Carta aberta de D. Manuel Clemente
Atendendo aos muitos equívocos e perplexidades que tenho constatado em torno dos relatos sobre o doloroso caso denunciado em 1999, penso ser importante ajudar a esclarecer o que na verdade testemunhei.
D. Manuel Clemente começa por dizer que tem constatado a existência de “equívocos e perplexidades” em relação ao caso noticiado esta semana pelo Observador e, entretanto, aprofundado na generalidade dos meios de comunicação portugueses. O que D. Manuel Clemente não diz é que recusou desfazer quaisquer eventuais “equívocos” quando o Observador lhe pediu uma entrevista presencial para esclarecer os pormenores do caso e, depois, quando recusou responder às detalhadas perguntas escritas enviadas pelo jornal, preferindo escudar-se num curto parágrafo pouco esclarecedor sobre os acontecimentos.
O cuidado e a preocupação pelas vítimas é o que nos deve mover principalmente neste assunto e levar-nos ao seu encontro. Lamento todo o sofrimento que esta situação possa provocar a esta vítima em especial e a todas as outras que conhecemos ou não.
No segundo parágrafo da sua carta aberta, D. Manuel Clemente usa o discurso contemporâneo da Igreja Católica em relação à crise dos abusos. É o Papa Francisco que tem pedido insistentemente que o centro de todo este debate esteja nas vítimas e não na reputação da Igreja Católica. D. Manuel Clemente rompe também com aquilo que foi o discurso da Igreja em Portugal durante décadas. Ao admitir a existência de vítimas “que conhecemos ou não”, o patriarca de Lisboa abandona o discurso antigo de vários bispos portugueses, que classificavam a crise dos abusos como um problema de outros países que não havia atingido Portugal.
O meu antecessor acolheu e tratou o caso em questão tendo em conta as recomendações canónicas e civis da época e o diálogo com a família da vítima. O sacerdote foi afastado da paróquia onde estava e nomeado para servir numa capelania hospitalar.
Para D. Manuel Clemente, aparentemente, o caso circunscreve-se exclusivamente à década de 1990, cabendo toda a responsabilidade ao seu antecessor, D. José Policarpo, que liderou o Patriarcado de Lisboa entre 1998 e 2013. Segundo D. Manuel Clemente, a denúncia apresentada em 1999 a D. José Policarpo foi tratada “tendo em conta as recomendações canónicas e civis da época e o diálogo com a família da vítima” — e a solução encontrada foi o afastamento da paróquia e a colocação de um padre suspeito de abusos numa capelania hospitalar. O atual patriarca de Lisboa não se alonga neste parágrafo para explicar em que medida é que a colocação do padre suspeito numa capelania hospitalar (onde continuou a ter contacto com crianças, jovens e pessoas vulneráveis) tem eficácia na punição do sacerdote e na proteção de eventuais futuras vítimas. O patriarca de Lisboa também não comenta o facto de o padre ter, por conta própria, dado início a uma associação privada onde realizava cerimónias religiosas e onde organizava eventos com crianças e jovens — embora tenha assumido, na resposta enviada anteriormente ao Observador, que o Patriarcado de Lisboa tinha conhecimento da sua existência. No entanto, não tinha qualquer poder sobre ela, por não ser regulada pelo direito canónico.
Uma vez patriarca, marquei um encontro com a vítima, encontro esse que foi adiado a pedido da mesma. Em 2019, regressado do Encontro dos Presidentes das Conferências Episcopais da Europa sobre o tema “A proteção dos menores na Igreja” promovida pelo Santo Padre em Roma, sobre a temática dos abusos, pedi um novo encontro à vítima, com quem conversei presencialmente. A sua preocupação era a de não haver uma repetição do caso, sem desejar de forma expressa a sua divulgação.
