O inverno cai sobre o hemisfério norte. Os dias tornam-se mais curtos, as noites frias e longas, e a escuridão prevalece. Na noite mais longa do ano — na noite do Solstício de Inverno — quando a gelo e a escuridão pareciam não ter fim, os antigos pagãos recusavam-se a acreditar na morte do sol. Em vez disso, juntavam-se para celebrar a luz e a natureza adormecida.
Apesar de há muito desaparecidos, as tradições dos antigos povos pagãos persistem — no acender das luzes de Natal, nas decorações, ou simplesmente pelas mãos de inúmeros devotos que seguem, ainda hoje, as crenças antigas.
Um Natal igual ao dos nórdicos
Foi no coração de Campo de Ourique, sentada entre incensários, que fomos encontrar Isobel Andrade, coordenadora da Associação Cultural Pagã, uma congregação que representa a Pagan Federation (PFI) em Portugal. Nascida no seio de uma família de cartomantes, a tia e a avó sempre tentaram afastá-la do ocultismo. “Não metas a miúda nessas coisas”, diziam-lhe, mas “a miúda tinha um interesse danado”, confessou entre risos. Foi esse interesse “danado” pelas coisas que a fez tirar o curso de História na Faculdade de Letras de Lisboa. Mais tarde, conheceu o Wicca durante uma viagem a Inglaterra e desde então que se tem dedicado à prática e ao estudo do paganismo. Mas o paganismo não foi apenas uma simples descoberta. Admite ter nascido pagã, porque “ser pagã é como outra religião qualquer”, confessou. “Está na nossa alma”.
Todos os anos, no dia 21 de dezembro, a Associação organiza uma festa de Jul, a celebração nórdica do Solstício de Inverno. Apesar de ser uma das mais importantes festividades pagãs do norte da Europa, o Jul ou Yule tem raízes que são muito mais antigas do que qualquer civilização conhecida. As primeiras referências ao Solstício de Inverno encontram-se em monumentos megalíticos, como é o caso do Newgrange, na República da Irlanda, ou o monumento de Alcalar, no Algarve, ambos orientados pelo nascer do sol durante o período do Solstício.
Para os nórdicos e germânicos, o Jul significava a luz num mundo de trevas. Na noite mais longa do ano, quando a escuridão parecia não ter fim, homenageava-se a natureza e faziam-se oferendas aos deuses, pedindo para que o inverno passasse depressa. As casas eram decoradas com ramos verdes, conhecidos por “evergreen” ou “sempre verde”, e faziam-se grandes fogueiras, às voltas das quais era reunida a família. O fogo era sempre o elemento central, símbolo da luz e da própria vida.
Na Associação Cultural Pagã, a celebração não é muito diferente. No dia 15 ou 16 de dezembro, começam a fazer-se as primeiras decorações. Traz-se o que está verde para dentro de casa – ramos de pinho ou azevinho, que são depois pendurados. “Não perdemos grande tempo com as decorações”, explicou Isobel. “Para nós a presença do verde basta”. Na noite de Solstício faz-se um jantar de congregação e procura-se reproduzir as antigas celebrações, mas sempre tendo em conta que “estamos no século XXI”.
Ao cair da noite, antes do jantar, os membros reúnem-se. Às escuras, é aceso o fogo que, a pouco e pouco, vai iluminando as caras dos presentes, antes ocultas na escuridão. Faz-se uma primeira saudação e depois cada um saúda os seus deuses. Segue-se depois o jantar. Para a refeição, são utilizados os alimentos da época — abóbora, colhida no outono, castanhas, maçãs e carne. Os doces também não faltam. “É claro que há sempre uma jeitosa que faz filhoses”, contou Isobel. Há sempre alguém que leva um bolo-rei, que é depois decorado com pinho e azevinho.
À mesa, há sempre um lugar vazio em memória daqueles que já partiram. “Não lhe chamamos nem lugar vazio, nem lugar do morto. Chamamos-lhe trono”, disse Isobel. Depois da refeição, contam-se histórias, porque Natal sem histórias não é Natal. Histórias de heróis, de monstros, mitos e lendas nórdicas. Alguns trazem presentes, mas não é hábito. “Não faz parte do rito”, explicou a coordenadora. “É uma festa de Natal muito semelhante à tradicional”, admitiu. “Mas claro que um Jul no campo tem outra dimensão. Existe a lareira, acende-se um fogo dentro de casa e outro na rua”.
