Enquanto a rua de Serralves — paralela à casa que lhe deu o nome — se enche de carros na hora de ponta e pequenas multidões que parecem misturar-se entre a saída do trabalho e o passeio de final de tarde, há uma passagem que se vê ao longe com um grande portão entreaberto e, como é de estranhar nas ruas portuenses, não se avista vivalma.
No local está uma carrinha branca, com vidros escurecidos. À medida que nos aproximamos, o silêncio da rua, que nos retira da confusão e nos encaminha a seguir rumo, é engolido por uma azáfama de pessoas, telas e cortinados – alguns de papel crepe que resguardam dezenas de cartas de correspondência. Há quem retoque os acabamentos das molduras e quem acerte as vitrinas que expõem um arquivo raríssimo de livros. Estamos na entrada da Casa de Serralves. Os preparativos para comemorar o centenário de José Mário Soares estão a chegar à reta final e, também por isso, não há tempo a perder. Todos os olhos e mãos organizam-se para mostrar o que fez de Mário Soares “um homem das ideias”.
Depois de cruzar a entrada principal, vemos um retrato de Mário Soares que, como explica José Manuel dos Santos, curador, escritor e assessor cultural dos Presidente da República, entre 1986 e 2006, é um estudo de Júlio Pomar que, em 1992, pinta um dos retratos escolhidos a dedo pelo antigo chefe do Estado e fundador do Partido Socialista. Pomar e Mário Soares eram amigos próximos, assim como Maria Helena Vieira da Silva e muitos outros artistas e escritores de quem lemos correspondência e que vemos no arquivo ali condensado, estendido por diferentes divisões da casa.
Desde a sala de jantar à biblioteca que, num dos cantos do espaço, evidencia a secretária onde o vencedor das primeiras eleições legislativas em democracia escreveu sobre duas décadas da sua vida, à sala resguardada por um conjunto de livros e pinturas que assinalam a transição do século, os cem anos de Mário Soares, dos quais 50 pertenceram a uma democracia que também protagonizou, e uns tantos outros de combate à ditadura e de exilo, representam um mar onde restou muito sal e onde a abundância cultural viria a remar numa das épocas mais importantes da história do pós-25 de Abril. O Sal da Democracia, é assim que se apresenta, inaugura esta sexta-feira, dia 6 de dezembro, e ficará em exibição até meados de maio.
“Tudo o que Mário Soares fez na política, desde a resistência à ditadura, nos combates da democracia e nos altos cargos públicos que ocupou, decorreu da cultura, de uma atitude forte e funda”, começa por afirmar José Manuel Santos, enquanto pausa na divisão principal, a sala de jantar. De olhos postos nos quadros de Júlio Pomar e Nadir Afonso, fala das histórias que constam na correspondência dos amigos de longa data e aponta novamente para o centro da sala: é lá que se encontra o tal retrato presidencial. Ainda com a sua proteção plástica estendida, as cores que ressaltam a silhueta do político não passam despercebidas.
A exposição começa com um núcleo forte do artista Júlio Pomar, o que é simbólico, tal como explica o curador. “Estamos a salientar uma amizade muito forte, de solidariedade política, o que acontece também com Maria Helena Vieira da Silva “embora de maneira diferente”. Por essa razão, numa parede branca, coberta com diferentes obras de arte da artista plástica, é impossível ignorar o azulejo pintado à mão, onde se lê “Mário e Maria” em tons de azul, que chega a representar o conforto, a intimidade e a proximidade de uma longa vida de amizade não só entre Vieira da Silva e Mária Soares como também da sua mulher, Maria Barroso. Quantas Marias ali se concentram, senão um ínfimo cultural de nome Maria? De pequena dimensão e com uma caligrafia cuidada, o presente de Maria Helena Vieira da Silva “representa o grande apoio que o Dr. Soares lhe deu na sua chegada a Portugal.
A passagem do século XIX para o século XX é subtil e também por isso foi necessária uma disposição diferenciada entre estantes de livros e telas que dialogam em cada uma das destas salas. Ouve-se um dos trabalhadores, carpinteiros, a trautear umas palavras e a cantarolar um som que se aproximava à música de José Afonso, O que faz falta. Ali, a “malta” estava “animada”. Talvez por isso, tal como José Manuel dos Santos destaca surpreendido, desde o segurança do Museu aos trabalhadores que mesmo com gente nova no espaço trabalhavam contra o relógio “mostravam um interesse enorme pela exposição e sempre que viam algo com que se identificavam ou conheciam ficavam contentes”.
