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Pastor protestante, músico, punk, provocador, pai de família, Tiago Cavaco é, para muitos, o rosto do cristianismo não-católico em Portugal. Ricardo Araújo Pereira, no prefácio ao livro Milagres no Coração (Quetzal), um conjunto de sermões sobre o Evangelho de Marcos, diz que Tiago Cavaco “é um pregador de combate”. E aqui, uma vez mais, calça as luvas para subir ao púlpito.
Como é que foi a sua infância?
A minha infância foi feliz. Tendo até a achar que a minha nostalgia, uma característica quase contínua, também tem a ver com isso. Cometo o erro de olhar para trás e ver na infância uma perfeição que ela também não teve. Ainda faço um pouco isso. Ir para o Youtube ver anúncios antigos e pensar que era tão feliz. Como pastor tenho de ser ajuda para pessoas que não tiveram uma infância tão fácil e reparo que essas pessoas fazem uma avaliação mais distante, que não é a que eu faço em relação à minha infância. Isso deve-se ao facto de ter tido uma família estável, de o casamento dos meus pais ser estável e de continuarem juntos até hoje.
Uma família protestante?
Sim. Nunca me conheci sem que a igreja, a fé e a expressão religiosa estivessem presentes. O primeiro momento em que eu reparo que a maneira como vivo é um pouco diferente da dos outros, pela questão da religião, é quando na escola primária os meus colegas falavam sobre o “Rui, o pequeno Cid”, que dava aos domingos de manhã e eu não via. Não via os desenhos animados ao domingo porque estava na igreja.
Nessa altura, sentiu que fazia parte de um grupo diferente?
Reparei que era o único na minha sala que não via os desenhos animados. Eu já sabia da diferença entre ser protestante e ser católico, mas naquilo que era a vida de um miúdo foi aí que percebi que havia uma diferença. Depois à medida que cresci reparei noutras diferenças que se foram tornando mais expressivas.
Nessa infância feliz houve momentos de infelicidade ligados à sua condição religiosa? Alguma vez sentiu constrangimentos por essa razão?
Não. Nunca me senti mal pela minha fé, o que de certa maneira é uma coisa má. Teria sido mais santo da minha parte ter sofrido alguma coisa por ser diferente. Mas como um dos meus pecados foi sempre a vaidade, o destacar-me, a religião dava-me esse destaque, permitia-me ser diferente dos outros e essa diferença não era opressiva para mim.
Na adolescência, há muito a tendência de nos apagarmos ou de nos juntarmos aos que são parecidos connosco para não sobressairmos muito.
No meu caso, não. Isto é um pouco uma confissão de pecados e não há problema nenhum de aparecer porque os cristãos acreditam na confissão de pecados (risos). Há uma coisa que tenho reconhecido nos últimos anos como tóxica e que é o facto de ter crescido convicto de que estava mais certo que os outros. Mesmo quando a pressão social vinha ou alguma hostilidade, que não era muita, eu via-as apenas como a confirmação de que estava mais certo do que os outros. Continuo a achar que quando se sofre algum tipo de discriminação não é necessariamente sinal de que temos razão e os outros estão errados, mas, no geral, as discriminações que sofro é por acreditar em coisas que considero universalmente corretas. Hoje, aos 40 anos, a diferença é que sou capaz de reconhecer que há maneiras erradas de estarmos certos.
Com essa certeza de ter razão, procurava o embate, o confronto com os outros?
Não digo que o procurava, mas também não me assustava. Verdade seja dita que, na escola, o facto de escrever e desenhar bem ajudava. A professora punha-me a recitar as quadras que eu fazia, levava-me a passear às outras salas. Havia uma série de qualidades que resultaram em algum reconhecimento em fases relativamente precoces. Além disso, nunca fui um cromo. Era um falso tímido. Na escola só ficava satisfeito quando conseguia exercer algum tipo de influência sobre os outros e conseguia.
Tinha uma convicção interior de superioridade?
Não nesse aspeto. A superioridade que sentia foi sempre mais no campo das convicções, da fé. Era a segurança de que quando se acredita em certas coisas, se acreditamos que estão certas, é por haver um valor nelas. Essa segurança acabava por ter um retorno social.
Canalizava esse retorno para alguma espécie de proselitismo ou era apenas uma valorização social?
