Foi a 15 de abril que um sindicato, até então desconhecido da maioria dos portugueses, ganhou protagonismo nos noticiários televisivos, nas manchetes dos jornais e nas atualizações online ao minuto. O Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP), independente de uma central sindical e então com 600 associados, prometia parar o abastecimento de combustível um pouco por todo o país: exigia, nomeadamente, a criação de uma categoria profissional própria, a atualização do subsídio de risco e o aumento do salário base dos 630 euros para os 1200 euros (valor que, segundo os patrões, já os trabalhadores recebem, contabilizados os extras). Mas o caos instalou-se: centenas de bombas secaram, aeroportos ficaram sem reservas de emergência, voos estiveram em risco, houve racionamento de combustível. E filas, muitas filas para encher o depósito.

Depois da tempestade, parecia chegar a bonança quando três dias e uma madrugada depois do início do paralisação, Pedro Nuno Santos Santos, ministro das Infraestruturas e da Habitação, informava o país de que a greve havia terminado com a assinatura de um protocolo negocial entre o sindicato e a Associação Nacional de Transportadores Públicos Rodoviários de Mercadorias (ANTRAM), que representa o patronato do setor.

Greve dos motoristas de materiais perigosos. O que está em causa?

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Mas as divergências não acabaram. Três meses (e algumas reuniões) depois, há contradições: o SNMMP diz que os horários de trabalho são muitas vezes violados; a ANTRAM defende que as cargas horárias “não são aquelas que têm vindo a ser referidas”. E há ataques mútuos: o sindicato acusa a confederação patronal de “não cumprir as promessas e ultrapassar tudo aquilo que é legal”; os segundos acusam os primeiros de terem “mentido aos seus associados”.

Às reivindicações juntaram-se os motoristas representados pelo Sindicato Independente dos Motoristas de Mercadorias (SIMM) e a Federação dos Sindicatos dos Transportes e Comunicações (FECTRANS) — a estrutura com a qual a ANTRAM firmou, no ano passado, um contrato coletivo de trabalho — pela revisão da convenção coletiva. Os representantes do SIMM e do SNMMP pedem “perdão aos portugueses por eventuais transtornos no seu quotidiano”, mas contam apresentar nesta segunda-feira, quando se reunirem com a associação patronal, um pré-aviso de greve para 12 de agosto — em plena troca de quinzena num dos meses mais concorridos para usufruto de férias — por tempo indeterminado.

Os motoristas de matérias perigosas querem o que, asseguram, lhes foi prometido: um aumento gradual do salário base de 100 euros nos próximos três anos — que a ANTRAM diz que nunca lhes garantiu (na visão dos patrões do setor, um documento posterior ao acordo de princípio revogou essa proposta). E o respeito pelo pagamento das horas extraordinárias. Os sindicatos insistem que há “má-fé negocial”. Como chegámos até aqui? E para onde caminham as negociações? Esta é a cronologia do que que sabe que aconteceu e do que pode vir a acontecer.

Greve de abril causou filas de trânsito — algumas de quilómetros — em vários postos de abastecimento do país.

Uma cronologia de acordos e desentendimentos

2015 — Criado o Sindicato Independente dos Motoristas de Mercadorias (SIMM).

21 de dezembro de 2017 – Criada a Associação Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas, que viria a dar origem ao Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP). Francisco São Bento, o presidente do SNMMP, é também o presidente da associação.

15 de setembro de 2018 – Assinado um contrato coletivo de trabalho entre a ANTRAM e a FECTRANS que regula o setor. A assinatura culminou dois anos de negociações e mais de 20 anos sem alterações na legislação sobre a matéria. Ao Observador, o presidente do SNMMP, Francisco São Bento, disse que a assinatura do novo contrato coletivo foi “apressada” por causa das reivindicações que já se ouviam por parte dos motoristas de matérias perigosas, então organizados apenas na associação.

8 de novembro de 2018 — O Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP) é constituído como sindicato independente. A transição de Associação para sindicato visou garantir maior poder negocial.

00h01 do dia 15 de abril de 2019 — Início da greve, cujo pré-aviso foi entregue em 1 de abril. A meio do dia já havia constrangimentos em vários postos de abastecimento no país, sobretudo após comunicados de petrolíferas a antever cenários mais complicados de abastecimento.

16 de abril — Depois de lançado o caos, o Ministério das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, convoca, ao final do dia, a ANTRAM e o SNMMP para uma reunião, com o objetivo de clarificar os serviços mínimos. Não ficou, portanto, nenhum acordo fechado.

