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JOÃO PORFIRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFIRIO/OBSERVADOR

Um “calor insuportável” que não faz vacilar a fé. No Parque Tejo, joga-se às cartas, dança-se e procura-se pelo país perdido da JMJ

A espera pelo Papa Francisco no Parque Tejo foi longa e dolorosa para os milhares de peregrinos que já acampam junto ao rio. Mas nem o calor faz esmorecer “la juventud del Papa”.

“Estamos ótimos. Isto não é nada a comparar com Madrid”. Valdir Semedo segura a bandeira de Cabo Verde junto à grade que delimita a zona destinada aos peregrinos no Campo da Graça, vulgo Parque Tejo, com um sorriso no rosto. O calor que ainda se faz sentir ao fim da tarde junto ao rio não incomoda o jovem peregrino, que na Jornada Mundial da Juventude de Madrid, em 2011, passou o cabo das tormentas. “Eram 45 graus de dia e houve uma enorme tempestade à noite”.  Foi uma experiência radical a comparar com Lisboa. “Aqui estamos bem”.

A poucas horas da chegada do Papa Francisco ao recinto que alberga o famoso altar-palco que tanta discórdia gerou há alguns meses, onde vai presidir à Vigília, os peregrinos aguentam o tempo como podem. Valdir caminhou durante uma hora e meia desde Sacavém até ao Parque Tejo e só por ter a credencial de voluntário é que conseguiu chegar à primeira fila do recinto quase ao final da tarde. Aos altifalantes, a organização garante que há quase um milhão de jovens, e não só, no Campo da Graça. Vêm preparados para passar a noite, munidos de sacos-cama, tendas improvisadas e chapéus de chuva que hoje servem para tapar o sol.

Dristhar Canchi Condori veio do Peru e também está na fila da frente graças ao salvo-conduto dos voluntários. O turno na equipa de segurança terminou às 16h, e as horas seguintes foram de espera. “É a fé que nos faz aguentar, porque o calor é insuportável. Foi muito difícil chegar do metro até aqui, foi uma caminhada de quase 40 minutos ao sol e quase sem vento. Mas houve quem tenha caminhado muito mais e que tenha demorado horas a chegar aqui, e isso também é um sinal de fé”, acredita.

Para estar no Campo da Graça tantas horas, dia e noite, a “juventud del Papa” “precisa de ter este espírito de querer encontrar Deus, ouvir a palavra do Papa e a vontade de rezar todos juntos” pela noite fora. “Não conseguimos ver o fim, somos muitos. Que bom”, vão dizendo os speakers aos altifalantes. E o fim da multidão não se avista mesmo de lado nenhum. “O que me faz aguentar é também ver que não sou o único. Somos muitos. Estamos contentes, apesar de tudo. Já falta pouco para começar a oração”. Há “muita gente a passar mal” com o calor, admite,  “mas isto são pequenos sofrimentos e a vida é feita disso. Encontrarmo-nos com Deus a seguir e ouvir o Papa compensa tudo isso”.

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Jogos de cartas, dormitar enquanto dá e um jogo inventado: assim se passou o tempo enquanto Francisco não chegava

Mariana Madeira também é voluntária e saiu de casa às 10h. A caminhada da estação do Oriente até ao Parque Tejo foi dura, admite. A fila para recolher os kits de alimentação estava “super longa”, mas a organização foi generosa. “Deram imensa comida que não se estraga”, como barras de cereais, fruta desidratada, atum, salsichas e sumos. O saco é pesado, queixa-se a jovem voluntária, mas vai ajudar a passar a noite. “Cheguei às 16h e estive sempre com borrifadores e água. Vimos uma rapariga a sentir-se mal mas tivemos cuidado. Agora estou muito mais descansada”. O tempo é passado a jogar às cartas e a conversar. Rezar fica para mais tarde. Para Mariana, a JMJ só termina segunda-feira. Depois da noite de Vigília e do encontro de voluntários em Algés, ainda lhe resta um último turno na escola onde é voluntária, na paróquia do Campo Grande, a tomar conta dos peregrinos nas últimas horas que vão passar em Lisboa.

Jovens esperam pelo Papa no Campo da Graça.

JOÃO PORFIRIO/OBSERVADOR

Maria Monteiro e Manuel Faro são namorados e vieram juntos ao Campo da Graça. Também são voluntários e o trabalho começou no Parque Tejo às 9h da manhã. Tiveram o privilégio de chegar cedo, quando o recinto ainda não passava de um terreno deserto à beira do rio. “Deixámos logo aqui as coisas, mas deixámos espaço para que quem não é voluntário se possa chegar à frente”, diz Maria, que tem o próximo turno marcado para as seis da manhã.

Manuel está alocado ao Parque Eduardo VII mas aproveitou a “cunha” da namorada” para se posicionar na primeira fila do espaço dedicado aos peregrinos que vão assistir à vigília com o Papa. “Depois vou trabalhar às 4h da manhã para o centro de imprensa”. O calor é mascarado com “uns sprays que se enchem com água e refresca”. A comida está debaixo de um guarda-chuva e a garrafa térmica é o acessório essencial destes dias. Entretêm-se com os concertos que não deixam ouvir as conversas, a cantar e a dançar, a trocar experiências com peregrinos de outros países.