Também. Quem tem fé, acredita que a sua fé é, de facto, a diferença entre a vida e a morte e eu, desde pequeno, falava da minha fé como isso. Lembro-me de levar amigos à igreja porque acreditava, como acredito hoje, na necessidade da pessoa salvar a sua alma. A fé não era um embuste para eu arranjar uma maneira de ser o diferente.
“No liceu nós já assumíamos que éramos virgens”
Quando foi para a Universidade Nova de Lisboa, onde estudou Ciências da Comunicações, mudou alguma coisa? À partida, não é um ambiente onde imaginemos um crente à vontade.
A única mudança foi mais a nível social. Nenhum miúdo cristão que estude em escolas públicas da Amadora e de Queluz, como foi o meu caso, fica convencido de que o mundo concorda com ele. Nesse sentido, a faculdade não foi diferente.
Mas num ambiente intelectualmente mais hostil à crença – não falo daquele gozo quase infantil em relação à religião – sentiu essa hostilidade?
Não senti, por uma razão. Por um lado, a questão da sexualidade é uma prova maior do que a questão intelectual. Numa escola pública, quando todos os adolescentes querem ter relações sexuais e há quem, por convicção, não queira, diria que esse desafio à resistência é maior.
Falava abertamente sobre isso?
Então não?! Reconheço que tive uma ajuda. Eu estava acompanhado de outros jovens na igreja que não tinham vergonha. No liceu, quando andavam todos a tentar perder a virgindade, nós já assumíamos que éramos virgens. Portanto, a questão da sexualidade era até um teste mais difícil. Por outro lado, como no 10º ano fui para Humanidades, a questão intelectual já lá estava e quando cheguei à faculdade isso não me assustou, até porque era muito convencido. Continuo a achar, e isso até está no início do livro, que a maior parte das convicções que as pessoas têm para não aceitarem o cristianismo são, no geral, por não pensarem muito assunto. Claro que há pessoas que pensam seriamente e rejeitam o cristianismo com toda a convicção.
Isso ajudou-o a enfrentar o ambiente?
Sim, porque quando vou para lá e afirmo a minha fé o que topo é que são miúdos que não pensaram muito sobre o assunto. Voltando um pouco atrás, aquilo que me surpreendeu foi uma questão social, a dos miúdos dos subúrbios que vão para a universidade e se deparam com, à falta de melhor termo, uma elite bem nascida. Isso foi uma surpresa para mim. Perceber que o vir de comboio da linha de Sintra podia ser uma piada. Perceber, por exemplo, que havia pessoas que liam os livros certos desde o berço. Eu entrei para jornalismo e depois mudei para cinema e quando chego lá, um miúdo que cresceu a ver os Stallones – na altura já percebia que ver Stallones não era propriamente prestigiante –, quando chego ao grupo de cinema percebo que era um grupo elitista. Eles viam o [Carl Theodor] Dreyer, viam tudo o que nunca tinha visto. Aí senti-me de alguma maneira excluído e burro. Mas, no resto, o peso de uma suposta censura intelectual em relação ao cristianismo não me causou grandes danos.
Relativamente à questão da sexualidade, enquanto pastor aconselha jovens. Como é que lhes explica que duas pessoas que se amam e que se querem casar deixem de parte a sexualidade nesse processo de conhecimento mútuo?
Aí a questão devia ser outra: como é que eu poderia acreditar que o casamento pode funcionar de outra maneira? Bem, mas tentando colocar-me nesse lugar: uma das coisas que pode ajudar quando se fala de fé e que distingue o universo religioso é a antropologia, a visão do homem, a visão do mundo. E no cristianismo evangélico não estamos à espera que o mundo seja uma coisa positiva. Somos muito mais marcados pela ideia de que a vida não é fácil. Quando se acredita nisto, também por convicção religiosa, isto tem uma aplicação prática a qualquer área da nossa vida. Por que razão haveríamos de chegar à área sexual e dizer “aqui é fácil, é como cada um quiser”? Nem sequer seria coerente. Se estivermos a falar de um miúdo educado na igreja, querer ter naturalmente relações sexuais e não poder tê-las não é uma linguagem nova para ele. É apenas mais uma das coisas que lhe apetece fazer e não deve fazer.
Quando acabou o curso na universidade já sabia que queria ser pastor?
Era uma questão que estava no frigorífico. No segundo ano de faculdade fiquei um pouco desiludido com o curso e houve um processo mais místico em que senti que talvez devesse ser pastor.