O acordo com os motoristas nas entrelinhas

18 de abril — Às 8 horas da manhã, Pedro Nuno Santos comunica ao país o fim da greve, depois de uma longa reunião de 10 horas com sindicato e associação patronal, que só terminou às 4 horas da manhã. É assinado um “protocolo negocial”.

O que dizia o documento?

Nele podia ler-se que ambas as partes “admitem iniciar um procedimento negocial tendo em vista a boa regulação das relações laborais”. Determinava-se que o Governo ia acompanhar o processo “e criar as condições necessárias para que as partes possam, em paz social (…), atingir os resultados pretendidos”, abstraindo-se de “outras formas de pressão, nomeadamente greves”. Ficava ainda estabelecido que até 31 de dezembro de 2019 seja encetado um processo de negociação coletiva que assente, por exemplo, na “individualização da atividade no âmbito da tabela salarial”; “subsídio de risco”; ou “seguros de vida específicos”. No entanto, “os acordos de princípio relativos a cada um dos assuntos abordados não condicionam a eventual não existência de um acordo global aceite pelas partes”. 

29 de abril — Dá-se o arranque das negociações no Ministério das Infraestruturas, mediado por um representante do Governo, Guilherme Dray, que foi chefe de gabinete do ex-primeiro-ministro José Sócrates.

O que disse o sindicato?

À saída da reunião, Pedro Pardal Henriques revelava que o SNMMP tinha proposto a revisão do acordo coletivo de trabalho, acrescentando que a ANTRAM “foi surpreendida com as reivindicações”. “Dizer-nos que não vinha preparada é uma afronta que não estamos dispostos a aceitar.” O sindicato decidia dar à estrutura patronal o prazo de uma semana para se pronunciar concretamente sobre dois temas: o reconhecimento da categoria profissional de motorista de matérias perigosas e a definição do salário base da profissão em dois salários mínimos. Se não aceitassem as reivindicações “muito provavelmente voltamos à greve”.

O que disse a ANTRAM?

Gustavo Paulo Duarte, presidente da ANTRAM, reagiu às declarações de Pardal Henriques, defendendo que aquele fora o primeiro encontro “de um calendário de negociações que se prolonga até ao final do ano”. Por isso, “não se podem exigir respostas no imediato”. Ainda assim, prometia: “dia 7 de maio estaremos preparados para dar uma resposta”.

Guilherme Dray. Quem é o negociador do Governo que quer impedir uma nova greve dos camionistas?

7 de maio — Foi a segunda reunião entre sindicato e ANTRAM. E o início da ‘confusão’: da proposta “muito próxima” à “substancialmente diferente”.

O que disse o SNMMP na segunda reunião?

Pedro Pardal Henriques anuncia que ambas as partes chegaram a um pacto de paz social pelo prazo de 30 dias e a um pré-acordo que, segundo o responsável, continha uma nova proposta salarial “muito próxima” dos 1.200 euros. “Vamos apresentar aos nossos associados, a ANTRAM vai apresentar aos seus associados, se todos chegarem a acordo, todos nós ficaremos satisfeitos”, apontou. Sobre o reconhecimento da categoria profissional, Pardal Henriques adiantou que a negociação também estava “muito bem encaminhada”.

O que disse a ANTRAM após o encontro?

O vice-presidente da ANTRAM, Pedro Polónio, socorreu-se do “dever de sigilo” e não avançou valores acordados, mas frisou que a proposta do sindicato era “substancialmente diferente” da apresentada inicialmente pelo sindicato (1.200 euros), sendo o valor proposto “bastante mais próximo daquilo que achamos serem valores aptos a ser apresentados e discutidos com os nossos associados”. Por isso, frisou que, num período de 30 dias, a ANTRAM iria falar com os afiliados para perceber se esta proposta era “exequível”.

Digo-lhe apenas que os 1.200 euros de salário base eram absolutamente incomportáveis para as empresa e colocariam em causa a sua sobrevivência”.

No que toca à criação de uma categoria especial, a ANTRAM avançava que “contrariamente àquilo que se faz passar, estes trabalhadores têm de facto um regime diferente dos outros trabalhadores” e que, ao contrário do que informou o sindicato, as negociações estavam, afinal, “muito longe de chegar” à criação dessa categoria própria.