Duas décadas depois daquela denúncia, o ambiente na Igreja Católica em relação aos abusos de menores era outro. Os escândalos dos EUA, Irlanda, Alemanha, Austrália e tantos outros países tinham colocado o tema no centro da agenda e obrigado o Vaticano a agir, primeiro com Bento XVI e depois com Francisco. O problema adensou-se especialmente em 2018, ano em que uma sucessão de escândalos globais na Igreja (incluindo o caso do cardeal norte-americano Theodore McCarrick, o relatório da Pensilvânia e a viagem do Papa ao Chile) tinham levado a Igreja a um ponto de rutura e motivado o Papa Francisco a convocar uma cimeira dedicada ao tema no Vaticano, com a presença de bispos de todo o mundo. D. Manuel Clemente foi o representante português nessa cimeira, da qual saíram mensagens muito claras: o foco da Igreja tem de estar nas vítimas, os casos têm de ser comunicados às autoridades e os bispos não devem poupar esforços para proteger as crianças e os jovens de possíveis abusos. É importante ter em conta que foi já neste contexto que D. Manuel Clemente, novo patriarca de Lisboa, se reuniu com a vítima — que, aparentemente, foi pedido pelo próprio Clemente, o que indica que já tinha conhecimento do caso desde que, em 2013, chegou ao Patriarcado de Lisboa e, ainda assim, concordou em manter o sacerdote em funções na capelania hospitalar. O atual patriarca de Lisboa assume, assim, que conhecia a existência de suspeitas de abuso em relação àquele padre e que optou, ainda assim, por manter o sacerdote em funções. Mas há mais neste parágrafo. D. Manuel Clemente diz que a grande preocupação da vítima era a de que não houvesse repetição de abusos por parte daquele sacerdote — mas continua sem dizer o que fez para ir ao encontro desta vontade, já que manteve o padre em funções num hospital. Por outro lado, o patriarca diz que a vítima não desejou “de forma expressa” a divulgação do caso. Fica por esclarecer em que medida é que o desejo da vítima de não divulgar o seu caso impediria D. Manuel Clemente de entregar às autoridades civis o nome do sacerdote — algo que, sabe agora o Observador, foi feito pelo coordenador da comissão independente que está a investigar os abusos de menores na Igreja em Portugal ao longo da história.
Não entendi, como não entendo hoje, ter estado perante uma renovada denúncia da feita em 1999. Se assim tivesse sido, a mesma teria sido remetida à Comissão Diocesana, criada por essa altura, e teriam sido cumpridos todos os procedimentos recomendados à data. Recordo que as regras e recomendações de 16 de julho de 2020 são posteriores.
Neste parágrafo, D. Manuel Clemente entra na defesa técnica da sua atuação. Em primeiro lugar, diz que a reunião com a vítima não consistiu na receção de uma nova denúncia, mas somente na auscultação de um testemunho relativo a um caso já tratado e encerrado no passado, pelo que não havia qualquer novidade que precisasse de ser comunicada às autoridades (que, sublinhe-se, nunca tinham sido informadas do caso). Cronologicamente, D. Manuel Clemente localiza este encontro numa data posterior à cimeira no Vaticano, onde ele e bispos de todo o mundo se reuniram com o Papa Francisco para delinearem medidas e procedimentos em casos de abuso sexual na Igreja. O patriarca refere-se também à data de 16 de julho de 2020, altura em que entrou em vigor um documento da Congregação para a Doutrina da Fé que introduziu as novas regras que a Igreja Católica deve seguir na abordagem de casos e denúncias de abusos. Nesse documento, o Vaticano determina que todos os casos de abuso de menores devem ser comunicados às autoridades civis, mesmo em países onde não exista essa obrigação legal (como sucede em Portugal), uma vez que é necessário proteger não só os direitos da vítimas, como também evitar que os presumíveis abusadores possam reincidir nos seus crimes contra futuras vítimas. Uma vez que essas normas só entraram em vigor a 16 de julho de 2020, D. Manuel Clemente considera que não estava obrigado a segui-las aquando do encontro com a vítima. Do ponto de vista puramente técnico, tem razão: como na lei civil, a lei canónica também não se aplica com retroativos. Ainda assim, embora a obrigatoriedade só tenha entrado em vigor no verão de 2020, a necessidade de apresentar à polícia todos os presumíveis agressores sexuais para proteger eventuais futuras vítimas era já o entendimento do Papa Francisco e dos seus conselheiros mais próximos — como foi possível testemunhar durante a cimeira de fevereiro de 2019, que aconteceu antes do encontro de D. Manuel Clemente com a vítima.
