Índice
Índice
“Um mafioso”. Foi assim que Michael Cohen, o antigo advogado pessoal de Donald Trump, descreveu em tempos o ex-Presidente e a forma como este se comportava. “Ele não dá ordens, fala em código. E eu percebo o código porque estive com ele uma década”.
Cohen falava assim aos congressistas norte-americanos em 2019, para dar conta das suas ações ao serviço do patrão. Naquela sessão, enumerou uma série de delitos que teria cometido ao serviço de Trump, incluindo uma missão específica: usar fundos privados para pagar à atriz de filmes para adultos Stormy Daniels, com quem Trump teria tido um caso, a fim de a silenciar. Mais tarde, terá sido reembolsado pelo patrão, quando este já estava na Casa Branca, no valor de 130 mil dólares.
O “capo” Michael Cohen tentou ferir o “Padrinho”. O golpe terá sido fundo?
O antigo advogado repetiu esta justificação em tribunal e declarou-se culpado num caso judicial de violação das leis de financiamento de campanha, acabando por cumprir uma pena de prisão. Em tribunal, Trump foi claramente implicado, aparecendo identificado nos documentos do julgamento como “Indivíduo 1”.
E, contudo, os procuradores evitaram sempre avançar com acusações formais contra o magnata — primeiro, porque este gozava de imunidade presidencial, depois por a investigação ter sido suspensa para não prejudicar outras investigações em curso. No meio judicial, o caso do pagamento a Stormy Daniels ganhou uma alcunha: “o caso zombie”, que nunca se concretiza, mas também nunca morre. Denunciado em 2018 pelo Wall Street Journal, não houve grandes novidades desde então relativamente às acusações que pendem sobre o ex-Presidente neste tema. E foi só agora, pela mão do procurador Alvin Bragg, que o processo avançou para um grande júri.
No meio de uma presidência marcada por dois processos de impeachment, uma invasão ao Capitólio e muitas outras polémicas, o caso da atriz porno perdeu relevância ao longo do tempo. Mas eis que, menos de três anos depois de abandonar a presidência, Donald Trump se prepara para se tornar o primeiro ex-Presidente da História dos Estados Unidos formalmente acusado em tribunal. E tudo graças a este caso.
O que aconteceu com Donald Trump?
Na quinta-feira, a procuradoria de Manhattan confirmou que Donald Trump vai ser formalmente acusado por um grande júri de um ou mais crimes.
O grande júri é uma figura que existe no sistema judicial norte-americano em que um grupo de cidadãos comuns ouve testemunhas e provas apresentadas pela acusação para decidir se existe matéria suficiente para que haja uma acusação formal e um posterior julgamento. No estado de Nova Iorque, o grande júri é composto por 23 pessoas e a decisão de acusar ou não é tomada por maioria simples.
O processo mantém-se secreto, incluindo as acusações em causa, até o arguido ser presente a tribunal — o que, no caso de Trump, deve acontecer já na próxima terça-feira.
O que se vai passar esta terça-feira em Manhattan?
Um porta-voz do tribunal de Manhattan já confirmou que a audição em tribunal de Donald Trump acontecerá na próxima terça-feira, às 14h15 locais (19h15 em Lisboa). A equipa de advogados do ex-Presidente já fez saber que Trump deverá comparecer à sessão.
Estão agora a ser combinados os detalhes de como será feita essa presença em tribunal, já que Trump — como todos os antigos Presidentes — continua a ter um aparato de segurança mantido pelos serviços secretos. Isso significa que, diz o Washington Post, um agente deverá acompanhar Trump em todos os momentos no tribunal; incluindo o momento em que será fotografado para o cadastro e as suas impressões digitais recolhidas.
“A minha experiência diz-me, ao trabalhar com tribunais, que os serviços secretos desejam que este seja um evento bem coreografado, provavelmente com a menor fanfarra possível”, descreveu ao Wall Street Journal o agente reformado, Donald Mihalek, que fez segurança para os antigos presidentes George W. Bush e Barack Obama,
Um dos pontos em que a presença de Trump em tribunal deverá ser diferente da de outros arguidos é que, ao contrário do que é habitual, não deverá “ser algemado”, avançou o seu advogado Joe Tacopina esta sexta-feira.
Perante o juiz, Trump irá ouvir a acusação e declarar-se inocente ou culpado — os advogados garantem que optará pela primeira. Depois ouvirá quais as medidas de coação que lhe serão aplicadas até ao julgamento, sendo provável que regresse em liberdade a casa.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre o caso de Donald Trump.
Qual a acusação em causa? E o que se sabe sobre o caso Stormy Daniels?
Oficialmente, ainda não é conhecido o conteúdo da acusação. Na prática, porém, os media norte-americanos não têm dúvidas de que estarão relacionadas com o caso Stormy Daniels. Duas fontes ligadas ao processo dizem à CNN que serão mais de 30 acusações de crimes de fraude económica.