Ou seja, sindicato e patrões viram duas reuniões muito diferentes. E a instabilidade regressou mesmo, com a ANTRAM a dar o primeiro tiro logo na manhã do dia seguinte. Depois da posição mais prudente de Pedro Polónio, a associação patronal decidiu divulgar um comunicado, no qual mencionava um valor concreto alegadamente em cima da mesa: nem 1200, nem 1100, nem mesmo 1000, mas sim 700 euros.  “Após a rejeição expressa pela ANTRAM da proposta apresentada pelo SNMMP na primeira reunião, e que consistia num salário base de 1.200 euros e na consagração da categoria profissional específica para motoristas de mercadorias perigosas, aquele sindicato (…) apresentou uma nova contraproposta negocial”. Quanto?

Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias perigosas exigia o aumento do salário base dos 630 euros para 1200 euros.

Dizia a associação que “esta nova contraproposta assenta, agora, num salário base de 700 euros com efeitos a partir de dia 1 de janeiro de 2020, mantendo-se, em termos gerais, os termos do atual CCTV (Contrato Coletivo de Trabalho Vertical do setor rodoviário de mercadorias), ainda que reforçando, em sede de seguros, exames de saúde e subsídio diário adicional a criar, a proteção dos trabalhadores afetos ao transporte de mercadorias perigosas em cisterna”. Ou seja, a ANTRAM dizia que o sindicato queria começar a conversa com 700 euros. Só.

Horas depois, em entrevista à RTP3, Pardal Henriques acusava a ANTRAM de violar “os princípios da boa-fé negocial”. E lançava a bomba: o sindicato iria enviar um pré-aviso de greve que teria efeitos a partir do dia 23 de maio. Acabava, assim, o “pacto de paz social”. Em declarações ao Observador, o advogado e dirigente do sindicato deu os pormenores da reunião do dia anterior.

O que foi acordado foi um período de adaptação para as empresas até 2022 no que diz respeito ao salário base. Assim, em janeiro de 2020 o salário base subiria para 1.010 euros. Em janeiro de 2021 para 1.100 euros e em janeiro de 2022 para 1.200″, disse ao Observador Pedro Pardal Henriques. “Face a esta pouca vergonha, entregámos um pré-aviso de greve que já seguiu.”

9 de maio — SNMMP apresenta formalmente o pré-aviso de greve.

10 de maio — Em comunicado, o Ministério das Infraestruturas e da Habitação anuncia que o SNMMP e a ANTRAM firmaram um “acordo de princípio“, depois de várias horas de reunião entre as duas estruturas e o Governo. Segundo o Executivo, o acordo em causa teria de ser “submetido para ratificação pelos signatários junto dos seus respetivos associados e filiados”. Mas o pré-aviso de greve mantinha-se.

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O que dizia esse “acordo de princípio”?

No documento intitulado “Declaração Conjunta”, assinado ainda durante o dia 9 de maio, a que o Observador teve acesso, pode ler-se que sindicato e ANTRAM reconhecem que “as partes estão empenhadas em garantir um aumento salarial sujeito a tributação na sequência dos princípios ajustados na última reunião, que determine uma remuneração bruta global de cerca de 1.400 euros mensais num mês normal de trabalho“.

Este valor resultava das “diversas rubricas e subsídios, incluindo um novo subsídio de operações mercadorias perigosas que será obrigatório, regular, fixo e invariável para os motoristas que manuseiem de forma regular e não sazonal mercadorias perigosas líquidas e gasosas, aumento esse que determina um acréscimo retributivo de cerca de 250 euros mensais face ao que atualmente existe”.

Ficava ainda definido “indexar para o futuro aumentos anuais da retribuição em função do aumento do salário mínimo nacional”. Além disso, sindicato “irá diligenciar junto do Governo para que a circulação de mercadorias perigosas líquidas e gasosas seja interdita aos domingos e feriados nacionais à semelhança do que se passa noutros países da União Europeia”.

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Mas são dois os pontos que têm sido alvo de maior discórdia. Por um lado, ambas as estruturas “reconhecem, por fim, em garantir aos motoristas de materiais perigosos um acréscimo da retribuição global (a repartir entre as diversas rubricas fixas) de 100 euros em 2021 e outros 100 euros em 2022“, mas com uma condição: “caso as condições económicas o permitam relativamente a este último“.

Além disso, no final do documento lê-se que “o teor desta declaração ficava condicionado a aprovação do mesmo por parte dos filiados” no sindicato e na ANTRAM, “caso em que a greve será desconvocada”. Ou seja, “promessas” sob condicionantes — económicas e a luz verde dos associados.

