Atravessou-se por D. José Policarpo e D. Manuel Clemente quando começaram a sair as primeiras notícias sobre encobrimento de crimes sexuais na Igreja Católica atestando-lhes a idoneidade a título “pessoal”. Telefonou diretamente a um bispo investigado pelo Ministério Público e enredou-se entre datas, confusões e considerandos sobre a origem do telefonema. E, num único dia, viu-se obrigado a falar quatro vezes sobre o mesmo tema, tentando emendar, enquadrar, corrigir e explicar as declarações — sem nunca pedir desculpas como lhe exigiram vários partidos e personalidades políticas.
O dia de terça-feira acabou por ser o pináculo do desconforto que as várias intervenções de Marcelo sobre o tema vêm criando. Primeiro, disse que os 400 testemunhos que chegaram à Comissão Independente não lhe pareciam um “número elevado“. Depois, emitiu uma nota presidencial a dizer que, afinal, o número seria inferior face “à provável triste realidade” do país. Já à noite, falou à RTP dizendo ter a convicção o número até deve ser “curto”. Por fim, ainda mais tarde, veio lamentar, em declarações à SIC, que não podia ficar “amuado“, nem “magoado” com as críticas.
Em menos de três meses, Marcelo Rebelo de Sousa já somou incontáveis declarações polémicas sobre os abusos praticados no seio da Igreja Católica e sobre o trabalho que está a ser conduzido pela Comissão Independente — de resto, na altura em que defendeu publicamente D. Policarpo e D. Manuel Clemente sentiu-se na necessidade de chamar a equipa para reforçar o apoio ao trabalho coordenado por Pedro Strech.
“Providencialista e fatimista”, que ajudou a fundar, com António Guterres e o padre Vitor Melícias, o Grupo da Luz, que nunca aderiu ao Opus Dei por ser demasiado “livre” e “rebelde, como resumiria no podcast de Francisco Pinto Balsemão, Marcelo nunca deixou de se assumir como católico, de dizer que Deus era “a razão de ser da [sua] vida”, que rezava o “terço todos os dias”.
Depois do dia mais quente do seu mandato presidencial, o único momento em que conseguiu reunir críticas duríssimas de todos os quadrantes políticos, acabou por se ver obrigado a ter de responder se estaria a sua fé católica estaria a influenciar o mandato presidencial.
“Acha que a fé influencia quando o Presidente pega numa denúncia em relação ao mais importante dos bispos portugueses e assina ele próprio para que o Chefe da Casa Civil transmita imediatamente ao Ministério Público?”, respondeu Marcelo à RTP, visivelmente agastado pelas duras críticas que tinha recebido. Acabou isolado, apenas com o apoio de António Costa, a garantir que tinha sido “mal interpretado“.
Três meses de declarações polémicas
Aquilo que eu posso dizer – e nem é como Presidente da República, é como pessoa – é que o juízo que formulo sobre as pessoas e não os elementos da hierarquia católica, as pessoas D. José Policarpo e D. Manuel Clemente, é o de que não vejo em nenhum deles nenhuma razão para considerar que pudessem ter querido ocultar da justiça a prática de um crime. É a opinião que eu tenho, pessoal”
28 de julho de 2022
Este é o primeiro momento em que Marcelo Rebelo de Sousa se pronuncia sobre a notícia avançada pelo Observador e que dava conta de que o atual cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, teve conhecimento de uma denúncia de abusos sexuais de menores relativa a um sacerdote do Patriarcado.
Segundo a mesma denúncia, D. Manuel Clmente chegou mesmo a encontrar-se pessoalmente com a vítima, mas optou por não comunicar o caso às autoridades civis e por manter o padre no ativo com funções de capelania. Além disso, o sacerdote continuou a gerir uma associação privada onde acolhe famílias, jovens e crianças, com o conhecimento do atual cardeal-patriarca.
As declarações de Marcelo — que também defendeu D. José Policarpo — merecem várias críticas ao Presidente da República. Dias depois, Marcelo decidiu chamar a Belém Pedro Strech para manifestar total confiança no trabalho que estava a ser desenvolvido pela Comissão Independente.
É esse o apelo que eu quero fazer: testemunhem, utilizem o direito de denúncia (…) Pedagogicamente, a comissão também tem tido um papel fundamental: ajudar a Igreja Católica a fazer o seu percurso (…) Há setores que resistem mais por comportamentos, por práticas e rotinas, mas é um erro não perceber que, para a sociedade como um todo e para as instituições, o que é salutar, o que é bom é anteciparem-se no apuramento da verdade, na transparência. Isso é que dá vida às instituições. Se não o fizerem, vão apodrecendo e vão morrendo, pensando que estão vivas.”
