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Quando se olha para o mapa, é possível traçar uma linha que rodeia o norte e leste da Ucrânia: de Yelnya e Bryansk (mais perto da Bielorrússia), passando por Kursk e Belgorod e terminando nas zonas de Lugansk e Donetsk, a fronteira entre a Ucrânia e a Rússia está pejada de tropas e equipamento militar enviado por Moscovo. “É impossível saber o que está Putin a pensar, mas o comportamento de Moscovo neste momento está longe de ser rotineiro”, resumia um analista militar na semana passada.
O reforço militar russo acontece quase há um ano e tem-se intensificado nas últimas semanas, apesar do diálogo diplomático que decorre entre russos e norte-americanos. “Temos uma série de medidas militares e técnicas que aplicaremos se sentirmos que a nossa segurança está a ser ameaçada de forma real”, avisou o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Alexander Grushko, na semana passada. Um dia depois, um responsável norte-americano saía do encontro da Organização de Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) com um aviso transmitido pela CNN: “Os tambores da guerra estão a soar alto.” Menos de uma semana mais tarde, a NATO reforça as tropas no leste da Europa e os EUA consideram enviar soldados para a região.
Subitamente, uma concentração de forças militares russas que ocorria há quase um ano perante a impassividade do Ocidente tornou-se tema central da diplomacia internacional e escalou nos últimos dias. Irá o Presidente russo, Vladimir Putin, arriscar um conflito aberto com uma incursão em território ucraniano? “A opinião de especialista que posso invocar com autoridade é: Quem sabe?”, respondeu ao The New York Times o analista russo Fyodor Lukyanov.
O Observador comprovou em conversa com três especialistas que o cenário neste momento é de total incerteza. As opiniões são extremadas. Evelyn Farkas, que trabalhou na equipa do Departamento de Estado norte-americano que analisa a situação na Rússia e Ucrânia durante a presidência de Barack Obama, é taxativa: “Esta é a pior situação em termos de segurança na Europa desde a II Guerra Mundial. E olhe que está a falar com alguém que esteve na Bósnia durante a guerra”, declara ao Observador, apelando aos europeus para que se juntem aos norte-americanos para “travar Putin”.
Já Nina Khrushcheva, analista russa (e bisneta de Nikita Kruschev) que dá aulas de Política Internacional em Nova Iorque, considera que os Estados Unidos é que estão a extremar a situação: “Os tambores estão a soar, mas não é só por haver militares russos na fronteira com a Ucrânia, é porque tem havido uma retórica alarmista e sensacionalista dos EUA. Antes de esta histeria ter começado, a maioria dos analistas insistia que isto é apenas bluff de Putin.”
Entre estes dois pólos estão analistas como Nicolò Fasola. O italiano, autor de Russia’s Way of War e investigador especializado na NATO, não considera que a situação seja a pior desde a II Guerra Mundial — “A Guerra Fria deu-nos muitos outros exemplos em que quase entrámos em guerra” —, mas não desvaloriza a gravidade da situação. “As partes parecem estar mergulhados num ‘jogo do sério’, a ver quem cede primeiro. Quanto mais tempo jogam, mais maximalistas se tornam os seus objetivos, o que faz aumentar a probabilidade de resultados explosivos“, afirma.
Posição dos Estados Unidos pode “arrastar” NATO
A escalada de retórica acentuou-se desde que o Presidente norte-americano, Joe Biden, deu o alerta na semana passada de que uma invasão da Ucrânia pela Rússia seria o ato “mais significativo em termos de guerra e paz desde a II Guerra Mundial”. As conversações em Genebra não foram a lado nenhum, com os russos a apresentarem uma série de exigências (objetivo principal: recuo da NATO) que os norte-americanos dizem ser impossíveis de cumprir.
Como os tanques do Kremlin não deram sinais de se afastarem da fronteira com a Ucrânia — tendo Moscovo enviado ainda mais tropas para a Bielorrússia —, os EUA reforçaram a retórica: 8.500 tropas prontas para irem para o leste da Europa. Os jornais dizem que a administração Biden não exclui a possibilidade de responder militarmente a uma incursão russa na Ucrânia.