15 e 16 de maio — Em comunicado, a ANTRAM revelou que, nestes dias, iria reunir com os associados por todo o país. Ao Observador, André Matias Almeida, advogado e porta-voz da associação patronal, diz que os afiliados não aceitaram as condições dos sindicatos — nomeadamente o aumento gradual do salário global — uma vez que tal “representaria, para algumas empresas, a falência”.

GNR teve de garantir a segurança de alguns camiões cisterna ao longo do percurso entre o parque de combustíveis da Companhia Logística de Combustíveis (CLC), em Aveiras de Cima, concelho de Azambuja, e o aeroporto de Lisboa.

17 de maio — Terceira reunião entre SNMMP e ANTRAM, mediada pelo Governo, com um pré-aviso de greve ainda em cima da mesa. Prolonga-se até de madrugada e acaba em “acordo“, anunciou o Ministério das Infraestruturas, em comunicado. “A greve do dia 23 de maio será desconvocada”, segundo o documento. Pedro Pardal Henriques apelidava, em declarações à Lusa, o acordo como “histórico“.

Protocolo assinado com a FECTRANS

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Também no dia 17, e após várias reuniões, ANTRAM e FECTRANS assinaram um “Protocolo Negocial” que previa, entre outros, a intensificação do controlo dos tempos de trabalho praticados pelos trabalhadores, aumento da base salarial para os 700 euros em 2020, um novo subsídio de operações com mercadorias perigosas líquidas e gasosas a granel no valor de 125 euros e o aumento da retribuição global a partir de 2021, indexado à atualização do salário mínimo nacional.

“Há um acordo para a progressão salarial que começa em janeiro com uma remuneração base que começa em 1.400 euros por mês e inclui um prémio especial para os motoristas de matérias perigosas, sendo que se partia de 630 euros fixos e passa-se para 1.400 euros fixos divididos por várias rubricas”, detalhou. Pardal Henriques explicou que o acordo incluía as reivindicações ao nível da progressão salarial e a proibição da circulação de matérias perigosas aos domingos e feriados. Mas, e a promessa do aumento gradual de 100 euros em 2021 e 2022? Parecia cair por terra.

Afinal, o que dizia este novo acordo?

No novo “Protocolo Negocial”, assinado a 17 de maio por ambas as partes, e a que o Observador teve acesso, está estabelecido que as negociações para a “revisão da convenção coletiva de trabalho terá [terão] em consideração os seguintes pressupostos, já aceites por ambas as partes”: nas cláusulas não pecuniárias constam, por exemplo, a “realização de exames de saúde anuais aos trabalhadores” ou a “criação de seguro que cubra determinados riscos específicos e todos os tipos de danos em caso de ocorrência de acidente, semelhante ao que existe atualmente mas com capitais aumentados”.

Outros pontos do "Protocolo Negocial" com o SNMMP

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Cláusulas não pecuniárias — Inclusão de um capítulo autónomo no instrumento de regulamentação coletiva de trabalho referente aos motoristas de matérias perigosas; possibilidade da consulta de entidades que possibilitem a definição da periodicidade e dos concretos exames de saúde a realizar aos trabalhadores; reforço do controlo dos tempo de trabalho praticados pelos trabalhadores, de forma a ficar claro que nenhum trabalhador trabalhe mais do que 48h num período de referência de quatro meses.

São, porém, as cláusulas pecuniárias que mais divergências têm criado. No documento, há uma referência a um “aumento salarial sujeito a tributação que determine uma remuneração bruta global de 1.400 euros num mês normal“, repartidos pelas diversas rubricas e subsídios, sendo a remuneração base fixada em 700 euros (mais 70 euros do que até então) a partir de 2020. É ainda referido um novo subsídio de operações com  mercadorias  perigosas que será obrigatório e fixado em 125 euros (e não 250 euros como definido no “acordo de princípio”).

Mas nada garantia, neste documento, o aumento gradual de 100 euros em 2021 e outros 100 em 2022. A única referência a aumentos futuros é de um “acréscimo da retribuição global (…) a partir de 2021 indexado à evolução da retribuição mínima mensal garantida [o salário mínimo]“. Mais uma vez, “o Governo irá desenvolver os seus melhores esforços para apoiar o setor, nomeadamente impedindo a circulação de veículos de matérias perigosas em cisterna aos domingos e feriados”. E terminava apelando a um “clima de diálogo e paz social”.

Pedro Pardal Henriques é vice-presidente e porta-voz do Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas.

