Índice
Índice
Quando por qualquer motivo numa conversa se menciona Marrocos, além de Paul Bowles, lembro-me de Tintin. Não há nada a fazer. A primeira vez que estive em Marrocos, Tânger, a cidade de Bowles, o capitão Haddock podia surgir a todo o tempo em qualquer esquina da medina. O Caranguejo das Tenazes de Ouro tem essa força: a cor, a cor das pranchas que Hergé tão bem delineou, tão bem desenhou e pintou, impõe-se na nossa memória ao ponto de se tornar omnipresente.
No seu livro Le Monde d’Hergé (Casterman) Benoît Peeters, escritor, argumentista e um tintinófilo, descreve melhor que ninguém essa magia que é pegar num álbum de Tintin e começar a lê-lo como se fosse a primeira vez, apesar de já o conhecermos de cor. Que idade temos nesse momento? 6 anos? 20 anos? 45, 77 ou já 90? Que interessa se, quando folheamos as páginas e engolimos a história, a realidade se dissipa e a idade se dispersa ao ponto de nos reencontrarmos com o que éramos quando entre aqueles quadradinhos, no interior daquela história e entre aquelas personagens, estivemos pela primeira vez. Voltamos a ser o miúdo que sentado na cama e de costas encostadas no travesseiro come bolachas enquanto muda as páginas. Basta querer.
Faz 90 anos que Tintin entrou no comboio que de Bruxelas o levou ao País dos Sovietes, a sua única reportagem e primeira viagem. Seguiram-se África, América, a China, a Arábia e o norte de África, o fundo dos mares e a Lua; do cume dos Andes aos Himalaias. De Moulinsart a uma longínqua ilha do outro lado do mundo. Com Tintin não deixamos apenas de ter idade; passamos também a estar em qualquer lugar.
A linha clara
Quando o meu filho tinha dois anos, sentávamo-nos os dois no sofá, com ele bem enroscadinho a mim, e folheávamos os livros do Tintin. Virávamos as páginas, que eu não lhos lia tão pequeno que era. E o que me surpreendeu foi aperceber-me que, apesar de tudo, o meu filho acompanhava a história apenas pelos desenhos. Curioso, fiz o mesmo: deixei de ler os livros e passei só a vê-los. Sugiro a quem leia estas linhas que faça o mesmo: que pegue num álbum, um qualquer, e em vez de ler o texto dentro dos balões, siga tão só o desenhos, os quadradrinhos, as tiras, as pranchas, as páginas. E verá que a história flui por si mesma já que os desenhos têm vida própria.
Perceber o que é a “linha clara” é viver esta experiência. Mas a “linha clara” não se reduz a um bom desenho. Na entrevista que Hergé concedeu ao mesmo Benoît Peeters a 15 de Dezembro de 1982 (três meses antes de morrer) o criador de Tintin explicou que o conceito de “linha clara” não se limita apenas ao desenho, não apenas ao traço preciso e rigoroso em que cada elemento do desenho se encontra separado dos outros com os quais forma o conjunto, mas ao cenário, ao plano da história e à técnica narrativa. Nessa entrevista, Hergé chama a atenção para as várias obras de banda desenhada em que os desenhos até podem ser lisíveis, mas em que a história, o enredo, se perde porque está mal montado.
Por esse motivo é tão surpreendente colocarmos um livro do Tintin nas mãos de uma criança de dois, três anos e nos apercebermos que elas acompanham a história. Compreendem algumas graças e chegam a colocar perguntas. A pensar e a inquirir. Mas acima de tudo não tiram os olhos de cima do livro. Por isso costumo dizer que quem queira dar hábitos de leitura aos filhos deve começar por aqui: pelo Tintin. Mesmo 90 anos depois.