Foi um momento de crise?
Não.
Herdou a religião dos seus pais. Nesse processo que o levou a ser pastor houve algum momento de crise, de questionar?
Não. E essa é uma das coisas que hoje dá cabo de qualquer tipo de narrativa que me dignifique enquanto personagem. Hoje para se ser respeitado é preciso ter tido uma crise qualquer. Nunca tive crise de fé no sentido de me interrogar de perguntar “será que?”. Aliás, se houve alguma crise de fé, porque elas existem de outra maneira, foram nos últimos dois anos. Não no sentido de desacreditar, mas no sentido de me desacreditar a mim próprio graças à minha fé.
Foi então algo progressivo, sem interrupções?
Embora o progresso, no caso do cristão evangélico, seja um bocado paradoxal porque se progride mais quanto mais porrada se leva. Entrei para o seminário teológico baptista, que frequento mas não termino. Mas tive bons conselhos de várias pessoas, como o de acabar o meu curso mesmo indo para o seminário. E foi um excelente conselho. No final do curso acontecem duas coisas: sou convidado por um pastor de Setúbal para trabalhar na igreja junto dos jovens e na área da música. No meio da frustração por não encontrar emprego perguntei-me se não seria a minha vocação religiosa a chegar até mim.
Então foi um cruzamento de vocação religiosa com saída profissional?
Exatamente (risos). Só que logo a seguir tenho um outro convite que, esse sim, misturava a religião com a área da comunicação social, que foi para fazer os programas da Aliança Evangélica para a RTP2. Pouco depois, recebi um convite para fazer o mesmo que em Setúbal só que na igreja de Moscavide. Ainda pensei não ir por ali. É então que ganho uma convicção que me leva a aceitar o convite para ir para Moscavide. Casei em julho de 2002 e já estava há uns meses na igreja baptista de Moscavide, como uma espécie de obreiro auxiliar, depois de sair da igreja de Queluz, onde tinha estado desde sempre.
“A igreja passou a tolerar o estrilho da música”
Nessa altura já existia o lado da música, do punk?
Sim. Isso começou quando eu tinha uns quinze anos e nunca parou.
E isso criava algum tipo de dissonância cognitiva dentro da igreja?
Creio que sim, mas nesse caso creio que uma das bênçãos da igreja baptista de Queluz era ser uma igreja grande e muito aberta. Por volta de 92 começámos a fazer bandas, íamos tocar na igreja, fazer uma barulheira, e tínhamos um pastor, João Rosa de Oliveira, um herói para nós, que pensou que era melhor estarmos ali a fazer barulho do que estarmos lá fora a fazer um disparate qualquer. Por um lado éramos influenciados pelo mundo, com as bandas barulhentas, por outro, começámos a atrair pessoas de fora para a igreja. Por causa disso, a igreja passou a tolerar o estrilho da música.
Referia agora essa relação da igreja com o mundo e a mim parece-me que em Portugal impera a mentalidade de que as religiões estão muito bem desde que estejam no seu cantinho, que não é o que acontece nos Estados Unidos ou no Brasil. Como é que vê essa promiscuidade – talvez não seja a melhor palavra, mas usemo-la à mesma – entre a religião e o mundo?
Se há uma coisa que me faz ter vergonha de ser português é o espírito de suspeição terrível. Não se vê só na religião, mas vê-se muito na religião. E não se vê noutros sítios, como por exemplo nos Estados Unidos ou no Brasil. A superioridade de um povo vê-se na capacidade que ele tem em lidar com a diferença e não há diferença mais diferença do que a religiosa.
Mas não acha que é mais saudável essa separação de águas? Não é melhor para uma sociedade a religião estar arrumada no lado privado?
Não, não. Para já, isso não é possível. Não acredito. Os baptistas foram provavelmente a primeira denominação religiosa no mundo a fazer da separação entre igreja e estado a sua bandeira. Mas ainda hoje essa tensão entre envolvimento e separação existe em todas as igrejas. E é algo que nunca está resolvido. Eu defendo a separação entre igrejas e estado, mas essa separação nunca é a ideia de que a religião é uma coisa privada.
A suspeição de que falava na sociedade portuguesa em relação à religião terá que ver com aquilo que dizia há uns tempos ser o “ambiente secularizado e de esquerda na comunicação social” ou acha que esse ambiente é apenas uma consequência?