Sem o aumento gradual fixado, este “Protocolo Negocial” substituía o “acordo de princípio”?

Aqui está o busílis da questão. O ponto F) do Protocolo Negocial referia que, com a assinatura do documento, era “agora concretizado” o acordo de princípio. Ou seja, no entender do sindicato, os termos definidos no acordo de princípio — como o aumento de 100 euros quer em 2021, quer em 2022 — deviam ser cumpridos, mesmo não constando do Protocolo. No entender da ANTRAM, a resposta está na ata de dia 19 de junho (ver em baixo): um documento anula o outro.

21 de maio — a ANTRAM assina um Protocolo Negocial com o SIMM, depois de várias reuniões ao longo de um processo de negociações iniciado em fevereiro deste ano pela revisão da convenção coletiva, definindo cláusulas não pecuniárias, como a realização de exames de saúde anuais aos trabalhadores ou o alargamento do seguro “que cubra determinados riscos específicos e todos os tipos de danos em caso de ocorrência de acidente”. E pecuniárias, nomeadamente uma retribuição base de 700 euros a partir de 1 de janeiro de 2020 ou “a promoção de um aumento salarial sujeito a tributação”. Pressupostos, portanto, semelhantes aos do protocolo com o SNMMP.

Tal como com o SNMMP, fica previsto um aumento da retribuição global a partir de 2021, indexado à evolução do salário mínimo nacional e novo subsídio de operações com mercadorias perigosas de 125 euros. Ao Observador, Anacleto Rodrigues, porta-voz do SIMM, afirma que houve uma “chantagem da ANTRAM”. “Disseram-nos que já tinham assinado o protocolo com o SNMMP e a FECTRANS. E que se não assinássemos ficávamos fora da negociação. Por isso, acabámos por assinar.”

Presidente da ANTRAM, Gustavo Paulo Duarte, assinou no ano passado um contrato coletivo de trabalho com a FECTRANS.

12 de junho — Foi a primeira reunião entre as três estruturas que representam os motoristas de transportes de mercadorias (FECTRANS, SNMMP e SIMM), a ANTRAM e um representante do Governo. A confederação patronal apresenta uma proposta: passar para o contrato coletivo de trabalho tudo o que estava no “Protocolo Negocial”. Ficou definido que cada estrutura iria analisar e preparar uma contraproposta para a reunião seguinte.

19 de junho — Sindicatos, ANTRAM e Governo voltam a reunir. Os sindicatos apresentam as contrapropostas — relacionadas com o estatuto de motorista e cumprimentos de horários, entre outros temas. Mas na ata lê-se que o mediador do Governo, Guilherme Dray, tinha dito “designadamente que existia uma diferença entre a declaração conjunta de 9 de maio e o protocolo negocial de 17 de maio“. Uma frase que, para a ANTRAM, significa que o “acordo de princípio” (que previa o aumento gradual em 2021 e 2022) fora anulado pelo Protocolo Negocial (que deixava cair essa medida).

Segundo André Matias Almeida, “o sindicato sabia que estava a deixar cair a proposta do aumento dos 100 euros em 2021 e 2022. E não disse a verdade aos seus associados”. Foi nesta reunião que o SIMM tomou conhecimento de um “acordo” entre ANTRAM e SNMMP de aumentos graduais em 2021 e 2022 — que, defende a associação patronal, não chegou a existir, embora os motoristas de matérias perigosas garantam que sim. “Se foi acordado com uns, tem de ser acordado com todos”, defende Anacleto Rodrigues.

2 de julho — Estava marcada nova reunião entre estruturas sindicais e ANTRAM, mas foi cancelada pelos sindicatos (que queriam reunir primeiro, em congresso, com os associados).

6 de julho — Congresso promovido pelo SNMMP e SIMM. É aí que os motoristas aprovam um pré-aviso de greve, a partir de 12 de agosto por tempo indeterminado, que planeiam entregar na reunião desta segunda-feira com a ANTRAM. E exigem: “um aumento do salário base de 100 euros nos próximos três anos (1.400 euros brutos para 2020, 1.600 para 2021 e 1.800 para 2022), melhoria das condições de trabalho e pagamento das horas extraordinárias a partir das oito horas de trabalho, entre outras medidas”.

O ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, foi o primeiro a anunciar o fim da greve de que se iniciou a 15 de abril.

15 de julho —E agora?