Na prática, os procuradores parecem estar convictos de que conseguirão provar que Trump ordenou a Michael Cohen o pagamento dos 130 mil dólares para silenciar Stormy Daniels, mascarando depois esse dinheiro nas contas da sua empresa, a Trump Organization, como “despesas legais”.
Por si só, tal ação não representaria mais do que um delito de pouca gravidade. Contudo, o mais certo é que — tal como aconteceu no caso de Cohen — os procuradores tentem argumentar que o pagamento tinha fins políticos e que foi, por isso, uma violação da lei de financiamento das campanhas (cujo limite é de 2.700 euros por donativo). Nesse caso e de acordo com a lei americana, tal ação é crime federal.
Quais podem ser os argumentos da acusação e da defesa no julgamento?
Da parte da acusação, a tese será sempre a de que Trump teria como intenção comprar o silêncio de Daniels para que a história do caso entre os dois não prejudicasse as suas hipóteses de ser eleito Presidente.
Para isso, há alguns argumentos que já são públicos. Por um lado, o facto de Cohen ter sido condenado por esse mesmo crime relativamente ao mesmo caso funciona como uma forma de jurisprudência, como aponta o colunista do New York Times Nicholas Kristof: “Um princípio fundamental da Justiça é o de que, se um agente é punido, então o principal agente [do crime] também deve sê-lo”.
Por outro, o facto de o caso com Stormy Daniels remontar a 2006, mas o pagamento só ter sido feito duas semanas antes da eleição presidencial, em 2016.
Para além disso, há ainda o caso de Karen McDougal, a playmate do ano de 1998, que também foi ouvida pelo grande júri (e deverá por isso ser novamente trazida como testemunha no julgamento). McDougal dizia ter tido um caso com Trump e aceitou não divulgar a história a troco de um pagamento de 150 mil dólares por parte da empresa dona da revista The National Enquirer (cujo diretor é um amigo de Trump, David Pecker). O advogado Michael Cohen também foi condenado neste caso — e a acusação tentará agora provar que houve um esforço concertado para abafar histórias potencialmente problemáticas para o candidato em ano de eleição.
Do lado da defesa, a história é simples: Trump irá provavelmente alegar que os pagamentos foram feitos não por questões políticas, mas para que o seu casamento com Melania Trump não fosse prejudicado pelas notícias dos casos amorosos.
Para além disso, a própria lei prevê que, para alguém ser condenado por violar as leis de campanha, é preciso ter noção de que se estava a cometer um crime. Ora Trump diz que nem sabia que os pagamentos tinham sido feitos por Cohen, que teria tomado a iniciativa, acabando por ser informado posteriormente, altura em que decidiu reembolsá-lo.
Um dos casos semelhantes que já teve lugar no passado ilustra bem a dificuldade de condenar por um crime do género. John Edwards, antigo senador da Carolina do Norte, foi acusado de usar donativos de campanha para esconder um caso amoroso durante a sua candidatura ao Senado. Edwards argumentou que o objetivo do pagamento era o de esconder o caso da sua mulher e não de o proteger durante a campanha, lembra o Wall Street Journal. Edwards acabou ilibado de uma das acusações. Nas restantes não houve acordo entre os jurados, tendo as acusações acabado por ser abandonadas pela procuradoria.
Se for condenado, que pena pode Trump enfrentar?
Se o tribunal considerar que Trump é culpado não apenas de fraude financeira, mas também de violação da lei de financiamento de campanha, pode enfrentar uma pena de até quatro anos de prisão efetiva. Contudo, como recorda o Politico, este é um crime “relativamente modesto” e é até possível que o juiz decida apenas a aplicação de uma multa.
Então e os outros casos judiciais que envolvem o ex-Presidente?
Os restantes casos judiciais que envolvem Donald Trump continuam a decorrer, embora nenhum deles tenha ainda resultado numa acusação oficial, como este. Para além de vários processos civis, há três casos penais. Curiosamente, e ao contrário do caso de Stormy Daniels, dizem todos respeito a ações tomadas pelo ex-Presidente quando estava na Casa Branca.
Um dos processos decorre no estado da Georgia, onde Trump está a ser investigado por suspeitas de ter tentado influenciar o resultado eleitoral nas presidenciais de 2020, ao pressionar os responsáveis estaduais a “encontrarem” os votos em si que dizia estarem desaparecidos e que poderiam alterar o resultado.
As outras duas investigações criminais são diretamente conduzidas pelo Departamento da Justiça. Uma diz respeito ao envolvimento do à altura Presidente na invasão ao Capitólio, de 6 de janeiro de 2021. A outra relaciona-se com os documentos confidenciais encontrados na casa de Mar-a-Lago.
Embora nenhum destes casos esteja diretamente relacionado com a história de Stormy Daniels, há quem considere que qualquer julgamento em tribunal pode acabar por ter influência noutras investigações. É o caso do antigo procurador Renato Mariotti que, num artigo publicado no Politico, explica como vários casos em múltiplas jurisdições podem ser dores de cabeça para os advogados: “Em vez de considerarem a melhor ação num caso particular, o advogado terá de considerar como é que as suas palavras ou ações num dos casos (o de Manhattan, por exemplo) podem ter impacto noutros casos, incluindo naqueles onde ainda não houve acusação.”
