A TAP já enviou pelo menos 89 contratos de despesa para visto prévio do Tribunal de Contas desde 2023, ano em que a administração da empresa reconheceu a obrigação legal que recai sobre as empresas públicas para o controlo financeiro.
Até ao final de março, e segundo uma resposta do Tribunal de Contas ao Observador, 33 dos contratos remetidos obtiveram o visto prévio com recomendações, não tendo sido recusado nenhum. Ainda segundo a informação remetida pelo Tribunal de Contas, há 24 contratos cujo visto prévio ainda se encontra pendente. “Os restantes — (32 de 89) — foram devolvidos por não estarem sujeitos a fiscalização prévia por já se encontrarem materialmente e financeiramente executados”.
Ou seja, a TAP enviou ao Tribunal de Contas contratos que já produziram efeitos, o que não é compatível com o processo de fiscalização preventiva. O visto prévio aos contratos de despesa pública, como o próprio nome indica, terá que ser emitido antes da despesa associada começar a ser efetuada. E é comum as empresas públicas esperarem meses pelo visto antes de executarem esses contratos. Até porque, a execução de um contrato com o visto recusado equivale a uma infração e implica a nulidade do respetivo contrato.
Questionada sobre as eventuais consequências desta situação, fonte oficial do Tribunal de Contas confirma que a “execução de um contrato sem o visto prévio constitui infração financeira, punível com multa.”
A devolução por já ter produzido efeitos também ocorreu com um dos 11 contratos remetidos no mesmo período pela Portugália, empresa do grupo TAP, segundo os números revelados ao Observador pelo Tribunal de Contas.
Os contratos devolvidos devem ser avaliados por outro departamento do Tribunal para apuramento de eventuais responsabilidades financeiras, de acordo com um acórdão relativo a um contrato da Portugália consultado pelo Observador.
Neste acórdão os juízes explicam que, depois da execução, os contratos “não podem já ser considerados no âmbito da fiscalização prévia, podendo apenas ser objeto de fiscalização concomitante ou sucessiva. Tendo o aludido contrato já sido executado, quer material, quer financeiramente, não poderá ser sujeito a fiscalização prévia em fase preclusão das suas finalidades legais”. Logo, acrescenta o referido acórdão, tem de ser devolvido à entidade visada.
O contrato segue também para o departamento de fiscalização concomitante para apuramento de “eventuais responsabilidades financeiras”. Isto porque, refere o acórdão da Portugália, a “execução de atos ou contratos que não tenham sido submetidos à fiscalização prévia quando a isso estavam legalmente sujeitos ou que tenham produzido efeitos em violação do artigo 45.º da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas pode constituir um ilícito financeiro sancionatório (…) podendo daí decorrer, caso estejam verificados os seus pressupostos onde avulta a culpa, responsabilidade financeira sancionatória”.
Em causa está um contrato entre a Portugália e a Bulgaria Air para a locação de aeronaves que foi assinado originalmente em abril de 2022 e que um ano depois a companhia portuguesa quis renovar. Tendo constatado que o primeiro contrato já tinha produzido “todos os seus efeitos materiais e financeiros”, o Tribunal questionou a “pertinência da sua apreciação em sede de fiscalização prévia”.
Este acórdão de novembro de 2023 recusou o recurso apresentado pela Portugália relativo à primeira decisão de maio de 2023 e onde a companhia aérea detida pela TAP pedia que fosse confirmada a “urgência imperiosa na celebração do contrato de ACMI (Amendment nº. 8 To The Damp Lease Agreement of 4 de abril de 2022) celebrado entre a PGA e a Bulgaria Air. Esta contratação de serviços externos foi a forma encontrada pela então gestão de Christine Ourmières-Widener para assegurar a realização de voos para os quais não havia capacidade de frota nos meses iniciais da retoma no setor. No caso da PGA verificou-se um atraso na entrega de aviões Embraer. O acordo com a Bulgaria Airlines envolve a cedência de dois aviões para operar rotas na Europa e em África.
A sujeição de despesas acima dos cinco milhões de euros ao visto prévio do Tribunal de Contas resultou do regresso da TAP à esfera do setor público em 2020, na sequência da saída de David Neeleman e das injeções financeiras realizadas pelo Estado para assegurar a viabilidade da companhia durante a pandemia.
O decreto-lei que concretiza esta operação determinou um conjunto de exceções às regras que se aplicam às empresas do Estado, nomeadamente em matéria de remunerações e de contratação de gestores. A TAP também teve dispensa parcial do cumprimento de regras de gestão de tesouraria e, por razões de concorrência, ficou de fora de regras de contratação pública que a obrigariam a publicitar no portal Base os seus contratos.
No entanto, a empresa tinha de cumprir o estatuto do gestor público em matérias como a saída de administradores — o que não o fez quando negociou uma indemnização por saída antecipada com a então administradora Alexandra Reis. E tinha de pedir visto prévio ao Tribunal de Contas pelos contratos, uma obrigação que também não terá sido cumprida, pelo menos durante o primeiro ano de gestão de Christine Ourmières-Widener (e provavelmente também no mandato exercido interinamente por Ramiro Sequeira).
O tema foi abordado na comissão parlamentar de inquérito na qual o administrador financeiro, Gonçalo Pires, admitiu que a empresa só começou a enviar os contratos para o Tribunal de Contas para visto prévio em 2023 depois de ter sido alertada para essa obrigação enquanto empresa pública. Até à data da audição, final de março do ano passado, a TAP tinha remetido 24 contratos para autorização.
Mais recentemente e durante uma rara intervenção pública na conferência anual das agências de viagens, o presidente executivo Luís Rodrigues lamentou os entraves administrativos que emperram a gestão da TAP pública. E deu como exemplo a obrigação legal de obter o visto prévio do Tribunal de Contas. Segundo o gestor, quase todos os dias a TAP tem de fazer despesas desse valor para comprar combustíveis. Luís Rodrigues explicou que não conseguiu contratar proteção financeira contra o risco do preço dos combustíveis (hedging) no verão passado porque estava impedido de comprometer despesa futura, no quadro do regime aplicável às empresas públicas.
O Observador questionou a TAP sobre esta situação mas não obteve qualquer resposta.
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