É em clima de quase guerra que sindicatos, patrões e Governo se reúnem esta segunda-feira. Para o SNMMP, a ANTRAM não está a respeitar o que ficou definido. “Andam, fazem promessas e continuam a não cumprir as promessas e a ultrapassar tudo aquilo que é legal”, disse Pardal Henriques à SIC Notícias. “Os motoristas estão a fazer isto”, defendeu, porque “não estão satisfeitos com as condições”, que classifica como “precárias”. A greve “é a bomba atómica que temos do nosso lado”. O Observador tentou várias vezes contactar o SNMMP, que remeteu novas declarações para depois da reunião.

Embora peçam “perdão” aos portugueses, SNMMP e SIMM têm a intenção de apresentar um pré-aviso de greve para dia 12 de agosto, por tempo indeterminado. Ao Observador, André Matias (ANTRAM) diz que a associação está disponível a ir até onde vai o Protocolo Negocial. Mas há várias matérias que sindicatos querem ver esclarecidas: além de outras questões remuneratórias, o pagamento das horas extraordinárias ou a regulamentação do “subsídio de risco” a ser atribuído aos motoristas de matérias perigosas (FECTRANS e SIMM defendem que não são apenas os combustíveis e o gás que devem merecer essa categorização).

A FECTRANS não pretende entregar um pré-aviso de greve “para já”. “Temos as nossas próprias reivindicações”, como o aumento do salário base para os 850 euros em 2021, diz ao Observador José Manuel Oliveira, coordenador da federação. E acrescenta que o Protocolo Negocial assinado a 17 de maio “tem pressupostos mínimos” que continuarão a ser discutidos com a ANTRAM.

Matérias perigosas. Pré-aviso ainda não foi entregue. Motoristas decidem na segunda-feira

Greve em agosto? Que efeitos à vista?

A confirmar-se uma greve em plena mudança de quinzena, altura em que muitas famílias vão ou regressam de férias, os efeitos de uma greve que junte motoristas de mercadorias (nomeadamente os que abastecem supermercados) aos de mercadorias de matérias perigosas arriscam ser mais visíveis do que na paralisação de abril. “As consequências são imprevisíveis”, atira Anacleto Rodrigues (SIMM). Até porque desta vez “será todo o setor de mercadorias e terá efeitos nos supermercados, na Autoeuropa”. Mas, garante, se o pré-aviso for em frente, “os serviços mínimos estarão assegurados”.

André Matias Almeida (ANTRAM) alerta, por sua vez que “o gás não é abastecido para o Algarve através de condutas, é de camião. Se após dia 12 faltar o gás no Algarve, destino de muitos portugueses, a reposição demora, no melhor dos cenários, três a quatro dias”.

E qual o papel do Governo?

Na primeira greve dos motoristas de matérias perigosas, o Governo foi apanhado de surpresa com o forte efeito do protesto, que em menos de um dia deixou secos muitos postos de combustível. Mas agiu com a rapidez possível. O primeiro escolhido para dar a cara na crise foi o ministro da Economia e conselheiro próximo do primeiro-ministro António Costa, Siza Vieira. Depois foi envolvido o ministro do Trabalho e da Segurança Social, Vieira da Silva. No mesmo dia foi decretada uma requisição civil.

As reuniões com ambas as partes arrancaram no próprio dia, para garantir o cumprimento dos serviços mínimos. Mas Pedro Nuno Santos passou a “liderar” o lado governamental. Foi ele o rosto do êxito da reunião que acabou com o impasse. À requisição civil seguiu-se uma declaração de crise energética (a envolver o ministro com a pasta do Ambiente e Energia), que possibilitaria a qualquer condutor de pesados transportar mercadorias perigosas. Ainda assim, por ser um conflito laboral entre empresas e trabalhadores do setor privado, o Executivo tem pouca margem de manobra. Mas, segundo André Matias Almeida, “as partes estão à mesa sobretudo por causa do Governo, senão já se tinham desentendido”.

Pedro Nuno Santos já avisou, porém, que o Governo está preparado para reagir na eventualidade de os motoristas de matérias perigosas entrarem em greve. O ministro apelou ao “bom senso” e ao “regresso às negociações”. “Não podemos estar sistematicamente com pré-avisos de greves, não deve ser assim”. Mas o tom do Governo até tem subido.

“Em primeiro lugar, espero que não haja greve. Em segundo lugar, o Governo português tomará todas as medidas para defender o povo português, para defender o país e a economia, e portanto estamos obviamente preparados”, disse o ministro das Infraestruturas.

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