pensamento muito perigoso, que não tem fundamento estatístico. Temos de ter muito cuidado com esta revitimização das vítimas.

Alessandro é o vilão total: manipulador, narcisista, sádico, mentiroso, colérico, possessivo, altamente vingativo. Não temeu que a personagem de Alessandro, de tão grotesca, fosse demasiado inverosímil?
Acho que, infelizmente, todos nós conhecemos alguém que é um Alessandro. Há muitas pessoas assim. O que eu quis mostrar foi o lado negro dele — mas, ao longo do livro, há indícios de que esse é o Alessandro no interior, na vida doméstica. Porque a fachada do Alessandro na vida social é perfeita. Gostava de poder dizer que é uma caricatura. Não é. Há muitas pessoas assim, são os chamados psicopatas domésticos. Falo deste tipo de psicopata doméstico, de perverso narcisista, na intimidade, mas há muitos, por exemplo, nas relações de trabalho. E são pessoas exatamente com este perfil, conseguem ter uma fachada muito simpática, afável, e depois, em privado, sem deixar provas, têm comportamentos como os que descrevo no livro.

Recebeu algum retorno nesse sentido?
Recebi, recebi! Há vários leitores que me têm escrito. Estava a lembrar-me de uma leitora que me disse: “eu não sou sequer casada, nunca passei por um divórcio, mas, no local de trabalho, tive um patrão igual. Comecei a ler o livro e a perceber que todos os sintomas que tinha eram os sintomas que a Adriana tem: as crises de ansiedade, os ataques de pânico, a culpa, a interiorização da culpa…”

Começou o livro em 2012. Como é que foi o processo de escrita, 7 ou 8 anos a conviver com esta gente?
Foi muito penoso. Passei estes anos mergulhada neste ambiente, a ler tudo o que fosse artigo de jornal, a colecionar recortes, a ler sentenças e acórdãos, a ouvir histórias de pessoas… E as pessoas, a dada altura, já vêm ter connosco e contam-nos coisas. Foi difícil lidar com toda esta violência durante tanto tempo. Não é um tema fácil. Não se sai incólume de uma escrita destas.

E onde se documentou para compor o generoso ramalhete de magistrados e psis que encontramos nestas páginas?
Fiz muita pesquisa bibliográfica. Conversei com vários psicoterapeutas e advogados. Posso citar, por exemplo, O tribunal é o Réu, de Daniel Sampaio, onde se trata da morosidade da justiça. Li os livros publicados pela equipa de psicólogas Rute Agulhas e Alexandra Anciães — têm um livro muito interessante sobre psicologia forense. Li uma série de artigos da Doutora Clara Sottomayor, uma das pessoas que em Portugal mais escreveu sobre os direitos das crianças em caso de divórcio, sobre as guardas partilhadas, sobre alienação parental…

O que aprendeu de mais importante sobre o perfil psicológico do agressor?
Houve dois livros muito úteis, que me deram uma perspetiva aprofundada de como é que pensa um agressor sexual. Um livro do psicólogo Mauro Paulino, tese de mestrado sobre abusadores sexuais, que se debruça muito sobre este tipo de crime intrafamiliar. Era o que me interessava explorar, porque é o crime mais horrendo.

"Acho que os trâmites destes processos tão longos, tão complexos, tão penosos, podem muitas vezes ser descritos como kafkianos. Há qualquer coisa de profundamente surreal em tudo isto. O Processo toma conta da vida das pessoas, e engole-as, e torna-se a vida delas."

Quando a família deixa de ser um lugar seguro…
E se torna, precisamente o lugar de agressão e de onde as crianças, por serem crianças, não têm escapatória. São obrigadas à convivência com os agressores. O outro livro é Amor Zero [do espanhol Iñaki Piñuel], sobre os perfis psicológicos dos agressores de violência doméstica. Em paralelo, fiz também um curso — que acabei agora — no Instituto CRIAP, sobre ciências forenses, investigação criminal e comportamento desviante. As ciências forenses deram-me uma certa bagagem para perceber se tinha analisado bem todas as etapas jurídicas forenses.

O curso serviu para fazer o fact-checking do romance?
Sim, serviu-me para ver se estava tudo dentro da verosimilhança.