Isso significa que o risco de conflito é elevado. “Se os norte-americanos enviarem tropas para a Ucrânia, o risco de confrontos com as forças russas, mesmo que sem querer, torna-se elevado. Se isso acontecer, toda a NATO será arrastada para um conflito com a Rússia”, avisa Nicolò Fasola ao Observador. Seria também um risco para a própria administração Biden, já que contraria a posição que tinha defendido até então, de reagir apenas com sanções.
A própria NATO já está em alerta elevado, com a Força de Reação Rápida a postos e o envio de navios e caças para o leste da Europa. Na sexta-feira, a Rússia pediu que as forças da NATO saíssem da Bulgária e da Roménia — não só não saíram, como França e Países Baixos se mostraram disponíveis para reforçar a presença militar da Aliança nos dois países.
Para Evelyn Farkas, esta é uma resposta natural da Aliança Atlântica, tendo em conta a postura do Kremlin: “Ao enviar tropas para a Bielorrússia, lançou um desafio à própria NATO, porque aquele país faz fronteira com três membros: a Polónia, a Lituânia e a Letónia”, diz. “Isto agora já diz respeito diretamente à NATO”. Fasola, porém, tem um entendimento diferente e alerta para os riscos de divisões dentro da própria Aliança se os norte-americanos quiserem avançar para uma ação na Ucrânia: “Nem todos os membros da NATO seriam a favor e, portanto, se os EUA avançarem para isso será sem um consenso. Um unilateralismo deste tipo poderia dividir ainda mais a NATO”, avisa o investigador da Universidade de Birmingham.
Com a Rússia a invocar a NATO como principal problema — ao dizer que se sente ameaçada pela aproximação da fronteira da Aliança, com a adesão de membros do antigo pacto de Varsóvia e da URSS —, não é possível a Aliança do Tratado do Atlântico Norte excluir-se da situação na Ucrânia. O Kremlin exige um compromisso de que o país nunca fará parte do Tratado, algo que a NATO recusa dar. Contudo, não dá sinais de avançar para incluir a Ucrânia no seu seio.
Isto significa também que os membros da Aliança não são obrigados a intervir caso haja um ataque militar à Ucrânia. Mas, se os Estados Unidos se envolverem e forem atacados, passam a estar comprometidos, já que o princípio da NATO é o de que um ataque a um Estado-membro exige uma resposta coletiva. Para além disso, a proximidade de tropas da sua fronteira deixa a Aliança numa posição delicada: “A NATO está entre a espada e a parede porque dissemos à Ucrânia que pode entrar na casa, mas não pode ir à varanda“, resumiu ao Financial Times Jaap de Hoop Scheffer, ex-secretário-geral da Organização. Que é como quem diz: perante uma invasão da Ucrânia, estamos em território pouco claro.
Os fatores estruturais e conjunturais que espicaçam a Rússia
As queixas de Moscovo relativamente à NATO não são, porém, novas. O que levanta a questão: porquê este braço de ferro com o Ocidente agora? Evelyn Farkas avança uma possibilidade: a de que as manifestações populares na Bielorrússia e, mais recentemente, no Cazaquistão tenham assustado o Kremlin. “Putin pensa que os EUA estão a fomentar estas manifestações”, afirma a antiga colaboradora do Departamento de Estado. “É certo que estas são regiões sobre as quais ele tem mais controlo do que sobre a Ucrânia, mas isto também significa mais dores de cabeça para ele. Acho que isto tem influência neste timing“.
Nicolò Fasola concorda que este fator pode levar a uma “assertividade maior” por parte de Moscovo face à Ucrânia, mas recusa que essa seja a única justificação: “Seria redutor explicar esta crise apenas com base nisso. Afinal, os protestos na Bielorrússia e no Cazaquistão não mudaram significativamente o statu quo na região”, diz. “Esta crise reflete tensões e discordâncias que já existem há décadas. São as mesmas queixas que a Rússia faz desde pelo menos 2007. Esta crise entre a Rússia e a NATO tem uma natureza estrutural: baseia-se numa incompatibilidade de visões sobre as intenções do outro, sobre a gestão da segurança europeia e sobre os valores que devem nortear as relações internacionais”.
Farkas aponta ainda outros fatores conjunturais. “Putin crê que os EUA e a NATO estão fracos e sem vontade de intervir militarmente por duas razões: o que aconteceu com a retirada do Afeganistão e as próprias divisões internas dentro dos Estados Unidos”, afirma.
