“Agora vamos ter a Marta rebenta-minas!”. A piada é dita trinta metros debaixo do solo, num corredor escuro que simula uma mina, dentro do Parque Mineiro de Aljustrel. A candidata socialista cumpre assim um ritual clássico de campanha: enfia o capacete na cabeça, veste o colete refletor e agarra-se a um simulacro de detonador, que quando pressionar provocará o barulho e o fumo que uma detonação a sério provocariam (ou quase). Os jornalistas provocam: a ideia nesta campanha é detonar a oposição? Não, porque essa detona-se sem precisar de ajuda, atira Temido. A partir daí, acabam as farpas: apesar de ainda não ter “muito treino disto”, a candidata desvia-se de todas as perguntas sobre os adversários e evita a tentação de entrar em picardias. A partir de agora, garante, se quiser detonar alguma coisa será apenas com o mesmo objetivo dos mineiros: para “construir” alguma coisa depois.
O discurso pacífico nem sempre foi exatamente assim: no princípio da semana, Temido abriu as hostilidades contra Sebastião Bugalho no debate televisivo, ao considerar “imatura” a atitude do candidato da AD por dizer que a vinda de Volodymyr Zelensky a Portugal foi um “dia de festa”. E pareceu desencadear uma série de reações particularmente duras na AD, de que agora se tenta desviar, enquanto o PS acredita que deve manter a imagem empática que tem conseguido cultivar ao percorrer o país em campanha.
Do lado da AD, os ataques têm sido fortes e muito centrados na figura, e no currículo, da ex-ministra socialista. Depois de, na quarta-feira, Bugalho ter acusado Temido de precisar de que Pedro Nuno Santos saia em sua defesa, esta quinta-feira o tom subiu: a candidata Lídia Pereira estabeleceu como objetivo “combater não apenas a desinformação russa, mas também a do PS” e acrescentou que “Marta Temido trata tão mal a verdade como tratou os profissionais de Saúde”; o ministro António Leitão Amaro acusou Pedro Nuno Santos de “levar para a lista da Europa quem não foi capaz de governar por cá” e foi mesmo responsável pelas “maiores falhas e desastres da governação socialista”.
Já Bugalho acusou a ex-ministra de “irresponsabilidade” por ter sido candidata a deputada ainda em março e pelo estado em que o SNS ficou, com “1,7 milhões de portugueses sem médico de família ” e “mais de 9 mil doentes oncológicos a espera de cirurgia”. Conclusão da AD? “Portugal não esqueceu” nem vai esquecer-se das falhas governativas de Temido na hora de preencher o boletim de voto.
Ora o raciocínio que corre no PS é exatamente o contrário: a ideia é que a experiência de Temido como ministra é um ativo que lhe traz popularidade — de facto, é habitual nas ações de rua haver quem se aproxime da antiga governante para lhe agradecer pelo seu trabalho durante a pandemia — e que o seu à vontade nas ruas faz o resto. Entre dirigentes socialistas, é partilhada a opinião de que o forte da candidata não são os comícios, em que não está habituada a discursar, ou os debates, em que por vezes hesita ou é pouco clara na argumentação, mas antes a rua e a “empatia” que gera.
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Por isso mesmo, há entre os principais nomes que dirigem o PS quem veja mesmo uma vantagem em que a AD faça de Temido um alvo a abater. “Não ganham em atacá-la, justamente por causa dessa sua imagem firme mas simpática“, defende um alto dirigente. E parece ser mesmo essa a imagem que Temido tenta agora preservar, retirando-se das picardias — num programa da manhã tinha assumido que a sua equipa lhe chama a atenção quando está a ser mais “agreste” ou a sorrir pouco. Agora, é Pedro Nuno quem faz as despesas dos ataques — e assegura a sua defesa.