Eu não sou de esquerda, mas acho que aí o mais importante não é bater na esquerda. A suspeição é uma questão de ignorância e essa ignorância existe à esquerda e à direita. É uma questão de ignorância histórica. Agora pode-se perguntar o que favorece essa ignorância histórica. Sim, por um lado, essa ignorância histórica vem do facto de a igreja católica ter o monopólio da seriedade religiosa em Portugal, e não o digo como crítica à estrutura, não, é assim que o povo vive, e a isso junta-se o preconceito anti-religioso da esquerda, o que resulta numa profunda ignorância histórica e numa profunda desconfiança em relação à religião. Há uma consequência ainda pior: acredito que a nossa geração, que olha para si mesma como tendo acesso a mais liberdade e mais diversidade, é mais intolerante em termos religiosos do que a geração dos nossos pais ou dos nossos avós.
Porquê?
Porque tem uma presunção de saber mais.
Não acha que isso também acontece por as igrejas só se fazerem notar na discussão pública nas discussões ditas fraturantes?
Não quero fugir à questão, mas é natural que as igrejas se destaquem nas questões fraturantes. Quando são discussões simples ninguém se chateia. Mas não há nenhuma decisão das religiões de só falar sobre o que chateia as pessoas. O próprio termo “questão fraturante” é usado para discussões que são difíceis. É aí que provavelmente se vai ver um crente a dizer “pessoal, lamento, mas tenho umas convicções com as quais não vão concordar”. É possível e recomendável que os crentes apareçam em questões e em momentos que não sejam marcados por uma grande discussão, mas geralmente aí ninguém dá conta. Se for uma causa em que está lá toda a gente, ninguém vai à procura do crente, ninguém vai olhar para a diferença.
Acredita que é possível reverter a atual lei do aborto?
Não sei se é possível.
Luta por isso?
Sim, sim. Acho que um país só se pode considerar intelectualmente tolerante em questões dessas quando uma mudança em relação àquilo a que se chegou e é visto como um progresso também pudesse ser vista como um progresso. O problema é que há uma perspetiva que eu diria que é muito próxima da religiosa na forma como a questão do aborto é vista pelos partidos que o defendem, que é uma maioria. Para eles é uma questão religiosa, no sentido de dizerem “esta solução que existe é moralmente melhor do que tínhamos antes.”
Daí a utilização de expressões como retrocesso civilizacional.
Mas quando se usa expressões como progresso ou retrocesso, está-se a ter convicções muito próximas de convicções religiosas. É o mesmo que eu dizer “isto é moralmente errado”. Se um país diz “temos aqui uma coisa que não pode ser mudada”, eu pergunto qual é a diferença entre isso e um estado confessional? É óbvio que eu também acredito que politicamente há coisas que são boas e não devem ser mexidas, mas como é que enquanto povo se pode discutir isso se não for com liberdade de expressão, com pessoas que pensam como eu em relação ao aborto a poderem dizer que se devia suscitar uma discussão sobre o assunto com a possibilidade de, democraticamente, as pessoas mudarem de opinião? Porque é que isto há-de ser visto como uma coisa errada? Afinal, foi assim que se chegou à atual lei.
Em relação ao aborto houve movimentos, o que acha que vai acontecer com a questão da eutanásia?
Foi assinada há dias uma declaração conjunta de várias confissões religiosas, católicos, protestantes, judeus, muçulmanos, bahá’is. As confissões estão a tentar fazer o máximo que conseguem. Reconheço que o ambiente cultural hoje não é… acho que as pessoas tomam estas questões como resolvidas, que não vale a pena lutas perdidas. O que leva a duas reacções na questão do aborto. Primeiro, a um extremo, e eu já estive aí, que é pensar que não vale a pena. Ou tem-se outra reação que é a de pensar que agora que só podemos perder é que pode haver alguma convicção para nos envolvermos nisto.
“Há pessoas a dizer coisas horríveis de mim na Internet”
No ano passado esteve envolvido numa polémica sobre a tradução da Bíblia de Frederico Lourenço em que escreveu “poucas vezes me senti tão desapontado pela discrepância entre o potencial do debate e a desinspiração do retorno”. Não devia um protestante acima de tudo regozijar-se pela existência de uma nova tradução da Bíblia?