Em relação ao sacerdote em causa, o mesmo foi acompanhado e até à atualidade nunca houve qualquer denúncia ou reparo sobre o seu comportamento moral. Nunca ninguém comunicou, nem sob anonimato, qualquer acusação. Aliás, as medidas cautelares previstas para estes casos visam sobretudo a proteção de possíveis futuras vítimas, o que pode estar acautelado, em especial quando, passados anos, nunca mais houve denúncias nem indícios.
D. Manuel Clemente garante que o padre em questão foi “acompanhado”, mas não diz como nem por quem. Médicos? Psicólogos? Outros padres? As autoridades judiciais desconheciam o caso até ao momento em que a história chegou à polícia pelas mãos da comissão independente. Depois, D. Manuel Clemente usa o argumento de que não voltou a haver qualquer denúncia contra aquele padre como justificação para não ser necessária a aplicação de medidas preventivas, e vai mais longe, afirmando que esse facto significa, por si, que está acautelada a proteção de eventuais futuras vítimas — mesmo tendo em conta que o sacerdote continuava em funções.
Aceito que podemos e devemos fazer sempre melhor. Desde a primeira hora que no Patriarcado de Lisboa dei instruções para que a Tolerância Zero e a Transparência Total sejam regra conhecida de todos.
Aqui, D. Manuel Clemente reconhece que podia ter agido de outra forma, embora prefira apontar para pontos positivos, como as instruções que diz ter dado para uma tolerância zero e uma transparência total — que têm sido dois dos principais pilares do discurso do Papa Francisco no que toca aos abusos, e têm sido repetidos insistentemente por bispos de todo o mundo, incluindo D. Manuel Clemente, em múltiplas intervenções públicas.
Aceito que este caso e outros do conhecimento público e que foram tratados no passado não correspondem aos padrões e recomendações que hoje todos queremos ver implementados.
Mais uma vez D. Manuel Clemente mostra que o destino dado ao caso noticiado pelo Observador, sobretudo pelo seu antecessor D. José Policarpo, não corresponde aos padrões agora impostos pelo Papa Francisco. Após a denúncia, na década de 1990, Policarpo mudou o padre de funções e nada disse à polícia. E parece querer distanciar-se dos “padrões” seguidos pelo seu antecessor na década de 1990, embora nada tenha feito em 2019 para o reverter.
Temos, desde o início da criação da Comissão Diocesana, a primeira no país, tentado cumprir e fazer cumprir todas recomendações civis e canónicas.
É um facto que D. Manuel Clemente foi o primeiro bispo português a criar uma comissão diocesana de proteção de menores. Fê-lo logo em abril de 2019, quando regressou da cimeira de Roma sobre a proteção de menores. A comissão é liderada pelo bispo auxiliar D. Américo Aguiar. Clemente também não deu conhecimento deste caso a esta comissão.
Até à data foram encaminhadas à Comissão Diocesana do Patriarcado de Lisboa, por mim ou diretamente pelas vítimas, 3 denúncias. A primeira foi acompanhada pela diocese de Vila Real, a segunda está neste momento a corresponder ao que o Dicastério para a Doutrina da Fé decidiu, após as recomendações que a nossa Comissão me deu. Mal tenhamos o desfecho sobre a mesma, será divulgado. A terceira e mais recente que envolve mensagens inapropriadas e enviadas por WhatsApp está também em apreciação pela Comissão, que já me fez recomendações a que dei imediato seguimento.