Há uma reaproximação de uma face de Portugal que pouco existe atualmente? Para o curador há cada vez menos políticos com um conhecimento e interesse cultural capaz de representar as necessidades e políticas da Cultura em Portugal. Coisa que ressalva ser diferente da governação de Mário Soares.
Não se fala da democratização cultural naqueles tempos. Nem na dos de hoje. Mas, para José Manuel dos Santos, Mário Soares “era um homem cheio de ideias”. E esta é uma expressão que se relê em várias cartas de correspondência que Soares recebia. “A sua proximidade era fundamental”, lê-se num recorte de papel.
Assim o era que José Saramago respondeu-lhe, tal como lemos num excerto, que mesmo sabendo das diferenças políticas que defendiam, agradecia o seu apreço em escrever-lhe sobre o livro O Ano da Morte de Ricardo Reis. Ou até mesmo Herberto Hélder – que pouco se correspondia com os intelectuais da altura – louvou-lhe a perseverança e a recusa de um dos prémios Pessoa.
A(s) casa(s) de Mário Soares
A versão naturalista e modernista da arte portuguesa é um arquivo longo que Mário Soares decidiu preservar e que, de alguma forma, representa vivacidade de lutas: “A estátua de Eduardo Cutileiro – o Guerreiro – foi comprada depois de Mário Soares sair da prisão. A primeira coisa que fez foi ir a uma galeria comprar uma obra de arte que, de certa forma, contava essa mesma história, era uma espécie de contraprova da sua liberdade”, avanço o curador.
Grande parte da sua vida foi dividida por diferentes moradas: “O meio, a casa. Esta é uma reflexão perante um lugar onde ele esteve sempre. Não é que queiramos reconstruir as suas casas, mas permite criar ‘a tal’ e conhecer a vida privada, onde habitaram estas obras que compõem a coleção e que, por sua vez, está sempre ligada a uma atitude cultural”, continua José Manuel dos Santos enquanto se debruça sobre uma das mesas com mais umas dezenas de cartas. Desta vez estamos voltados para um postal escrito por Amália Rodrigues, uma carta assinada por José Mário Branco, datada de 1973 e uma folha que destaca um autocolante com estrelas de Lídia Jorge.
As casas de Mário Soares — a da infância, a da juventude, a da vida adulta — permitiram uma educação que foi sendo estabelecida por diferentes mestres, “o pai, os mestres do melhor que havia do ponto de vista intelectual, por exemplo, o Agostinho da Silva”, que lhe dava lições pouco formais enquanto andavam de bicicleta e passeavam no jardim e lhe perguntava o que pensara sobre os diálogos de Platão.
Se Mário Soares teve oportunidade de confidenciar com grandes figuras intelectuais, isso também interferiu no seu entendimento cívico, quer de medidas políticas quer de visão do mundo. Amar a Liberdade, era tudo aquilo que entendia ser o caminho da atitude política, social e cultural, tal como o escritor que nos orienta ao longo da visita destaca.
E se tudo isto coabita na sala de jantar, passando a uma outra divisão, aquela que se prolonga entre a sua coleção de livros mais antiga – onde lemos as primeiras edições d’Os Maias ou A Relíquia, de Eça de Queiroz, ou da Mensagem, de Fernando Pessoa – e uma outra, onde se pode ver as capas e contracapas de todos os livros que escreveu fazendo referências a artistas plásticos. É um diálogo constante entre aquilo que se entende ser a sala de estar e a biblioteca, onde se encontram também os retratos do pai, João Soares, pelo pintor Abel Manta, e de Maria Barroso, pela pintora Graça Morais. Dacosta, Hogan, Resende, Pomar, Nadir, Nikias Skapinakis, Cesariny, Cruzeiro Seixas, entre outros artistas, fazem-se representar nesta coleção, não só pela contemporaneidade que partilhavam, mas também pela proximidade a Mário Soares.