5 de agosto de 2022
Neste dia, e na sequência das declarações anteriores, o Presidente da República fez questão de elogiar em toda a linha o trabalho desenvolvido pela Comissão Independente, pediu uma reforma urgente da forma como a Igreja Católica se relaciona com estes casos e deixou um apelo a todas as vítimas: “O testemunho é anónimo e tem um valor fundamental como exemplo do que deve ser o comportamento dos portugueses.”
Confirma-se a receção de participação provinda da Presidência da República. A mesma foi transmitida ao Ministério Público de Braga e ao DIAP [Departamento de Investigação e Ação Penal] de Lisboa para análise.”
1 de outubro de 2022
Chega a confirmação, pela própria Procuradoria-Geral da República, de que D. José Ornelas, bispo de Leiria-Fátima e presidente da conferência episcopal portuguesa estava ser investigado por suspeitas de ter encoberto casos de abusos sexual, num caso que remonta a 2011.
Em causa, estaria inicialmente casos de abuso sexual de menores num orfanato numa cidade da província de Zambézia, em Moçambique. D. José Ornelas teria tido conhecimento dos abusos, depois de ter sido informado por João Oliveira, professor de português na escola frequentada pelos alunos daquele orfanato, dirigida por um padre da Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus (dehonianos), onde D. José Ornelas tinha responsabilidades a partir de Roma.
[Marcelo Rebelo de Sousa] ligou-me. Disse-me que tinha mandado [a denúncia] para a Procuradoria-Geral da República. Venho a saber agora que existe uma investigação”
3 de outubro de 2022, entrevista TVI
Sucedem-se várias entrevistas de D. José Ornelas. Na primeira, à TVI, comentou as suspeitas que recaíam sobre si, disse ter a certeza que a Igreja Católica tinha abafado casos de abusos de menores e deixou uma ideia que iria fazer correr muita tinta nos dias seguintes: tinha sido Marcelo Rebelo de Sousa, o mesmo que endereçou a queixa recebida para o Ministério Público, a avisá-lo de que existia uma investigação em curso.
A Presidência da República enviou à Procuradoria-Geral da República, no dia 6 de setembro, uma denúncia envolvendo, nomeadamente, D. José Ornelas. Depois dessa data, a Presidência da República foi contactada por vários Órgãos de Comunicação Social, para confirmar tal envio, o que naturalmente confirmou. A 24 de setembro, o Presidente da República confirmou a D. José Ornelas esse envio, já depois de este ter sido contactado pela Comunicação Social sobre este assunto.”
4 de outubro de 2022
Na sequência das várias perguntas que surgiram depois da entrevista de D. José Ornelas (à cabeça: em que circunstância e a que título é que o Chefe de Estado tinha informado alguém que está a ser investigado), a Presidência da República emite uma nota ambígua: primeiro, Marcelo confirma que falou com o bispo; mas não assume a iniciativa do telefonema e insiste que o D. José Ornelas já sabia da investigação pela comunicação social. Mais: diz que a conversa aconteceu a 24 de setembro — dias depois, diria que tinha acontecido a 26 do mesmo mês.
A comunicação social soube e na sequência disso contactou D. José Ornelas e antes contactou a Presidência da República. E é só no dia 26, nos EUA, é que eu falo com D. José Ornelas. Não senti necessidade nenhuma [de o avisar], aconteceu porque a comunicação social tinha perguntado a ele e a mim. Entretanto chegou uma versão, apresentada pela comunicação social, de que teria sido uma iniciativa por ser a, b ou c. E eu disse: ‘Sr. D. José, muito simples, isto é a regra geral que se aplica e, portanto, a comunicação social diz que foi uma coisa pessoal e não foi uma coisa pessoal’.”
4 de outubro de 2022
O Presidente da República assume (ainda que de forma ambígua) que foi ele, de facto, quem contactou D. José Ornelas, mas reafirma o que já tinha escrito na nota emitida na véspera — e que é contraditória com a versão apresentada pelo bispo: não tinha sido ele a avisar o bispo.
Eu ia sabendo desse feedback da comunicação social, que tinha comunicado D. José Ornelas, que se considerava perseguido por uma decisão tomada pela Presidência da República. E eu expliquei-lhe que não há perseguição nenhuma em aplicar a lei. Aplicar a lei é aplicar a lei. Pode ser padre, bispo, pode ser leigo. Qualquer cidadão está sujeito a isso.”
5 de outubro de 2022
Aqui, Marcelo volta a tentar explicar o porquê de ter telefonado ao bispo Leiria-Fátima. O Presidente da República repete que D. José Ornelas já sabia da investigação e acrescenta que decidiu ligar porque circulava a ideia de que o bispo teria ficado melindrado com o Presidente da República por acreditar que estava a ser perseguido e por não compreender o porquê de a denúncia ter seguido para o Ministério Público. O Chefe de Estado sentiu necessidade de dizer ao bispo que não era nada pessoal.