D. Manuel Clemente aproveita a carta aberta para fazer um balanço daquilo que tem sido o trabalho da comissão diocesana na receção de denúncias de abuso sexual de menores. Duas das situações mencionadas já foram noticiadas publicamente — a que diz respeito a um padre de Vila Real e a que incide sobre um padre que trocou mensagens inapropriadas com alunos de um colégio em Lisboa. No primeiro caso, o bispo de Vila Real, D. António Augusto Azevedo, comunicou o caso às autoridades civis. No caso das mensagens inapropriadas, a Polícia Judiciária também foi informada do caso, embora não tenha encontrado indícios de crime. Quanto ao outro caso mencionado, não existem dados sobre o que foi feito até agora.
Quanto a outras denúncias que possam existir, não temos conhecimento, mesmo aquelas a que a Comissão Independente se refere.
A Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica, organismo liderado pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, anunciou já ter recebido 362 testemunhos de abusos cometidos no seio da Igreja ao longo dos últimos 70 anos. A comissão também já disse que a grande maioria dos casos diz respeito a zonas urbanas no litoral, pelo que é de supor que uma porção considerável das denúncias esteja relacionada com o território do Patriarcado de Lisboa, que se estende desde a cidade de Lisboa até à zona de Alcobaça. Contudo, estes casos ainda não foram comunicados às autoridades eclesiásticas, pelo que é natural D. Manuel Clemente não ter conhecimento deles. O trabalho da comissão só estará concluído no final deste ano.
Que ninguém tenha medo de denunciar. Nas Comissões Diocesanas, na Comissão Independente, na PGR, na PJ, aos media, onde e junto de quem se sentirem mais seguros.
D. Manuel Clemente também usou esta carta para fazer um apelo às vítimas, lembrando que além da Comissão Independente que está a fazer um levantamento sobre os abusos sexuais na Igreja e que tem uma linha aberta para denúncias, existem ainda comissões diocesanas criadas em cada diocese do país. O patriarca de Lisboa fala também na PGR (Procuradoria Geral da República, que coordena a investigação criminal), na Polícia Judiciária (polícia responsável pela investigação deste tipo de crime) e até nos media, desde que escolham o local onde se sintam mais seguros. Os crimes sexuais contra menores são de natureza pública, o que significa que basta o conhecimento do crime por parte das autoridades ou uma denúncia para que sejam investigados, não sendo necessário o consentimento da vítima.
Peço a Deus que encoraje, fortaleça e proteja os que nas suas vidas tenham sofrido estes crimes.
Numa altura em que se adensa o debate sobre se Manuel Clemente devia ou não ter comunicado o crime de que teve conhecimento à polícia, e em que o próprio justifica que não o fez a pedido da vítima, o patriarca de Lisboa coloca-se uma vez mais ao lado das vítimas destes crimes, pedindo a Deus que lhes dê coragem nas suas vidas.
Desejo ter ajudado cada leitor desta carta a aproximar-se da verdade que todos desejamos. Verdade que as vítimas nos exigem e merecem.
Lisboa, 29 de julho de 2022
D. Manuel Clemente
Cardeal-Patriarca de Lisboa
Com este remate, o bispo D. Manuel Clemente afirma o que já tinha sublinhado quando começou a carta, que o objetivo era clarificar o que se passou. O Observador tentou fazê-lo mais de uma semana antes da publicação do trabalho, primeiro através de uma entrevista, que foi recusada, e depois através do envio de 11 perguntas por escrito — às quais obteve uma resposta de um parágrafo. Ainda assim, esta carta aberta não muda o cerne da questão: D. Manuel Clemente teve conhecimento de um alegado crime, cujo suspeito foi mudado de funções, e nada disse às autoridades mesmo sendo essa a indicação saída da reunião com o Papa Francisco no Vaticano.