“A política como cultura e a cultura como política no seu sentido mais exemplar”
Tudo é um ato político? E, para um dos curadores da exposição (do qual Pedro Marques Gomes faz parte), também parece ser o contrário. Voltando à sala de jantar, onde caminhámos pela área mais vasta, rodeada pelos restauradores das obras, o ambiente parece acompanhar o que o José Manuel dos Santos acabara de defender: “Um ato político é também aquilo que na política provém da cultura e chega à cultura. Se a palavra não estivesse gasta, diria que é a política como cultura e a cultura como política, não é apenas a história”.
Aliar o conhecimento à prática política é “talvez das coisas mais difíceis de conciliar, mas Mário Soares conseguiu-o”. E tanto como José Manuel dos Santos compreende, isto é também a democracia, como se não fosse disso que esta exposição tratasse. “É uma atitude fundamental”, ressalva, acrescentando que o compromisso de Mário Soares aparenta ser esse. Nunca separar estas duas atitudes: “Ele tinha visitas de Estado, com a agenda cheia de compromissos protocolares e políticos, mas arranjava sempre tempo para ir a uma livraria, para ir ver uma exposição, ir a uma galeria. Isto não se faz artificialmente, isto decorre naturalmente da pessoa ou então não se pode ter tudo”.
Em todas aquelas obras permanecem histórias. E se tão jovens eram alguns dos restauradores e operadores da montagem, a curiosidade e o trato à medida que iam projetando a exposição, pouco a pouco, fazia-nos questionar o que eles próprios sentiriam ao perceber que esta mesma história de acesso, de viragem e de liberdade ali permanece. Representada em diferentes gerações junto da criatividade cultural.
Seguimos para um retrato de André Malraux assinado por Vieira da Silva. “É aqui que as histórias começam”, ri-se José Manuel dos Santos. A fundação Mário Soares e Maria Barroso detem milhares de cartas. Numa delas contava a história que se segue e que o curador fez questão de referir: “Enquanto Vieira da Silva fazia o retrato do Malraux que decidiu aparecer no restaurante a que ela se dirigia, ele segurava um gato que permanecia no local e falava-lhe da vida e daquele lugar. Vieira da Silva ouvia-o, retratava-o. Só existem três exemplares deste retrato”, um deles era de Mário Soares.
Filosoficamente, Mário Soares era um político que “se considerava discípulo da filosofia das luzes, mais propriamente de Kant, cujas ideias que estão na origem da democracia. Portanto, ele acreditava que a razão nos autodetermina e que o conhecimento emancipa”, continua o curador. Talvez aquele momento em que André Malraux carregava no colo o gato fosse algo que está intrínseco de todos os políticos e de todas as políticas: a vida. “Não precisa de se saber só de política, porque a política lida com a vida”, termina o curador.
Seguimos e o telefone de José Manuel dos Santos toca. Começa a demarcar-se o final da pequena visita guiada, mas a conversa sobre a vida ainda perdura.
“Onde se conhece fundamentalmente a vida é, por exemplo, nos romances, é um espelho multifacetado da vida e era algo que Mário Soares lia muito. É um espelho da sociedade, do indivíduo. No fundo, ele tinha essa ideia, por isso lia tanto Agustina Bessa-Luís, Jorge Amado ou Gustave Flaubert”, vai insurgindo José Manuel Santos à medida que se prepara para partir.
Mário Soares escrevia todos os dias. “Era um homem que pertencia a uma família de políticos escritores para quem a literatura, a cultura e a política faziam um triângulo. Escreviam sobre aquilo que faziam e sobre aquilo que tinham de fazer e disso Mário Soares não abdicava nunca. Tem milhares de páginas escritas em livros, estão ali alguns deles”, aponta o curador.
As referências literárias são evidenciadas na sala. Ainda não víamos frases pintadas nas paredes como será presenciado, mas rápido se percebeu que dirão coisas como “escrever é passar a vida a limpo”, pronunciadas por Carlos Drummond de Andrade – com quem também se correspondeu. “Para Mário Soares era isso e também era passar a política a limpo, digamos, a vida política, a limpo”.
Depois de uma juventude durante a Guerra Civil de Espanha e a Segunda Guerra Mundial, depois de conhecer Camões, Kant, Antero de Quental, Eça de Queiroz, Rembrandt ou Columbano e de ganhar a consciência clara dos perigos que a democracia poderia sofrer, a política e a cultura tornaram-se uma só.