O humor de Hergé
As primeiras aventuras estão cheias de pequenas tropelias de piada fácil que se foram apurando com o tempo sem jamais se perder a essência do burlesco e do ridículo. Com o desenrolar dos anos esse humor vai-se aprimorando e a piada fácil e óbvia, por vezes até grosseira, atinge níveis de uma impressionante subtileza. Desde a gritaria de Haddock para os berberes do deserto quando partem a tiro a sua garrafa (O Caranguejo das Tenazes de Ouro, p. 37), à graça mordaz de Nestor sobre o capitão que se tornou num novo-rico e que anda a cavalo apesar de só chegar casa depois do pobre animal (As Sete Bolas de Cristal, p. 2). As fúrias do capitão são, aliás, as piadas mais notórias, as que os miúdos melhor apreendem: a sua irritação perante a surdez do Professor Girassol (O Tesouro de Rackham o Terrível, p. 5), as fúrias defronte da insolência do irritante Serafim Lampião ou quando atende vezes sem conta um telefonema dirigido não para si mas para o talho Sanzot (O Caso Girassol); quando, em pleno Atlântico se apercebe que Girassol trocou as garrafas de whisky guardadas em caixas no porão do barco por peças de um submarino e lhe puxa pelos colarinhos vociferando: ‘Mon whisky misérable!… Qu’avez-vous fait de mon whisky?’ (O Tesouro de Rackham o Terrível, p. 20). O que o meu filhote não se riu, ainda se ri, quando brincamos com isto…
Mas há também a comédia visual, a comédia sem palavras, o mero desenho como elevação humorística, a tal linha clara, como na cena do adesivo em O Caso Girassol (p. 45) ou com o equilibrismo de Nestor em As Sete Bolas de Cristal (p. 4). O nonsense de Bianca Castafiore, sempre a leste e à margem do que real, a diva que se julga culta (apesar de corrigida pelo mordomo quando arrisca acertar no estilo da mobília do seu quarto — As Jóias de Castafiore, p. 11 ), pedante e pretensiosa, que vive acima das peripécias dos meros mortais ao ponto de, perante o relato dos inúmeros imprevistos passados por um jornalista para chegar a horas a Moulinsart, onde a ia entrevistar, responder com um lacónico ‘Ah! Oui? … Comme c’est amusant’ (As Jóias de Castafiore, p. 30). Porque para Castafiore tem graça o que os outros, meros desenhos, passam para conseguirem lhe falar. E neste ponto Hergé é sublime, tornando Castafiore numa de nós, uma personagem que tal como os leitores se ri e acha graça, se diverte com que se passa lá dentro. Pessoas que reduzem a simples desenhos. Um humor sibilino que chega a atingir a magia do sublime.
Um mundo visto por um ocidental
Um certo humor de Hergé foi diversas vezes criticado por ser considerado racista ou xenófobo. Alguns dos álbuns iniciais, como Tintin no País dos Sovietes (1929-30), Tintin no Congo (1930-31), Os Charutos do Faraó (1932-34) e até mesmo a Orelha Quebrada (1935-37) revelam a visão que o europeu médio da época, no caso de Hergé, católico e conservador, tinha do resto do mundo. O caso mais exemplar é precisamente o de África, o Congo Belga para o qual, a pedido do padre Norbert Wallez (o editor do Le Vingtième Siècle), Tintin se dirige para que os jovens belgas conheçam e se interessem pela colónia. Hergé contará mais tarde que não conhecia verdadeiramente aquele país nem a realidade africana. Daí a visão que transparece ser a que se comentava na época. O sucesso foi na altura imediato e, apesar das polémicas posteriores que uma obra tão datada provoca, é ainda hoje mais bem aceite em África que nesta Europa agora tão politicamente correcta e incapaz de contextualizar os acontecimentos.
A mudança inicia-se com O Lótus Azul (1934-35). É durante a preparação deste álbum que o criador de Tintin conhece um jovem chinês da sua idade, estudante de Belas-Artes em Bruxelas, que lhe dá a conhecer a cultura chinesa e o impede de cair nos simplismos das aventuras anteriores. Tchang Tchong-yen inicia Hergé na cultura e história chinesas de modo que em O Lótus Azul já não nos deparamos com uma caricatura que os europeus faziam dos outros povos mas com chineses delicados e honestos, homens e mulheres dignos. A amizade entre Hergé e Tchang durou décadas, apesar de não se terem visto durante cerca de 40 anos. Tchang voltou à China em 1935 e apenas regressou à Europa em 1981, altura em que os dois finalmente se reencontraram.
