No início de novembro de 1922, a equipa que trabalhava no Vale dos Reis com o arqueólogo Howard Carter pôs a descoberto o primeiro de um lanço de 16 degraus de pedra que levava a uma porta bloqueada coberta de gesso e carimbada com selos ovais, que incluíam o da necrópole. Após vários dias de trabalho, a escadaria foi finalmente esvaziada e a porta desimpedida, revelando o nome de Tutankamon, estampado no gesso posto a descoberto. Atrás dessa porta, havia uma outra, bloqueada, engessada e selada. Com “mãos trémulas”, Carter fez uma pequena abertura no canto superior esquerdo. O ar quente “fazia a candeia tremeluzir”, mas quando se acostumou à luz fraca, foi-se apercebendo dos pormenores da sala e dos estranhos animais, estátuas e ouro que a enchiam. “Em toda a parte reluzia o ouro”, relatou o arqueólogo. Carnavon, o rico lorde inglês que patrocinou a escavação no Vale dos Reis, estava junto a Carter. Perguntou-lhe se conseguia ver alguma coisa. “Sim, coisas maravilhosas.”
A frase ficou famosa. No interior do túmulo do faraó esquecido, havia tesouros extraordinários, que Carter nem nos seus melhores sonhos tinha conseguido imaginar. Até Tutankamon, nunca tinha sido descoberto um túmulo egípcio praticamente intocado. A grande maioria dos túmulos descobertos até então tinham sido roubados por ladrões ainda na Antiguidade. Os objetos funerários de Tutankamon não eram só extraordinários, eram uma oportunidade para os arqueólogos aprenderam um pouco mais sobre a época dinástica e sobre o que aconteceu após a morte de Akhenaton, o famoso rei herético que desprezou o vasto panteão egípcio para que pudesse prestar culto a um único deus, o disco solar conhecido por Aton. As ligações entre Tutankamon e Akhenaton permanecem pouco claras, mas é muito provável que o faraó descoberto há 100 anos por Howard Carter pertencesse à família real de Amarna.
A fama da descoberta do túmulo de Tutankamon fez com a morte do rei se sobrepusesse à sua vida. “Quando nos focamos no seu túmulo e objetos fúnebres, corremos o perigo de nos esquecermos que Tutankamon governou o Egito durante dez anos”, disse a egiptóloga e professora universitária britânica Joyce Tyldesley, autora vários livros sobre o Antigo Egito, numa entrevista concedida por email ao Observador. No seu mais recente livro, Tutankamon — Faraó, Ícone, Enigma, publicado em Portugal no final de outubro, Tyldesley decidiu mudar o foco” da sua pesquisa e “olhar para a vida de Tutankamon e também para a sua morte e para o que aconteceu depois”, abordado as principais questões relacionadas com a descoberta do túmulo do faraó e as poucas certezas que existem em relação ao reinado de uma figura que, 100 anos depois da sua descoberta no Vale dos Reis, continua a fascinar especialistas e curiosos no mundo inteiro.
Desde a descoberta do túmulo de Tutankamon, foram publicados inúmeros livros sobre o faraó, alguns deles escritos por si. Porque é que decidiu revisitar a história de Tutankamon?
Queria mudar o foco da pesquisa e olhar para a vida de Tutankamon e também para a sua morte e para o que aconteceu depois. Acho que quando nos focamos no seu túmulo e objetos fúnebres, corremos o perigo de nos esquecermos que Tutankamon governou o Egito durante dez anos.
A história de Tutankamon está relacionada com a história de um outro famoso faraó, o herético Akhenaton. O que é que sabemos sobre a relação entre os dois?
Sabemos que Akhenaton governou o Egito antes de Tutankamon se tornar rei, por volta do ano 1.336 A.C. O facto de Tutankamon ter subido ao trono quando tinha oito anos sugere que tinha uma relação próxima com a família real. Assim, parece provável que Akhenaton fosse seu pai ou talvez seu avô ou até mesmo seu irmão.
De que forma é que o reinado de Akhenaton moldou o reinado de Tutankamon?
O reinado de Akhenaton foi atípico. O rei e a sua elite dedicaram-se ao culto de um só deus, um disco solar conhecido como “Aton”. Akhenaton fundou uma nova cidade, Amarna [localizada entre o Cairo e a antiga cidade de Tebas, atual Luxor], para que pudesse prestar culto a Aton longe da influência de outros deuses. Isso foi muito disruptivo para o povo egípcio e para a economia do reino. Grande parte do reinado de Tutankamon foi passado a reverter essa experiência, a restaurar os antigos deuses e as antigas cidades reais de Tebas no sul e de Mênfis no norte.
Existem evidências de que Tutankamon não sucedeu diretamente a Akhenaton e que o reino foi brevemente governado por Smenkhare. Quem foi Smenkhare e porque é que raramente é referido quando se fala deste período da história do Egito Antigo?
Sabemos que Smenkhare existiu porque o seu nome aparece em inscrições monumentais do final do reino de Akhenaton. Existe um mural que indica que ele foi casado com a filha mais velha de Akhenaton, Meritaton, e que ambos serviram como rei e rainha do Egito. Isso sugere que Smenkhare era filho de Akhenaton ou, talvez, seu irmão. Muitos egiptólogos acreditam que teve um reinado breve como co-regente de Akhenaton ou que governou imediatamente a seguir a ele, mas que morreu pouco tempo depois, permitindo a Tutankamon herdar o trono. Alguns egiptólogos — eu incluída — acreditam que a múmia descoberta no túmulo KV 55 [no Vale dos Reis] é a de Smenkhare.