Aquilo foi um conjunto de três textos que eu hoje colaria de maneira diferente. Reconheço que houve uma certa bipolaridade. O primeiro texto era tão positivo que quando publiquei o segundo com a pancada [à tradução] quase parece que não havia ligação entre uma coisa e outra.
Mas há pouco falava da presunção desta geração e do pouco conhecimento que, afinal, tem. Não será esta tradução o facto mais relevante dos últimos anos ao nível do conhecimento da Bíblia?
Sim e não. Qualquer nova tradução da Bíblia é uma boa notícia. Agora a minha tese é que em Portugal a tradução da Bíblia funciona – e quero ser justo com o Frederico Lourenço, cujo trabalho aprecio – ao contrário, passa a existir um Senhor Bíblia, passa a existir um padre numa época em que as pessoas já não ouvem padres. Agora tem-se a Bíblia do Frederico Lourenço e é ele que pode dizer como é que a Bíblia deve ser lida. E isso é uma coisa incontornável num país nascido num contexto católico. Agora há este novo acesso à Bíblia, mas é novamente um acesso mediado. Esta mediação é mais irritante porque agora nem sequer é institucional, é intelectualizada.
Mas é uma mediação com autoridade intelectual.
Mas é mais perversa. Ao menos antigamente a igreja católica dizia assim: “isto não se pode ler, meus amigos.” Agora não, diz-se “todos podem ler”, mas em que isso vem com uma caução em que o Frederico Lourenço se apresenta a ele próprio como a leitura mais intelectualmente razoável da Bíblia. O que é falso. E isso viu-se na discussão, que não foi feita por mim, que não percebo de grego, mas pelo meu cunhado, que percebe, em que se vê que o Frederico Lourenço não foi fiel a um princípio de suposta iluminação intelectual. Resultado: as pessoas passam a pensar que agora é que estão a ler a Bíblia, mas o paradigma de leitura que está lá, preso a uma caução intelectual, amarra o leitor àquela leitura. É bom termos novas traduções, mas num país como Portugal hoje temos a figura do Frederico Lourenço como uma espécie de supra-padre.
Aquilo que o desiludiu foi o tom e o conteúdo da resposta de Frederico Lourenço?
A resposta foi reveladora. Ele nunca nos refere pelo nome, não misturando o mundo académico com o mundo religioso, que é, na minha opinião, um dispositivo ingénuo e infantil que ele usa na tradução. Ele faz-nos acreditar que por não ter uma confissão religiosa assumida está em melhor posição para ler um texto que é religioso. Só compra isso quem quiser.
Mas usaria esta tradução no seu trabalho de pastor?
Já a usei em vários sermões. Havia uma nota sobre o sermão do monte e eu disse que julgava que a tradução do Frederico Lourenço era naquele caso a mais correta.
Em relação a este livro que publicou agora, é um conjunto de sermões pregados na igreja baptista de São Domingos de Benfica, onde já não está, e centrados no evangelho de Marcos. O que é que esse evangelho tem de especial?
Na altura, a brevidade dele foi um dos critérios. Como a comunidade era pequena, estávamos a fazer uma coisa que era ler livros da Bíblia do princípio ao fim. Já tínhamos feito isso com a primeira carta de Paulo aos Coríntios e resolvemos fazer o mesmo com um evangelho e a brevidade de Marcos ajudava. Eu também estava mais contextualizado com esse evangelho do que com os outros. O facto de ser um evangelho tão concentrado na ação ajuda mais facilmente a mostrar quem Jesus é. Não significa que isso não possa acontecer com os outros evangelhos, até com o de João, que é o mais filosófico, mas aquela secura narrativa ajuda.
Chega a falar da simplicidade que permite que a mensagem chegue a mais pessoas. Não é uma contradição com o espírito do protestantismo?
Não é se pensar que um protestante defende que a Bíblia deve ser lida por todos. Nesse sentido, ela tem de ser o que é e cada um tem de lutar com ela à sua maneira. Para o protestantismo, a simplicidade é quase um evangelho. Quando se estuda a vida de Lutero, vê-se que ele teve um choque com a escolástica, e não foi só ele. Havia a convicção de que o evangelho é percetível. Uma das coisas que acho que distingue mais o protestantismo do catolicismo é que a ênfase bíblica no mistério não é no que fica por revelar mas no que está revelado. Numa era de muitas e utilitaristas humildades epistemológicas, nós, evangélicos, acreditamos que a palavra é percetível.