Hergé chegou mesmo a colocar Tchang na sua história quando Tintin o salva de morrer afogado num rio. “Porque me salvaste a vida?” pergunta-lhe o jovem chinês perante a incredulidade de Tintin. “Sim, porquê?… Eu supunha que todos os diabos brancos eram maus.” Ao que Tintin lhe responde que “Mas não, Tchang, nem todos os brancos são maus. Mas os povos conhecem-se mal. Assim, muitos europeus imaginam que todos os chineses são velhacos e cruéis, usam tranças e passam o tempo a inventar suplícios e a comer ovos podres e ninhos de andorinhas. Esses mesmos europeus estão absolutamente convencidos de que todas as chinesas, sem excepção, têm pés minúsculos e que, ainda agora, todas as meninas chinesas sofrem mil torturas para impedir que os seus pés se desenvolvam naturalmente. Por fim estão convencidos de que todos os ribeiros da China estão cheios de bebezinhos chineses que foram lançados à água, à nascença… e eis, meu caro Tchang, como muitos europeus vêem a China.” Os dois riem-se desalmadamente com Tchang a concluir: “Ah! Como são cómicos os habitantes do teus país.” Este álbum é também interessante porque o humor é utilizado não para satirizar os povos não europeus, mas a simplicidade com que estes encaram os restantes povos do mundo. Assim é com os Dupondt vestidos de chineses, com o intuito de passarem despercebidos, que são alvo da chacota de uma cidade inteira.
A partir daqui Hergé deixa de se guiar pelos estereótipos. Em Carvão no Porão (1956-57), a fúria do Capitão Haddock é canalizada para atacar os traficantes de escravos, uma realidade hoje tão actual que nos faz pensar. Tintin e os Píncaros (1975-76) é uma crítica à corrupta classe política sul-americana que explora um povo que, à semelhança dos europeus, deseja e merece uma vida melhor e digna. E em Tintin no Tibete (1958-59), Hergé retrata os monges budistas como pessoas simpáticas, simples e honestas. Uma alteração relevante se nos recordarmos que, quase trinta anos antes, em Os Charutos do Faraó, o indiano moderno era o marajá e os sacerdotes hindus não passavam de personagens maléficas.
O melhor de nós
O segredo de Tintin é ser normal. Não fica descomunalmente forte após beber a poção mágica como Astérix, nem dispara mais rápido que a sua própria sombra como Lucky Luke. Tintin é o que qualquer um de nós pode ser: corajoso e intrépido, frontal e leal. Decidido e bondoso. Perspicaz e atrevido.
Tintin no Tibete é, neste sentido, um álbum emblemático. Aqui não há malvados; apenas o infortúnio do avião de Tchang que se despenha nos Himalaias. O amigo de Tintin vinha visitá-lo à Europa (Hergé também precisava que o verdadeiro Tchang o viesse ouvir e aconselhar como antes), mas foi dado como morto nos picos das montanhas. Perante a notícia que lê no jornal Tintin não dúvida por um momento que Tchang esteja vivo e decide ir em socorro do amigo. “Se não vens ter comigo, vou eu ter contigo”, terá pensado Hergé. E o livro é a travessia dos Himalaias, com Tintin e o Capitão Haddock mais o fiel Milu, na crença pouco crível que Tchang tivesse sobrevivido. O enredo é simples, directo, o branco da neve domina, não há nada que distraía Tintin, nem Hergé, da sua busca. O primeiro procura o amigo, o segundo a paz interior. Foi através deste álbum que Hergé exorcizou os fantasmas que o perseguiam desde a infância e adolescência. Uma viagem que o ajudou a atenuar os valores católicos que o impediam de se separar da sua primeira mulher e casar com Fanny Vlamynck, com quem viveu até morrer em 1983.
