Por muitas voltas que leve — e já depois de Governo ter adotado um papel mais ativo — o conflito entre motoristas e empresas de transportes de mercadorias parece mesmo encaminhar-se para a anunciada greve de dia 12.
O Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP), que convocou a (caótica) greve de abril, e o Sindicato Independente dos Motoristas de Mercadorias (SIMM) recusaram esta terça-feira a proposta de mediação do governo e insistem que a ANTRAM (que representa os patrões) tem de atender às reivindicações que têm apresentado. Só que os patrões têm respondido que não negoceiam sob pressão de um pré-aviso de greve. O diálogo de surdos entre trabalhadores e patrões arrasta-se há mais de três meses e promete não ficar por aqui.
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Se houver, de facto, uma paragem, o governo tem de assegurar serviços mínimos, depois de — também aqui —, as duas partes terem revelado posições completamente antagónicas. Mas a greve não é inevitável, pelo menos no campo das hipóteses. E para cada cenário, escolhemos um sinal de trânsito:
Mais uma volta à rotunda das negociações
Quem vai dar prioridade a quem: ou seja, alguém tem de ceder
Os dois sindicatos têm reivindicado um aumento no salário-base para 700 euros no próximo ano, 800 euros em 2021 e 900 euros em 2022, sendo que o ordenado total — com subsídios suplementares indexados —, subiria progressivamente ao longo dos próximos três anos para 1.400 euros, 1.550 euros e 1.715 euros.
O problema coloca-se, na verdade, apenas para 2021 e 2022, porque a questão está arrumada em 2020 — sindicatos e patrões já concordaram com um aumento do salário base para 700 euros, perfazendo um total de 1.400 euros com subsídios. No último fim-de-semana, o SNMMP avançou, porém, com uma nova proposta: aumentar o salário base dos motoristas para mil euros até 2025, com indexação ao crescimento do salário mínimo nacional. Mas a ANTRAM já veio colocar de lado a hipótese.
Tendo em conta a rigidez das posições, não é expectável que haja cedências, embora as duas partes ainda estejam a tempo de o fazer.
E das duas uma: ou cede a ANTRAM — aceitando negociar com pré-aviso em cima da mesa — ou cedem os dois sindicatos, que aceitariam negociar sem a paralisação a ensombrar as conversações. É mais uma volta à rotunda das negociações.
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Redução do ruído em curso
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É uma hipótese que tem perdido terreno, mas não está completamente posta de parte — isto, se os sindicatos seguirem o conselho do ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, e recorrerem ao “mecanismo legal de mediação”, que o próprio propôs na reunião de segunda-feira.
Na prática, trata-se de um novo processo de mediação, em que “as partes são chamadas a negociar”. Caso essa mediação falhe, é a Direção Geral do Emprego e das Relações do Trabalho (DGERT) que avança com uma proposta de convenção coletiva de trabalho. A condição para que tudo isto avance é a de que os sindicatos retirem a greve.
Pedro Pardal Henriques, porta-voz do SNMMP, e Anacleto Rodrigues, representante do SIMM, já disseram que vão recusar a proposta (ainda que a apresentem, no plenário marcado para este sábado, aos associados) e, portanto, não vão cancelar a greve “em troca de uma promessa de desencadear um processo que já antes aconteceu e que não teve resultados”.
Na reação, o ministro das Infraestruturas foi perentório: “Se os sindicatos não querem a greve, como dizem, devem recorrer a este mecanismo”.
Mas em que consiste este mecanismo legal de mediação? Prevista nos artigos 526.º e 527.º do Código do Trabalho, a mediação pode acontecer por “acordo das partes, em qualquer altura”, ou por iniciativa de cada uma delas, “um mês após o início de conciliação, mediante comunicação, por escrito, à outra parte”.
A mediação é efetuada por um mediador “nomeado pelo serviço competente do ministério responsável pela área laboral, assessorado, sempre que necessário, pelo serviço competente do ministério responsável pelo sector de atividade”. E é desencadeada por um requerimento que indique os fundamentos, “juntando prova da comunicação à outra parte caso seja subscrito por uma das partes”.
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Nos dez dias seguintes à apresentação desse requerimento, o serviço competente vai verificar a regularidade do documento e nomear o mediador, “dando do facto conhecimento às partes”.
Se a mediação for requerida por uma das partes, “o mediador solicita à outra que se pronuncie sobre o objeto da mesma”. Em caso de divergência, o mediador decide “tendo em consideração a viabilidade da mediação”. Para elaborar uma proposta, “pode solicitar às partes e a qualquer departamento do Estado os dados e informações de que estes disponham e que aquele considere necessários”.
A lei define ainda que o mediador deve “remeter a proposta às partes no prazo de 30 dias a contar da sua nomeação”. A aceitação da proposta “por qualquer das partes deve ser comunicada ao mediador no prazo de 10 dias a contar da sua receção”. Neste período, o mediador pode contactar qualquer das partes em separado, se o considerar conveniente para a obtenção do acordo.
Recebidas as respostas, ou após esses dez dias, “o mediador comunica em simultâneo a cada uma das partes a aceitação ou recusa da proposta, no prazo de dois dias”.
Se a associação sindical ou a associação de empregadores faltar a uma reunião convocada pelo mediador, ou se não se fizerem representar, comete uma contraordenação grave.