Sabe-se o que aconteceu à rainha Nefertiti depois da morte de Akhenaton?
Não. Existem boas evidências que mostram que ela ainda estava viva e a desempenhar funções como rainha consorte no ano 16 do reinado de 17 anos de Akhenaton, mas depois desaparece [dos registos]. Têm vindo a ser sugeridas várias hipóteses, desde a sua morte e enterro em Amarna, no último ano do reinado de Akhenaton, até à sua subida ao trono como faraó, antes de Tutankamon.
Existem várias teorias sobre a sua morte precoce de Tutankamon. A mais famosa refere que foi assassinado. No seu livro, diz que não existem evidências que o comprovem. Qual é, então, a causa mais provável da morte do faraó?
É possível constatar que o corpo de Tutankamon foi muito danificado pouco antes da sua morte, sobretudo na zona do peito e numa perna. O coração não estava no corpo, o que sugere que se decompôs antes de ser mumificado. Isto por sua vez indica que ele morreu a alguma distância dos aposentos reais. A minha teoria é que ele morreu devido a algum impacto sofrido a grande velocidade, provavelmente provocado quando perseguia avestruzes no deserto.
A sua morte súbita é muitas vezes referida para explicar porque é que não foi sepultado no seu túmulo e para sugerir que a sua máscara não foi feita para ele. Existe alguma evidência que sustente essas teorias?
Não. Tutankamon ocupava o trono há dez anos quando morreu e isso teria sido tempo suficiente para preparar um túmulo real apropriado e o respetivo equipamento fúnebre. Contudo, parece provável que o seu sucessor, um homem velho chamado Ay, tenha ficado com o túmulo e equipamento fúnebre de Tutankamon.
Tutankamon foi sepultado no Vale dos Reis, que era conhecido desde a Antiguidade como lugar de enterro dos faraós. Porque é que demorou tanto tempo a ser encontrado?
O túmulo de Tutankamon estava no chão do Vale e foi escondido por sedimentos de aluvião solidificados e por edifícios posteriores. Isso salvou-o.
O túmulo estava repleto de “coisas maravilhosas”, como descreveu Howard Carter. De que maneira é que a descoberta desses objetos ajudou os arqueólogos a compreender melhor o período de Tutankamon e a forma como os faraós da XVIII dinastia eram sepultados?
Primeiro, o túmulo praticamente intocado ajudou os arqueólogos a perceberem quão elaborado teria sido um enterro real. O corpo mumificado, os caixões e o equipamento ritualista ajudaram a melhorar a nossa compreensão acerca dos rituais reais funerários. Depois, individualmente, os mais de cinco mil objetos funerários permitiram aos arqueólogos estudar a tecnologia e a arte da época dinástica. Infelizmente, faltava documentação escrita, que teria ajudado os arqueólogos a compreender melhor a família de Tutankamon e a sucessão real.
A descoberta do túmulo de Tutankamon fez surgir questões relacionadas com a perturbação de antigos locais de enterro. Qual é a sua opinião sobre essa questão?
Acho que os arqueólogos se deviam focar tanto nos vivos como nos mortos. É o que está a acontecer hoje no Egito, onde é dada uma grande ênfase tanto as locais domésticos como aos templos do passado.
O arqueólogo Nicholas Reeves acredita ter identificado outro túmulo junto ao de Tutankamon onde estará a múmia de Nefertiti. Acha que essa teoria tem algum fundamento?
Adorava acreditar que Nefertiti está escondida dentro do túmulo de Tutankamon, mas não acho que existam evidências suficientes para apoiar essa teoria.
Qual seria a importância da descoberta desse túmulo?
Ajudar-nos-ia a compreender a complicada sucessão entre os reinos de Akhenaton e Tutankamon. Também poderíamos ficar a saber se ela era ou não era mãe de Tutankamon.
Passaram 100 anos desde a descoberta do túmulo de Tutankamon por Howard Carter. É uma data que devemos celebrar?
Sim, acho que sim. Contudo, devíamos usar o aniversário para refletir acerca das mudanças na prática da Egiptologia, por exemplo, se é correto um arqueólogo viajar para uma terra estrangeira e desenterrar um rei morto ou se as múmias devem ser desembrulhadas ou expostas.
No prólogo do seu livro, conta que se começou a interessar por Egiptologia após visitar uma exposição itinerante sobre Tutankamon nos anos 70. Tutankamon continua a fascinar os jovens estudantes e a levá-los a tornarem-se arqueólogos e egiptólogos?
Ensino egiptologia online a estudantes de todo o mundo. Esses estudantes tendem a ser mais velhos do que a maioria dos típicos estudantes universitários, por isso muitos deles foram também influenciados pela mesma exposição itinerante sobre Tutankamon de 1972, que me fascinou há tantos anos! Outros estudantes estudaram o Egito Antigo na escola, e foi lá que aprenderam sobre Tutankamon. Por isso, sim, diria que Tutankamon continua a ser uma grande influência nos estudantes e nos turistas que visitam o Egito para ver o seu túmulo e objetos funerários.