Basta pensar que o próprio ex-Presidente pode ser chamado a testemunhar em tribunal e as suas palavras podem ter impacto noutros casos que ainda decorrem.
Outros presidentes norte-americanos tiveram problemas com a Justiça?
Sim, mas nunca a este nível.
Em 1872, quando ainda ocupava o cargo de Presidente, Ulysses S. Grant foi detido por excesso de velocidade enquanto conduzia a sua carruagem. Contudo, pagou uma multa e saiu em liberdade, não sendo sequer julgado.
Mais recentemente, dois antigos presidentes correram o risco de enfrentar acusações judiciais com base em conclusões retiradas dos respetivos processos de impeachment de que foram alvo: Richard Nixon e Bill Clinton. O primeiro chegou a ser apontado como co-conspirador no caso Watergate por um grande júri, não sendo formalmente acusado por ainda ter imunidade presidencial. Quando abandonou o cargo, acabou por receber um perdão presidencial por parte do sucessor, o Presidente Gerald Ford.
No caso de Bill Clinton, embora ilibado no processo de impeachment, o Presidente continuava sujeito a uma possível acusação judicial de obstrução da Justiça e perjúrio. Esse cenário foi afastado graças a um acordo feito com a procuradoria: Clinton admitiu ter prestado falso testemunho e pagou uma multa de 25 mil dólares. Em troca, não houve investigação de nenhum grande júri.
Trump pode continuar como candidato presidencial?
Sim, já que não há nada na lei que impeça um cidadão formalmente acusado de um crime de concorrer à presidência.
Em termos práticos, a sua campanha presidencial pode vir a encontrar obstáculos caso o juiz decida aplicar uma medida de coação que impeça Trump de viajar ou até, no limite, se decidir prendê-lo preventivamente. Mas nada impede o candidato de continuar oficialmente na corrida, por absurdo até a partir da prisão.
No entanto, é pouco provável que o julgamento esteja concluído antes da eleição presidencial de novembro de 2024. Isso levanta a possibilidade de Trump enfrentar uma acusação judicial ou até uma possível condenação na Casa Branca, caso ganhe a eleição — e aí, como lembra o Politico, “as questões legais tornam-se mais pantanosas”.
Que impacto terá este caso na campanha presidencial?
É impossível saber, mas é certo que não será um detalhe.
O primeiro sinal surgiu logo esta sexta-feira com as reações de vários membros do Partido Republicano, que se alinharam totalmente com Trump. Isso incluiu até aquele que é provavelmente o seu maior adversário nas primárias do partido, Ron DeSantis. O governador da Florida garantiu que se oporia a uma extradição do antigo Presidente daquele estado — muito embora esse cenário esteja aparentemente afastado, já que Trump deverá comparecer voluntariamente em Manhattan — e usou palavras fortes, acusando o sistema judicial de estar a aplicar “uma agenda política” e de por em causa “o Estado de Direito”.
Não foi o único. Mike Pence, o antigo vice-presidente de Trump que acabou por estar em lugares opostos da barricada aquando da invasão ao Capitólio, disse estarmos perante “um ultraje” e o representante do Partido Republicano na Câmara dos Representantes, Kevin McCarthy, acusou o procurador Alvin Bragg (conhecido democrata) de estar a levar a cabo uma “vingança política”. Lyndsey Graham, conhecido aliado de Trump no Senado, acusou o procurador Bragg de ter aberto “uma caixa de Pandora contra a própria presidência”.
Na prática, a acusação a Trump não provocou nenhuma divisão aparente no Partido Republicano, com vários membros do partido a replicarem o argumentário do ex-Presidente, que se diz vítima de uma “caça às bruxas” política, levada a cabo por um procurador “racista”.
Mas que impacto pode uma acusação judicial ter no eleitorado? Trump está convicto de que lhe poderá ser favorável, incendiando a base eleitoral e servindo como prova da cabala política de que diz ser alvo. O candidato “tenciona espremer todo o valor político que isto tem”, comentou um dos seus conselheiros com o Washington Post, apontando para o provável aumento dos donativos para a campanha.
“Isto de facto faz com que a conversa durante as primárias gire toda em volta de Trump e essa foi uma dinâmica que resultou para ele em 2016”, apontou ao mesmo jornal outra fonte republicana próxima da campanha de Trump. “Podemos lidar com a eleição presidencial depois.”
Essa, porém, é uma eleição com uma dinâmica muito diferente das primárias partidárias, onde a radicalização não resulta tão bem. E como prever o comportamento dos eleitores perante uma situação nunca antes vista nos Estados Unidos? À medida que o tempo passa, no que toca a Donald Trump, só se torna cada vez mais claro que nunca é possível medir o seu futuro pela bitola do passado.