A morte de Manfred Thierry Mugler foi anunciada no domingo, dia 23 de janeiro, ditou o destino que fosse na véspera do arranque de mais uma Semana de Alta Costura primavera/verão 2022 (de 24 a 27 de janeiro de 2022), em Paris. Foi o agente de Mugler, Jean-Baptiste Rougeot, que usou as redes sociais do próprio designer para confirmar a morte por “causas naturais”. “Estamos devastados por anunciar a morte do Sr. Manfred Thierry Mugler no domingo 23 de janeiro de 2022”, dizia o post na conta de Mugler no Facebook.
Em outubro passado, Manfred Thierry Mugler sentou-se à conversa com Tim Blanks, jornalista veterano de moda e atualmente no The Business of Fashion, e disse-lhe que estava a adorar envelhecer porque estava mais “infantil do que nunca”. Podemos pensar que ultrapassados os 70 anos de idade e os 40 de carreira se pode dizer o que se quiser. Mas a verdade é que a magia de Mugler estava precisamente em fazer sempre o que o instinto ditava. O resultado: décadas de uma mistura única de trabalho e talento que continuam a fascinar. E criações que salpicam a história da moda com momentos de magia.
A moda tem um lado de espetáculo que, muitas vezes, desafia quem a admira, porque está para lá do óbvio. Há qualquer coisa de cativante, mas que é difícil de compreender. Há elementos que parecem familiares, mas ao mesmo tempo são muito distintos. Há o brilho das luzes e a música que anunciam algo de novo, mas no fundo “é apenas roupa”. As criações de Mugler movem-se, com graciosidade, nestas indefinições. Quando insetos, robots, o mundo aquático ou automóveis se tornam fonte de inspiração de um trabalho criativo na moda, o resultado é imprevisível. E se também juntarmos algum erotismo, fetichismo e materiais despropositados para vestuário — como o plástico, o metal ou a borracha — é difícil saber o que esperar. Mas uma incrível atenção ao detalhe e uma exímia capacidade de confeção tornaram tudo possível. E apetecível.
Manfred Thierry Mugler nasceu em Estrasburgo em 1948 e foi lá que estudou dança clássica quando era criança e que aos 14 anos entrou no corpo de ballet da Opéra National du Rhin enquanto estudava design de interiores na Haute École des Arts du Rhin. Aos 18 anos, foi a Paris fazer uma audição para uma companhia de dança contemporânea, mas deixou-se apanhar na teia da moda e já não saiu. Conta o New York Times que começou como freelancer para diferentes marcas de moda, como a Cacharel ou Dorothée Bis, isto até apresentar a sua primeira coleção e primeira loja em nome próprio em meados da década de 1970.
Entre essa altura e 2002, tornou-se criador em nome próprio pelo seu arrojo e atreveu-se a puxar para os ateliers. Nos anos 70 criou a Glamazona, um conceito de mulher urbana e glamourosa que contrastava com o look hippie da época. Se na história da moda a década de 1980 ficou catalogada como a era dos “ombros largos”, muito se deve a Mugler. Saias justas, cinturas apertadas e ombros amplos brilhavam nas suas coleções. Não porque objetificasse a mulher ou a quisesse fazer regressar a um ideal de beleza de séculos passados, mas porque gostava de brincar com formas e volumes. Nos anos 90 revolucionou a Alta Costura, não só com as roupas, mas também com os desfiles espetáculo, que tinham uma cuidada cenografia e que também eram protagonizados pelas modelos icónicas da época — e, por vezes, também drag queens.
Em 1992, Mugler lançou o primeiro perfume Angel e também a linha de Alta Costura. Em 1997, a empresa de cosmética francesa Claris comprou a sua marca e, em dezembro de 2002, o jornal The Guardian noticiava o anúncio de que iam fechar a parte de moda por queda nos lucros. A linha de perfumes manteve-se, uma vez que era um negócio bastante rentável. Contudo, em 2010 a linha de moda da marca Thierry Mugler foi recuperada sob a direção criativa de Nicola Formichetti e depois continuou com Casey Cadwallader. Desde outubro de 2019, as marcas Mugler e Thierry Mugler pertencem à L’Oréal. O ano 2002 marcou o afastamento do designer da marca com o seu nome. Passou a chamar-se Manfred Thierry Mugler, mas não se afastou da moda nem da criação.