Sendo seguidas estas regras, entre o prazo para nomear um mediador, o mês que este tem para fazer uma proposta e mais os dez dias que as partes têm para lhe responder e os dois que ele tem para aceitar ou recusar, o acordo seria fechado já no final de setembro, ou seja, a poucos dias das eleições legislativas, marcadas para 6 de outubro. Até lá, reduz-se o nível de ruído.
O perigo de derrocada total
Greve, serviços mínimos e requisição civil
Depois de os dois sindicatos e a ANTRAM não terem chegado a acordo para definir os serviços mínimos, esta será uma tarefa solitária do Governo.
A divergência de posições entre as duas partes em conflito é também aqui gritante. O sindicato sugeriu que os serviços mínimos abrangessem 25% dos trabalhadores, para salvaguardar o abastecimento de portos, aeroportos, empresas de serviço público de transporte de passageiros, residências para idosos, centros de acolhimento para crianças e jovens, escolas e instituições de solidariedade social. Uma proporção que a ANTRAM considera inaceitável, contrapondo serviços mínimos de 70%.
Fora destas contas estão nomeadamente o abastecimento a hospitais, centros de saúde, prisões, bases aéreas, serviços de proteção civil e forças de segurança, que os sindicatos propõem abastecer a 100%.
Entre os 25% e os 70%, que valor pode adotar o governo? Será que vai repetir o que determinou na última greve? Em abril, foram impostos inicialmente serviços mínimos para 40% dos trabalhadores, mas apenas para a Grande Lisboa e o Grande Porto.
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E depois da confusão instalada, que apanhou todos de surpresa, o executivo acabou por alcançar um acordo com o sindicato das matérias perigosas e a ANTRAM para alargar o abastecimento de combustíveis ao território nacional, também nos 40%.
No caso de portos, aeroportos e empresas que prestam serviço público de transporte de passageiros, a salvaguarda foi maior — 75%.
Depois, se houver de facto greve, levanta-se uma outra questão, mais delicada, que já se colocou na paralisação de abril — o eventual incumprimento dos serviços mínimos. Nessa altura, o governo avançou com uma requisição civil já com a greve em marcha, depois de constatar que não foram assegurados os mínimos fixados em despacho conjunto dos ministros do Trabalho e da Transição Energética.
A requisição civil — que serve para lidar com emergências ou para fazer face ao incumprimento de serviços essenciais de interesse público — ditou então que os motoristas a requisitar deveriam disponibilizar-se para esse efeito ou, se não houvesse voluntários suficientes, a tarefa recairia sobre os trabalhadores que estivessem de escala.
A resolução do Conselho de Ministros — que dizia ser necessário “assegurar a satisfação de necessidades sociais impereteríveis na distribuição de combustíveis” — foi complementada com uma declaração de crise energética, que na prática habilitou qualquer condutor de pesados a transportar as mercadorias perigosas que antes só poderiam ser movimentadas pelos grevistas.
Após a requisição civil, os militares da GNR mantiveram-se de prevenção em vários pontos do País para que os camiões com combustível pudessem abastecer e sair dos parques sem afetarem a circulação rodoviária. Gerou-se a corrida aos postos de abastecimento de combustíveis provocando congestionamento nas vias de trânsito.
Desta vez, a requisição civil já está a ser falada por antecipação. O ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, admitiu a ajuda de militares para minimizar os efeitos da greve, se tiver “o enquadramento constitucional apropriado”. A reação não se fez esperar no Bloco de Esquerda, que já avisou não haver necessidade nem qualquer fundamento legal para essa eventual requisição civil preventiva — algo que é pedido pelas empresas, mas que divide juristas.
Mas estes são cenários em que o conflito acaba por culminar na greve. E nesse cenário, as “pedras” começam a cair. Com efeitos imprevisíveis, dependendo da duração da paralisação. Em abril, o país parou em pouco mais de 48 horas.
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Em tese, o Governo pode ainda ditar serviços mínimos tão elevados e considerados de tal forma inaceitáveis pelo Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas e pelo Sindicato Independente dos Motoristas de Mercadorias que as duas organizações concluam que não vale a pena avançar para a paralisação — ou pelo menos não já. Isto porque potencialmente os efeitos da greve se poderiam perder. Nesse caso, voltaria tudo à estaca zero, com o tempo a contar até ao período das eleições. E com um possível regresso à rotunda.
A escapatória possível
Tribunal dá provimento à providência cautelar e anula a greve
Cinco transportadoras vão apresentar, esta quarta-feira, uma providência cautelar a pedir a ilegalidade do pré-aviso de greve dos motoristas, anunciou o advogado Carlos Barroso, do escritório que representa essas empresas, à Lusa. As entidades acreditam que há um abuso do direito à greve e da boa-fé, dado que estava em curso um processo negocial.
O advogado não quis identificar as empresas que avançaram com a providência cautelar, referindo que três são empresas de matérias perigosas e duas empresas de carga geral.
O prazo legal máximo para a decisão do tribunal sobre a providência cautelar é de dez dias. Quer isto dizer que pode haver uma decisão durante a greve: ou o tribunal dá provimento à providência cautelar e a greve é considerada ilegal; ou não dá razão às empresas. Em declarações à SIC, o advogado do SNMMP, Pedro Pardal Henriques, considerou que a providência cautelar não tem pernas para andar. Ainda assim, se o juiz aceitar, cria-se uma escapatória à greve. Só que estes sinais são raros — só aparecem em algumas autoestradas e o uso está quase sempre limitado a viaturas de emergência ou a carros acidentados.