Para a personagem de Adriana, pediu muito emprestado à artista portuense Cristina Troufa. Precisava de um modelo de pintora?
Acho que foi ao contrário. Comecei por conhecer a obra da Cristina Troufa e fiquei apaixonada pela ideia de usar o próprio corpo na pintura. Sempre me interessou a relação entre o real e o fictício, entre o autobiográfico e a arte. E a Cristina Troufa faz isso muito bem. Ela própria escreveu uma tese de mestrado sobre o auto-retrato, onde analisa a obra de várias pintoras e fotógrafas: a Frida Kahlo, a Cindy Sherman…

Apneia é também a história do que acontece quando o tribunal passa a ser a arena das decisões mais importantes das nossas vidas. Refere-se à luta da mãe pela guarda do filho como “o Processo”, grafado com maiúscula. Presumo que a alusão kafkiana não seja acidental…
Não, não é acidental. Acho que os trâmites destes processos tão longos, tão complexos, tão penosos, podem muitas vezes ser descritos como kafkianos. Há qualquer coisa de profundamente surreal em tudo isto. O Processo toma conta da vida das pessoas, e engole-as, e torna-se a vida delas. É uma coisa que ocupa a tempo inteiro as vidas dos pais e das crianças, e não as deixa nem respirar nem pensar em mais nada. É como se a vida estivesse condensada no Processo.

Porque é que o Alessandro é italiano?
Queria que as personagens fossem de nacionalidades diferentes porque, em muito do que li sobre estes processos, é nesses casos que surgem as grandes dificuldades. Porque já não é só uma questão de decidir com quem é que a criança fica: é decidir para onde vai.

O Edoardo vive entre várias línguas; há muitos equívocos de tradução motivados por essa particularidade. Mas, curiosamente, não é nesses momentos que o problema da tradução se coloca de forma mais aguda, mas sim quando tratamos com a linguagem específica do Direito [o que é, exatamente, um requerimento? A prolação?]. A complexidade da linguagem é uma maneira de gerar poder; quem compreende deixa quem não compreende numa situação de dependência. Adriana sente-se perdida dentro da sua própria história…
A questão linguística interessava-me, até porque sou tradutora. Esse foi o ponto que me suscitou mais interesse nesta história toda: mais difícil do que a transposição entre duas línguas é a transposição da linguagem jurídica para a linguagem do dia-a-dia. Convenço-me cada vez mais de que as pessoas não estão cientes dos seus direitos precisamente porque a linguagem jurídica já é, à partida, muito hermética. Ouvimo-la todos os dias nas notícias: mas quantas pessoas sabem o que é um requerimento? A prolação da sentença? Um articulado superveniente? Quem tem dinheiro paga a um advogado, e ele vai servindo de intérprete. Mas quem não tem acesso a advogados não tem acesso a interpretação.

Mais difícil do que a transposição entre duas línguas é a transposição da linguagem jurídica para a linguagem do dia-a-dia", diz a autora, que também é tradutora

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Além de que uma guerra em tribunal é um caminho muito certeiro para a ruína financeira…
Sem dúvida. Não é só o esforço psicológico, é também o esforço económico. Quantas mulheres e homens acabam por perder o contacto com os filhos por não terem acesso a aconselhamento jurídico? Podem dizer-me que há aconselhamento jurídico disponibilizado pela Segurança Social. Mas, para isso, é preciso saber, e a maior parte das pessoas não sabe que tem direito a pedir apoio.

Em certos momentos — sobretudo nas cenas de tribunal, na relação dos protagonistas com os advogados — o livro faz lembrar História de Um Casamento (Noah Baumbach, 2019). Viu o filme?
Vi, vi. Gostei muitíssimo. A personagem feminina irritou-me o filme todo, porque me pareceu uma pessoa sempre a arranjar problemas. A figura do pai foi a que me inspirou mais pena. Cheguei ao fim e pensei: o filme todo é uma mulher à procura da sua voz. Ela não é má nem boa e ele não é mau nem bom, são pessoas que estão a passar por circunstâncias muito difíceis e que têm um conhecimento de si próprias pouco claro. E é preciso passarem por este processo tão complicado para se encontrarem.

Há referências literárias muito insistentes ao longo romance: Anne Sexton, Sylvia Plath. Foram inspirações?
Foram. Descobri a Anne Sexton tardiamente; comecei a lê-la e fiquei fascinada. Em primeiro lugar, era uma figura muito complicada, uma mulher atormentada; sofreu várias depressões ao longo da vida, acabou por se suicidar. Foi amiga da Sylvia Plath — aliás, quando a Sylvia Plath se suicidou ela escreveu-lhe um poema dizendo: “tu roubaste a morte que eu queria”. Quis mesmo trazê-las para o livro, porque a história que estou a contar é, em primeiro lugar, uma história que se passa na esfera doméstica, e tanto a Sylvia Plath como a Anne Sexton escreveram poesia confessional, trouxeram a sua vida doméstica para a sua arte.