Disse noutra ocasião que a sua fé depende da Bíblia ser inteiramente verdadeira. Quer explicar o que é que isso significa?
É acreditar que a Bíblia é uma revelação, é uma ideia de Deus, que ele executou e que conseguiu ser competente nessa ideia. Isto é uma simplificação, claro, mas simplificando ainda mais: eu acredito que o mundo foi criado por Deus e que, portanto, ele foi competente a criá-lo e que geralmente é competente a executar as ideais que tem (risos). Isto não significa um apelo à santa ignorância, coisa que aliás é dita logo no primeiro sermão. O facto de a Bíblia ter origem divina não significa que lê-la seja divino, não significa que percebemos tudo, mas significa que, se a Bíblia é de facto a revelação de Deus, Deus vai ser competente a revelar-se nela.
Na preparação dos sermões, prepara o lado de performance no púlpito?
Não. Eu falo com muita facilidade, o que tem uma desvantagem que é a de ficar demasiado confiante por essa facilidade. Não existe aquela coisa de pensar que vai chegar ali um momento no sermão em que há um clímax. O que não é um desprezo do tratamento formal do sermão. Até diria que a preocupação com o tratamento formal aparece mais na revisão para texto do que na maneira como eles foram pregados, porque não foram pregados tão direitinhos como estão no livro. Por isso é que digo que não há nada como assistir no lugar.
Acha que é mais violento, mais radical nas suas convicções, do que aquilo que as pessoas normalmente reconhecem?
Depende. Há pessoas a dizer coisas horríveis de mim na Internet, a chamarem-me homofóbico, o que hoje em dia é a pior coisa que podem chamar a alguém. Não fico satisfeito por saber que há pessoas que não me conhecem a alimentar um processo de ódio contra mim. Eu sei que há quem fale de mim como o teólogo, o músico, quase uma figura da cultura portuguesa, mas depois há o outro lado. Uma vez envolvi-me numa discussão com o Miguel Vale de Almeida a propósito de questões antropológicas, sobre o modo bastante impreciso como ele fazia uma leitura antropológica do cristianismo em relação à sexualidade, e de repente tinha numa caixa de comentários o Miguel Vale de Almeida, a Rita Ferro Rodrigues e a Fernanda Câncio todos a teorizar sobre a artificialidade de quem eu sou.
Acusavam-no do quê?
Diziam que era tudo montado, que nunca tinham acreditado, que era tudo artificial, e o que eu tinha escrito num texto é que era demasiado queer para os queers, demasiado bicha para as bichas, e não sabem o que é que hão-de fazer comigo. A cultura que supostamente promove o artifício como uma espécie de oportunidade para a afirmação não pode conceder isso a um perigoso fundamentalista como eu. O artifício é, para nós, uma condenação ética. Para eles, não. Mas quando vejo essas pessoas em caixas de comentários a dizer que sou uma fraude isso equilibra a opinião das pessoas que acham que sou o respeitável. Existem os dois lados.
Tem amigos ateus?
Muitos. Até porque tenho muitos amigos. Amigos dos bons e que não partilham a fé.
Isso é possível?
Claro que é. Às vezes acontece termos áreas de entendimento com pessoas que não partilham das nossas convicções mais fundamentais.
E isso aplica-se também às relações amorosas? É possível um crente viver com um não-crente?
Não. Para o cristianismo, o casamento não é uma coisa em si. É uma consequência da relação entre Cristo e a igreja. Hoje, o casamento é visto como uma coisa em si, como uma unidade que funciona a partir de si própria. O casamento, não como unidade que funciona a partir de si própria, mas como uma invenção de Deus para que a pessoa, ao estar casada, perceba melhor o sacrifício que Jesus fez por nós, só é possível quando os dois creem nisso. Dito isto, há casamentos de pessoas que não têm fé que produzem frutos mais interessantes do que outros de pessoas com fé. Isso faz parte da humildade de nós, cristãos, sabermos que às vezes somos muito piores que os outros. E isso não é uma contradição porque a nossa fé é a de que somos piores e é por isso que precisamos de ser salvos de alguma coisa.
Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor de “As Primeiras Coisas”, vencedor do prémio José Saramago em 2015, e de “Hoje estarás comigo no paraíso”