Manuel inventou um jogo com os amigos para ajudar o tempo passar. “Temos de tirar fotografias com o maior número possível de pessoas de países diferentes. Estou com quase 60”. Não sabe que lugar ocupa no ranking, porque só no fim vai trocar “cromos” com os amigos. Ganha automaticamente o jogo quem encontrar alguém proveniente das Maldivas, o único país do mundo, segundo a organização, que não está inscrito na JMJ.

Um calor que já obrigou a cuidados médicos e as horas sem ir à casa de banho

Junto às baias, os peregrinos vão improvisando soluções para fugir do calor. Carla, 50 anos, e o grupo de 60 peregrinos que veio da Madeira arranjaram uma: além dos lençóis que trouxeram, pegaram na lona que foi colocada sobre a relva para deitar os colchões, ataram-na às baias e a dois caixotes do lixo, ganhando assim uma espécie de guarda-sol.

Bem que Carla precisava: já foi ao posto médicos duas vezes desde que chegou, tal tem sido o calor. Sentiu falta de ar, dores de cabeça e vontade de vomitar várias vezes. Por isso, tem ocupado o tempo deitada, para poupar forças, enquanto os jovens que acompanha se entretêm a jogar às cartas, a conversar. “Não dá para fazer muito, os sacos-cama estão todos uns em cima dos outros”, atira. Vai-se refrescando sempre que pode.  “Já me regaram com muita água, tomei banho quase! Tenho visto muita gente a fazer o mesmo”, afirma.

O grupo partiu cedo do Estoril, apanhou comboio, metro e chegou ao recinto a pé desde a estação do Oriente, um percurso que demora cerca de 40 minutos. Eram 11h30 da manhã e o sol já ia alto. Para entrar no recinto ainda precisaram de passar uma hora na fila.

Jovens aguardam pela Vigília no Parque Tejo.

JOÃO PORFIRIO/OBSERVADOR

Mas vieram equipados: muito protetor solar, comida que não se estrague — batatas fritas, bolachas, croissants, “nada de cremes”, “muita água”, além da comida que a organização também providenciou. E também medicamentos — desde pomadas para as dores no corpo ou para as picadas de inseto, comprimidos para as dores de cabeça e para as constipações. É que “muitos jovens, com a mudança de temperatura, ficaram constipados”.

Naquela linha de peregrinos junto às baias, Taeyoung Kim é dos poucos que aguenta em pé. O grupo de 45 pessoas está ali reduzido — começaram por se separar no início do dia, ele fez parte dos “madrugadores”. Chegou cedo às portas do recinto, pelas 10h30, e ainda tentou reservar lugar para os colegas que chegariam mais tarde. Mas sem sucesso: os outros peregrinos que foram chegando àquele local não acharam graça à ideia, e foram ocupando o espaço ‘reservado’ por eles. “Estamos diminuídos a um terço do que estávamos”, diz, em tom de brincadeira.

Também vai, com os colegas, ali dormir. Mas não está preocupado com as condições. Na Coreia do Sul há serviço militar obrigatório, que ele próprio já cumpriu durante um ano e meio. “Estamos habituados a dormir no exterior. Não significa que gostemos, mas não há problema”, adianta.

O jovem da Coreia do Sul, de 22 anos, tem estado a conversar com os colegas para ocupar o tempo, já dormitou, trocou “objetos” com outros peregrinos. Nas mãos tem um cartão com imagem de Cristo que lhe foi oferecido. Está a tentar não sair dali: momentos antes tentou e demorou “imenso tempo” a ir à casa de banho, aponta, sem quantificar. “Só sei que levou muitos ‘sorry’ e ‘desculpa’, muitos ‘gracias’ e ‘obrigados’”.

E como se sentiria se a JMJ fosse para a Coreia do Sul? “Está toda a gente a fazer-me essa pergunta! Sabem alguma coisa que nós não sabemos? Não sei, temos de ver. Não sei se teríamos as condições, mas se o governo, a Igreja coreana se prepararem…”

Com a enchente de peregrinos, ir buscar água ou à casa de banho não é tarefa fácil e pode demorar longos minutos. Rute, 25 anos, não consegue precisar bem, mas diz que não vai à casa de banho desde manhã. “Tenho transpirado bastante!”, acrescenta, entre risos. A voluntária fez o turno da manhã e está agora junto a outras colegas voluntárias, junto às grades, a “almoçar”. Um almoço tardio, dada a hora (já passava das 18h30): um sumo de fruta e uma Macedónia embalada — com batata, feijão verde, ervilhas, cenoura — misturada com o atum de uma lata que lhe foi dada pela organização, tal como a todos os peregrinos. O kit — para as refeições deste sábado e do pequeno-almoço e almoço de domingo — que lhe foi entregue contém outros pacotes de sumo, barritas de cereais, um pacote de bagels que podem acompanhar com as salsichas que também lhes ofereceram, dois pacotes de húmus ou de fruta batida.

Para Rute, gerir a comida e dormitar nas condições em que o vai fazer — o saco-cama roxo já está estendido no chão — não é tarefa nova. Já esteve na JMJ de Madrid, aí como peregrina, e “foi muito pior”: as condições meteorológicas durante a noite também não lhe deram descanso. “O meu saco-cama ficou todo encharcado, dormi encharcada. Mas é preciso trazer a mente e o coração aberto, ter este espírito de partilha”.

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