A Anne Sexton tem vários poemas sobre o divórcio. Ela diz: “a roupa suja da minha vida foi lavada em tribunal”… estou a citar de cor. Esses versos marcaram-me muito. Tem também um poema sobre violência doméstica chamado “The Wifebeater”. A relação dela com o marido passava pela violência doméstica — nos dois sentidos. Ela também sujeitou, sobretudo a filha mais velha, a situações de abuso.

É uma personagem ambígua: vítima, mas também abusadora.
Não se sabe ao certo o que Anne Sexton sofreu como vítima na infância: se foi vítima de abusos por parte do pai, de uma tia… Ela não é muito clara e a biografia deixa isso em aberto. A verdade é que ela acabou por perpetuar um comportamento de abuso em relação à filha mais velha. Chegou a molestá-la, tiveram uma relação muito conturbada. Ao ponto de a filha — Linda Gray Sexton — também ter tentado o suicídio.

Como tradutora, tem trabalhado sobre figuras fortes do feminismo e da luta pela igualdade de género: Angela Davis, Maya Angelou, Chimamanda Ngozi Adichie… É nessa família literária que gostaria de inscrever o Apneia?
Sem dúvida. Acho que a literatura pode ser puro entretenimento. Mas, nesta fase da minha vida, vejo-me a fazer esse tipo de literatura mais engagé.

Qual foi o facto mais interessante que aprendeu sobre as cagarras?
Que fazem um barulho muito estranho! Aprendi, sobretudo, que existem lugares lindíssimos em Portugal que estão à margem de todos estes problemas, que vivem quase numa bolha própria: as ilhas. Gostei muito de explorar esses territórios, embora não os identifique pelo nome.

"É propositado [o livro não ter a palavra 'apneia' escrita uma única vez]. Precisamente porque é mais interessante o leitor chegar ao fim e perceber porque é que o livro se chama apneia, sem que apneia seja referido explicitamente."

Mas, se juntarmos abundância de gaivotas e cagarras, um forte com escadas íngremes, um farol, um parque de campismo em socalcos… Não fica difícil situarmo-nos algures ao largo da costa de Peniche.
Não digo no livro que se trata da Berlenga, mas inspirei-me muito na Berlenga. Chamo-lhe sempre “a ilha”. Gosto muito de ilhas; queria um espaço que fosse isolado, no meio do oceano, onde a personagem da Adriana pudesse respirar e sentir que estava longe de tudo. Fiz várias viagens à Berlenga, passei lá muitas noites e conversei com as poucas pessoas que vivem na ilha durante o ano todo. A Berlenga ficou com um lugar muito especial na minha vida.

“A ilha” é um espaço de evasão e de pausa para a Adriana. Mas é, também, o lugar onde têm lugar acontecimentos decisivos do romance. Qual é a função da ilha na história?
A ilha é o lugar catártico. A ilha é o sítio onde a personagem resolve tudo aquilo que na sua vida é doloroso e parece não ter fim, o espaço quase imaginário e mágico onde tudo se resolve.

Diz no livro que “a normalidade, a pasmaceira de uma vida sem sobressaltos, é subestimada”. A normalidade não é um aborrecimento para a literatura?
Sim. Todos conhecem aquela ideia de que as famílias felizes são um tédio… Nada se passa numa família feliz, são um não assunto. Um escritor precisa de temas bem mais complexos e conturbados. Dito isto, há um livro, que adorei traduzir, que costumo dizer que é um livro sobre um não-assunto, uma não-vida e uma não-personagem: o Stoner, de John Williams. É uma obra de arte, um livro magistral, onde não se passa rigorosamente nada. E, no entanto, é pura literatura.

A palavra “apneia” não ocorre uma única vez em nenhuma das 692 páginas do romance. Porquê?
É propositado. Precisamente porque é mais interessante o leitor chegar ao fim e perceber porque é que o livro se chama apneia, sem que apneia seja referido explicitamente. Tem acontecido que os leitores me escrevem a dizer: “Eu vivi em apneia enquanto estive a ler. De vez em quando tinha de parar para vir à tona e respirar”. Não há equívoco nenhum. Chega-se ao fim e percebe-se imediatamente porque é que o título é Apneia, e não podia ser outro.

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