Telefonema não [terá consequências na investigação]. Aparentemente, a ter algumas consequências, seria aprofundar a investigação. [O facto de estarem a surgir] mais dados sobre questões anteriores a 2016 – 2015, 2014, 2013 – em casos arquivados e não arquivados – [mostra que o telefonema] não só não parou a investigação como, pelo contrário, as investigações se aprofundaram para além – e eventualmente por causa – do telefonema”
Resposta de Marcelo na sequência da segunda investigação a D. José Ornelas / 9 de outubro de 2022
Neste dia, sai a notícia de que D. José Ornelas estava a ser investigado num segundo caso de alegado encobrimento de abuso sexual de menores. Em causa os comportamentos do padre Abel Maia, revelados em denúncias de atos que terão ocorrido até 2003.
Marcelo, que nos dias anteriores andou a justificar o telefonema ao bispo, enganando-se em datas e garantindo que D. José Ornelas estava a par da primeira investigação, é confrontado com a pergunta: não terá o seu telefonema interferido nos processos que estão em curso? Marcelo garante que não — quando muito, o telefonema ajudou a “aprofundar” a investigação.
Haver 400 casos não me parece particularmente elevado porque noutros países com horizontes [temporais de investigação] mais pequenos houve milhares de casos”
11 de outubro de 2022
Depois da defesa de D. Manuel Clemente e de D. José Policarpo, depois do folhetim com D. José Ornelas, este foi o último — e mais grave — episódio em que Marcelo Rebelo de Sousa se envolveu à boleia do temas. Em declarações aos jornalistas, e depois de ter abordado vários temas, o Presidente da República decide comentar os números entretanto divulgados pela Comissão Independente e deixa cair a frase polémica: “Haver 400 casos não me parece particularmente elevado”.
Ainda para mais, a frase é absolutamente contrastante com o que vem dizendo o Papa Francisco, que já foi absolutamente cristalino sobre o tema. “Mesmo que fosse um só, é monstruoso, porque o padre e a freira têm de conduzir o menino, a menina a Deus e, ao fazerem isso, destroem-lhes a vida”.
Foi precisamente esta frase que muitos dos que criticaram Marcelo usaram para explicar o que Presidente deveria ter dito — e não disse.
O Presidente da República sublinha, mais uma vez, a importância dos trabalhos desta Comissão, muito embora lamente que não lhe tenham sido efetuados mais testemunhos, pois este número não parece particularmente elevado face à provável triste realidade, quer em Portugal, quer pelo Mundo.”
11 de outubro de 2022
Quando as críticas começaram a ganhar uma dimensão incontornável, com várias personalidades políticas, de várias sensibilidades e quadrantes, a não pouparem o Chefe de Estado, Marcelo decide emitir uma nota oficial a tentar enquadrar as suas palavras.
Mas se antes tinha dito que o número não lhe parecia “elevado” face às experiências de outros países, Marcelo escreve agora que o número não é “elevado” face à “provável triste realidade” escondida no país e no mundo.
Já me tinham feito a pergunta. Para os milhões de pessoas que contactaram com instituições religiosas, católicas, acho curto o número de 400 e tal. Se quer a minha convicção, acho que há muitos mais. Não há desvalorização. É precisamente o achar que infelizmente as minhas expectativas eram muito superiores. Mas acho [que se ficou num número] curto.”
11 de outubro de 2022, declarações à RTP
A nota, também equívoca, não acalma as críticas. Nesta altura, todos os partidos, da direita à esquerda, iam-se juntando ao coro de protestos, exigindo um rápido pedido de desculpas de Marcelo.
À noite, o Presidente da República decide falar à RTP, a partir do Palácio de Belém, para garantir, entre outras coisas, que não tinha feito qualquer “desvalorização” e que até achava o “número curto” para as “expecativas” que tinha.
É neste momento que o Presidente é confrontado com a pergunta: a fé católica estaria a influenciar o mandato presidencial? Marcelo insurge-se e volta a usar o argumento da autoridade — afinal, fora ele que enviara a denúncia que recai sobre D. José Ornelas para a Justiça.
De facto foi mal interpretado aquilo que eu tinha dito. Não percebi bem porquê, mas foi. As coisas são como são, vivemos em democracia, as pessoas têm todo o direito de entender que não foi claro, que não foi bem assim. Agora há uma coisa que é óbvia, nós estamos perante uma realidade que é grave, que é um crime. Em democracia aceita-se a crítica e ninguém pode ficar ferido, amuado ou magoado com isso e percebo que as pessoas tenham opiniões diferentes, juízos diferentes, achando que eu não disse exatamente o que queria dizer e que tenho dito sempre.”
11 de outubro de 2022, declarações à SIC
Depois da RTP, Marcelo decide prestar declarações à SIC. Repete os mesmíssimos argumentos e não consegue esconder a “mágoa” com as críticas que sofreu. Não chega a pedir desculpas, como lhe exigiriam. Nem o fez até momento.