Porque somos humanos, a perfeição de Tintin torna-o aborrecido e quase patético. Não deixa de ter graça que para evitar que tal suceda, Hergé se socorra de patetas (mais uma pitada de um humor peculiar). Os Dupondt, o Capitão Haddock, o professor Girassol, Bianca Castafiore, Serafim Lampião, o General Alcazar, o senhor Oliveira da Figueira, o bravo Nestor, o Doutor Müller ou até Rastapopoulos, não são mais que a imagem, o desenho, dos defeitos que todos temos. E estando cada um de nós retratados nos álbuns de Tintin, estes tornam-se verdadeiros, uma caricatura inteligente e perspicaz da realidade.
A influência de Hergé na banda desenhada
Hergé é considerado um gigante na BD. Há um antes e um depois dele. Se dermos uma pequena vista de olhos ao que era banda desenhada em 1929 e a comparámos com aquilo em que se tornou a partir de 1946, percebemos porquê. A linha clara, mesmo antes de ter sido teorizada, tornou-se numa técnica transversal a quase todos os criadores de banda desenhada franco-belga: Astérix, Lucky Luke, Blake e Mortimer, Alix, Ric Hochet, Spirou, Gil Jourdan, Barelli, e muitos outros surgiram aproveitando as portas abertas por Tintin.
Mas Hergé não foi apenas um inspirador de autores de banda desenhada. Chegou mesmo a empregar muitos deles. Os mais importantes foram Edgar P. Jacobs, Jacques Martin e o grande Bob de Moor. Os três trabalharam na revista Tintin, lançada em 1946 pela editora belga de banda desenhada, Le Lombard. É nesta que Jacobs vê publicado O Segredo do Espadão, primeira aventura de Blake e Mortimer; que Jacques Martin publica boa parte de Alix, e em que Bob de Moor apresenta a sua personagem Barelli.
Jacobs, o primeiro colaborador de Hergé, teve um papel fulcral no álbum As Sete Bolas de Cristal, com os desenhos e ambientes da casa do professor Bergamotte, onde Girassol será depois raptado. Jacobs foi ainda responsável pelo cuidado pelo pormenor nas aventuras de Tintin e que Hergé não tinha. Infelizmente, a história entre os dois não é tão bonita quanto se poderia desejar com zangas, incompreensões, rivalidades e pequenas traições pelo meio. Apenas o ponderado Bob de Moor conseguiu ficar de bem com Hergé e com Jacobs tendo, inclusivé, terminado o último volume das Três Fórmulas do Professor Sato que este último deixou inacabado.
Apesar de tudo, tanto Hergé como Jacobs não resistiram à tentação de também eles serem parte integrante das aventuras de Tintin. Para os apreciadores procurá-los pode ser um verdadeiro jogo. Os dois surgem em ‘Tintin no Congo’ (p. 1, tira A1); Jacobs aparece no Ceptro de Ottokar (p. 38, tira D1 e p. 59 tira C1); Hergé no Caso Girassol (p. 13, tira C1); Jacobs regressa em Os Charutos do Faraó (p. 8, tira A1) e no Rumo à Lua (p. 40, tira C2).
Tintin é um universo sem fim. Há sempre uma tira que nos surpreende, uma história escondida, uma pista, mensagem, algo que nos apanha desprevenidos. Há toda uma simplicidade que esconde o que é complexo, demasiado complexo. Mas acima de tudo somos nós a pegar nos álbuns e a recuar no passado, sairmos de onde estamos e nos largamos algures, num local que tem todas as condições para existir de tão real parece ser. Para mim, que comecei a ver as histórias de Tintin antes ainda de saber ler (novamente a linha clara), a oportunidade de escrever este pequeno ensaio foi única. A possibilidade de fazer um pouco parte de tudo isto, de honrar a memória de um génio, de um artista: Georges Rémi, Hergé. E talvez quem sabe levar alguém a apresentar este mundo aos seus filhos ou netos.