Neste novo milénio, as suas criações não podiam ficar guardadas no baú como relíquias de uma era passada. Num tempo em que a imagem ganhou poder como nunca tinha tido, em que as redes sociais se alimentam da novidade e a moda se tornou uma linguagem universal, os vestidos de Mugler estavam destinados a ser estrelas de passadeira vermelha ou posts virais. E assim foi. Para Beyoncé, Mugler criou o guarda-roupa da “I am… World Tour” de 2009. Para Kim Kardashian criou o look da Met Gala 2019 e nesse mesmo ano, para Cardi B, foi ao fundo do armário e recuperou três looks vintage dos anos 90, que a cantora usou nos Prémios Grammy. Depois da notícia da sua morte, foram muitas as celebridades que lhe prestaram homenagem publicamente, através da redes sociais.
Mas além das divas, o designer também criou os figurinos para o espetáculo Zumanity do Cirque do Soleil, em Las Vegas. Os interesses desta mente criativa foram muitos e não só se dedicou à fotografia nos anos 70, como realizou o vídeo da música “Too Funky” de George Michael, em 1991. Às suas roupas juntam-se as modelos Linda Evangelista, Nadja Auermann, Emma Sjöberg, Estelle Lefebure e Tyra Banks. O vídeo é também uma homenagem à figurinista estrela de Hollywood Edith Head, a mulher com mais óscares (oito estatuetas) e nomeações na história da Academia de Cinema.
Em março de 2019, a revista T do New York Times revisitou o desfile de Alta Costura de outono/inverno 1995 que marcava os 20 anos da marca Thierry Mugler, com a coleção Maschinenmensch. Mugler disse à revista: “Nunca quis ser designer de moda. Eu queria ser realizador. Mas a moda tornou-se uma boa ferramenta. Era um meio de comunicação.” O desfile teve lugar no Cirque d’Hiver, uma sala de espetáculos parisiense. O cenário era totalmente branco, tinha uma escadaria, duas passerelles e durante uma hora desfilaram modelos estrela de diferentes épocas com 300 looks de Mugler. Mas há mais. No fim houve uma atuação de James Brown, bailarinos e uma chuva de confetti. Se isto não é um desfile espetáculo, o que será?
O designer disse à T: “Na altura não senti isto, mas logo depois do desfile, percebi que era o fim de uma era. Depois disso, a moda tornou-se uma coisa de marcas e marketing”. E acrescentou: “A moda já não era o mesmo meio, a mesma mensagem emocional entre pessoas. Tudo girava à volta das marcas. Eu adoro uma boa marca, mas a moda é uma arte. Para mim, a beleza vem da liberdade do atrevimento de ser diferente.” Jerry Hall, modelo estrela dos anos 70 e ainda hoje gloriosa detentora do posto de ícone de moda, também falou, mas sobre o mágico por detrás de tudo aquilo. Contou que a primeira vez que conheceu Mugler ele estava a usar um fato de Star Trek, contudo, “a última vez que o fui ver, no seu desfile Follies em Paris em 2013, ele espreitou-me por detrás da cortina — não quis que eu visse como ele tinha mudado. Ele continuava a ser o Feiticeiro de Oz, a puxar os cordéis no escuro”. Uma vez bailarino e um criativo que via o corpo como um objeto artístico, Mugler dava grande importância ao corpo e isso conduziu a uma grande transformação física.
Em 2019 abriu a exposição “Thierry Mugler, Couturissime” no Montreal Museum of Fine Arts (MBAM). Depois de muita insistência, Mugler alinhou em fazer uma exposição com as suas criações. Mas uma celebração e não uma retrospetiva. A exposição passava em revista a carreira do criador com peças de 1973 a 2014, entre as quais se contam mais de 150 looks de moda, figurinos, perfumes, fotografias, vídeos e material de palco nunca antes visto, mas de forma imersiva, como ambientes criados de acordo com as roupas e os seus temas. A curadoria da exposição coube a Thierry-Maxime Loriot, um ex-modelo que se tem dedicado a criar exposições de moda MBAM. Entre março e setembro de 2019, em seis meses de exibição, recebeu mais de 290 mil visitantes e tornou-se a exposição mais visitada de sempre no Canadá.
Depois, seguiu em tour pela Europa. Esteve na Munique (Alemanha) e Roterdão (Países Baixos) antes de chegar a França. Atualmente está no Musée des Arts Décoratifs, em Paris, até 24 de abril de 2022. A exposição acaba com os figurinos que Mugler desenhou para uma produção de Macbeth, da Comédie-Française, apresentada no Festival d’Avignon em 1985. O fim perfeito para a exposição que ele próprio definiu como uma ópera em cinco atos.