O jantar da congregação é geralmente feito quando a noite de Solstício calha durante o fim de semana, por causa da disponibilidade dos membros. Mas quando isso não acontece, cabe a cada um fazer a sua própria celebração. “Nós em casa não nos esquecemos do Solstício”, referiu Isobel. “Não nos esquecemos de o comemorar, ainda que não seja com uma grande festa”.
Apesar de admitir que o “dia vinte e quatro não nos diz nada”, a coordenadora explicou que isso não significa que o Natal cristão não seja também passado em família. “Não seria justo haver a mínima descriminação. Nós é que fazemos questão de fazer os nossos ritos nos dias certos”, mas isso não “nos impede que saibamos viver com os outros”.
O Natal dos celtas
Longe dali, na Quinta dos Lobos, em Sintra, o Solstício de Inverno também costuma ser celebrado com uma grande festa, uma fogueira para afastar o frio e muita música. Perto da natureza, com a Serra de Sintra como pano de fundo, a Casa do Fauno faz todos os anos uma festa de Solstício. Come-se, bebe-se hidromel — a bebida da imortalidade e dos deuses — e dança-se ao som de música tradicional irlandesa. Lá fora, uma fogueira arde e ilumina a noite sem fim.
Alexandre Gabriel, da Casa do Fauno, e orientador da Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas em Portugal, explicou que é fácil entender a importância do Solstício e das várias estações se “estivermos próximos da natureza”, porque “foi ela que ensinou os povos antigos e é ela que nos ensina ainda hoje”. Para além de marcar a noite mais longa do ano e o período em que a noite predomina sobre o dia, é também um momento de viragem — os dias começam a tornar-se cada vez maiores. É por isso que, para os celtas, o Solstício de Inverno era um tempo de morte, mas também de renascimento e de esperança.
Em termos simbólicos, isto significa que é preciso chegar ao máximo de escuridão para haver um vislumbre, mesmo que ténue, da luz. Não é, por isso, por acaso que os antigos cultos de Mithra do Império Romano, inspirados num culto de origem persa, as Saturnálias, uma festa celebrada em honra do deus Saturno e do Sol Invictus (o “sol invencível”) e, mais tarde, o próprio cristianismo, atribuíram a esta altura o nascimento da luz. “Significa que temos uma capacidade muito maior o que pensamos para ultrapassar as dificuldades, porque é isso que culturalmente a noite significa”, explicou Alexandre.
Para a tradição druídica, que renasceu na Europa no final do século XVIII, o Solstício chama-se Alban Arthan, um termo gaulês que significa a “Luz de Artur”. Em gaulês, “arth” significa “urso”, um animal que simboliza a força, mas também a sabedoria. “O urso, que está na gruta, sobrevive aos rigores do inverno, fortifica-se e ultrapassa todas as dificuldades”, referiu Alexandre. Mas a história da natureza adormecida durante o inverno está também presente em muitos outros mitos e religiões. “São mitos que são transversais a várias culturas”, disse. “Não podemos dizer que o cristianismo se apoderou destas festas pagãs ou druídicas porque, na verdade, estas não pertencem a nenhuma tradição específica”, explicou. “Fazem parte da natureza e do ser humano”.
No druidismo, não existe nenhuma tradição específica de comemoração do Solstício. Apesar de existirem alguns ritos orientadores, o importante é a relação de cada indivíduo com o que o rodeia. “Um ritual muito belo e muito profundo, pode ser simplesmente acender uma fogueira durante o Solstício de Inverno”, exemplificou. Com ou sem fogueiras, o que importa é celebrar — mas da forma que naturalmente surgir em cada um.
Mais do que uma festividade cristã, o Natal é um momento de reunir a família à volta de uma grande fogueira e celebrar, com cânticos e doces, por quaisquer que sejam as razões, a luz num mundo onde, por vezes, a escuridão parece prevalecer.