Outros analistas apontam ainda uma estratégia recorrente do Kremlin que deu frutos em 2014, com a anexação da Crimeia: a de recorrer a uma escalada internacional para mobilizar os cidadãos russos e esvaziar o descontentamento interno. É verdade que as sondagens são claras a dar conta de que metade dos russos culpam o Ocidente e a NATO pela atual situação. Só 3% a 4% consideram o Kremlin responsável pela tensão atualmente existente, segundo a conclusão de um estudo do Centro Levada, o organismo de estudos de opinião mais credível da Rússia.
O seu diretor, Denis Volkov, não considera, porém, que um conflito direto com a Ucrânia possa ser um trunfo esmagador para o Kremlin em termos de política interna. A situação económica na Rússia deteriorou-se desde a tomada da Crimeia, e se a península é quase unanimemente tida pelos russos como território nacional, o mesmo não pode ser dito sobre toda a Ucrânia. Além disso, o país já tem soldados a combater no leste da Ucrânia há oito anos, a que se soma a presença na Síria, sem fim à vista. “Parece-me que não veremos o mesmo fervor em torno da bandeira que vimos com a Crimeia“, afirmou Volkov ao Politico. “As pessoas estão cansadas do conflito na Ucrânia e das tensões internacionais.”
Sanções ou armas? O eterno dilema na Europa
Perante a situação atual, os países da União Europeia (UE) têm reforçado o apelo ao diálogo — com França a tentar ressuscitar o modelo da Normandia — e ameaçado com mais sanções à Rússia. Mas isso chega?
Nicolò Fasola crê que não: “As sanções são uma espécie de paixão dos liberais, uma solução para qualquer ocasião quando não se tem opções melhores. As rondas de sanções prévias tiveram efeitos na economia russa. Mas claramente não tiveram sucesso porque não fizeram com que a Rússia alterasse o seu comportamento.”
A possibilidade de afetar os russos onde mais lhes dói seria impor sanções às exportações de gás do país. Só que tal decisão afetaria extraordinariamente uma Europa que importa muito gás russo, com uma subida mais do que expectável dos preços da energia por todo o continente. A Alemanha pode assumir o papel de país mais resistente a esta medida, porque 55% do seu gás natural vem da Rússia. Mexer nisto pode significar por em risco uma parte considerável da indústria alemã. “O facto de a maioria das importações de gás da UE virem da Rússia dá a Moscovo uma vantagem extra que baralha todas as decisões”, resume Fasola.
Evelyn Farkas lamenta as hesitações de parte do governo alemão face à Rússia, em concreto do SPD. “Conheço membros dos Verdes, sei que eles entendem bem Putin. Infelizmente, outros atores políticos alemães desvalorizam-no”, diz ao Observador. “Putin está atento à reação alemã, nomeadamente ao nível das sanções. Se não for uma reação firme, toda a resposta europeia pode estar em causa, porque os outros países têm tendência a seguir a toada alemã.”
Economia à parte, as recentes declarações dos norte-americanos parecem abrir a porta a uma reação militar para resolver a situação na Ucrânia, o que seria inédito. Em Washington, o ambiente é de frustração com a maior cautela dos europeus, com Farkas a assumir que os EUA “ficam inibidos pelos aliados, que não estão a compreender que é preciso agir”. A necessidade de ter pulso firme com Putin é, para esta antiga funcionária do governo de Obama, fulcral: “A Rússia não é a única a testar-nos, a China e o Irão estão a olhar para isto com atenção.”
Mas nem todos concordam que uma crise de armas se resolve com mais armas. “Quanto mais os EUA ameaçam a Rússia, mais Putin sente que o seu argumento de se sentir ameaçado pela NATO faz sentido. Se forem enviadas tropas para a Ucrânia, a Rússia vai erguer uma fortaleza ainda maior”, avisa Nina Khruscheva. Para a especialista, que nasceu na Rússia e vive nos Estados Unidos, é necessário manter a cabeça fria: “O flanco anglo-saxónico está desejoso de ver Putin de joelhos, mas os mais realistas entendem que insultá-lo em todos os momentos é contraproducente”, resume a professora. Para já, há apenas uma certeza com que todos os analistas concordam: “Enquanto o Ocidente não estiver unido, Putin vai continuar a sentir que pode pressionar.”