Pedro Nuno em campo, Temido fala da Europa
Foi assim na tarde desta quinta-feira, quando a dupla socialista foi confrontada, em Évora, com as críticas lançadas a todo o vapor pela AD. “Os portugueses estão cansados das campanhas de ataques”, incluindo vindos de “quem nem tem um percurso político”, disparou Pedro Nuno Santos, de mira apontada a Bugalho, antes de recordar o “percurso verificado” de Temido que, garantiu, é visível na rua e na forma como as pessoas reagem à candidata. Uma candidata que é, aliás, “impossível” de ofuscar, argumentou, puxando mais uma vez pelos argumentos dos afetos: “Ela conquistou uma relação de confiança, proximidade e empatia, e isso não se consegue tapar”.
Tudo isto antes de assegurar que o PS não vai “entrar em trocas de palavras entre candidaturas” — e de Temido não responder nada. A partir daí, uma arruada feita de sorrisos, com Temido e Pedro Nuno a sentarem-se para fazer campanha — ou, diriam segundos depois, para descansar — e conversar com um grupo de amigas a quem entregaram os seus folhetos, ou a fazerem questão de tentar conversar com os muitos turistas que passeavam por Évora, antes de acabarem o dia a beber uma imperial com o resto da caravana socialista.
Com Marta Temido a assegurar que não vai apostar na constante troca de galhardetes — e com elementos do PS a reforçarem que faz bem em preservar a sua imagem “afetiva” –, a ideia foi “responder não a um candidato”, mas aos eleitores, e focar-se mais nos temas europeus. Primeiro, fê-lo na mina simulada — a verdadeira, que está ativa e onde trabalham 1200 pessoas, está 600 metros abaixo do solo — para chamar a atenção para as questões da mineração responsável e do seu impacto ambiental, mas também para frisar a importância do “acesso a matérias primas críticas, nas quais a Europa precisa de continuar a ser autónoma e independente”.
Depois, continuou a tentar focar mais a campanha nas ideias, ainda que dispersas, num encontro sobre a igualdade na Europa, ao qual chegou rodeada do grupo de cante feminino de Aljustrel, que assumidamente acompanhou recorrendo ao playback (a candidata garante que é muito desafinada e que se cantasse a sério não teria nenhum voto). Já no encontro, voltou a puxar por um tema recorrente na campanha — os alegados perigos de retrocesso que a direita e a extrema-direita representam para direitos humanos, à cabeça os das mulheres — e a deixar uma acusação, presumivelmente dirigida à AD, no ar: “Nesta campanha há quem não diga ao que vai”.
Temido teve ainda a companhia dos ex-eurodeputados Capoulas Santos e Carlos Zorrinho, em Évora, num encontro em que o público também fez perguntas — com uma das mulheres na plateia a notar que “o Chega ganhou na terra da Catarina Eufémia” (Baleizão), apontando para os problemas de migração nas mãos de tráfico humano. Daí chegou-se a outro tema omnipresente na campanha: o crescimento da direita radical e das suas ideias sobre imigração.
“As respostas fáceis do nada não trazem nada. Temos de as desmontar, porque o nosso caminho é menos rápido, mas é o único que traz resultados”, explicaria Temido, garantindo que “a exploração de recursos humanos não tem a ver com migração, tem a ver com crime. E os crimes combatem-se”. Ouviria ainda Zorrinho mostrar preocupação com o tema da segurança — “Se fizermos boas políticas de imigração mas sem controlo de fronteiras as pessoas não se vão sentir seguras. São pequenas cedências para a vitória maior”, defendeu o eurodeputado: “Temos de conquistar a batalha da segurança para a esquerda”. E ouviria Capoulas preocupar-se com o desequilíbrio à direita que a entrada dos novos países de Leste tem causado, e causará, na UE, assim como com a integração de migrantes em Portugal.
Desta vez o PS conseguiu meter ideias europeias na sua agenda — sempre com a candidata salvaguardada e longe das picardias da campanha. Com a entrada de mais figuras de topo do universo socialista prevista nos próximos dias, e a presença constante de Pedro Nuno Santos, Temido não deverá precisar de entrar em registo de despique — pode haver quem o faça pela candidata. Ainda assim, é cedo para dizer se a postura se mantém constante e se a tentação de entrar no pingue-pongue com os adversários não é mais forte: afinal, a campanha ainda vai no adro.